Cidadania, o legado de Lula
Somos andando
Aos três anos, fui ao comício da primeira tentativa de eleição de Lula a presidente da República.
Voltei ao Largo da Epatur, hoje Zumbi dos Palmares, no Centro de Porto Alegre, com oito anos, para o comício da segunda tentativa.
Mais uma vez aos 12.
Mesmo sem entender exatamente o significado daquelas eleições, que foi sendo adquirido com o passar do tempo, eu via e sentia a esperança dos meus pais. Via também a desilusão a cada derrota, a frustração de quem veria mais quatro anos de Brasil andando pelos trilhos errados.
Depois daquelas três candidaturas de Lula, parecia impossível elegê-lo. Já se falava em desgaste irreversível, dizia-se que ele não se candidataria mais, que já tinha passado sua vez. Era um sonho impossível eleger Lula. Já quase não havia mais esperança.
Aí o PT descobriu que só elegeria um candidato, qualquer um que fosse, à Presidência da República, se se transformasse um tanto. Transformou-se. O PT perdeu a antiga radicalidade, colocou um terno e um perfume, fez a barba e abriu um sorriso. Cedeu em algumas das lutas antigas e importantes. Mas percebeu que só poderia fazer algumas muitas coisas se cedesse em outras. Achou que valia. Afinal, melhor mudar o que dá do que não mudar nada.
E em 2003 Lula entrou no Planalto pela porta da frente e, naquele gesto meio torto, meio atrapalhado, recebeu a faixa de presidente do adversário que o derrotara duas vezes nas urnas. Chorou tantas vezes, e fez chorar.
A elite, e a mídia representando-a, não podia admitir um operário na Presidência. Não podia admitir a possibilidade de divisão de poder, de perda de força, de rateio nos investimentos. De mudanças na ordem, de alterações nas classes sociais.
Não houve trégua. Nota-se por este 2010 em que foi tentado de tudo para impedir Lula de fazer seu sucessor. A mídia sabia que essa era sua única oportunidade, o único jeito de derrotar o PT era não deixá-lo eleger representante quando não fosse Lula o candidato. Porque contra Lula já se sabia que nada adiantava.
Lula, agora, tantos anos depois daquele 1989, era imbatível. Seus 87% de aprovação pessoal provam que ele seria eleito com índices nunca antes vistos se tivesse tentado mudar a ordem das coisas e concorrido ao terceiro mandato. Mas acima de tudo Lula respeita a democracia e concedeu a Dilma a tarefa de seguir transformando vidas, realizando sonhos.
E agora o operário três vezes derrotado, vítima das manipulações e do conservadorismo, do medo do diferente, deixa o Palácio do Planalto com aprovação recorde. Nunca antes na história deste planeta… Nenhum outro representante no mundo atingiu tal marca.
Ironicamente, 13% – 13! – o desaprovam. Nesses 13, a mídia, os integrantes do PSDB e do DEM e uma classe média rancorosa, manipulável e manipulada, burra e egoísta, conservadora. Que rejeitam Lula justamente por não admitirem que pobres também são gente e que agora passaram a se sentir gente.
Cidadania. Foi isso o que Lula deu de mais importante aos brasileiros. A sensação de que ninguém é melhor do que ninguém, de que somos todos cidadãos. Não há nada mais cruel do que a sensação de haver pessoas de primeira classe e pessoas de classe inferior.
Lula mostrou ao povo que o povo pode. Que um migrante nordestino pode virar presidente. Mas, acima de tudo, que cada brasileiro e cada brasileira tem direito a comida na mesa, emprego decente, educação, casa. Que se o fulano do bairro rico de São Paulo pode ter carro, o beltrano do interior do Ceará também pode.
Lula deixa ainda muita transformação por fazer. Tantos erros cometidos pelo meio do caminho. Mas deixa o caminho trilhado. Deixa a certeza de que é possível fazer diferente, de que não precisamos e não devemos nos contentar com as desigualdades. Nem dentro das cidades nem entre regiões, tampouco entre países.
Lula provou a cada cidadão que sua origem não determina seu destino, porque todos somos iguais e temos os mesmos direitos. E, sabendo que é preciso oferecer à população esses direitos iguais, Lula ofereceu oportunidades.
Parece roteiro de cinema. O homem que veio num pau-de-arara do interior do interior do Nordeste, que passou fome, que virou operário, o torneiro mecânico que perdeu um dedo no trabalho, que se tornou sindicalista, brigou, esbravejou, tinha uma cara carrancuda, um olhar duro, um bigode grande e amedrontador, que perdeu três eleições, que parecia ter como único futuro o ostracismo, sai de oito anos de Palácio do Planalto, onde enfrentou uma dura tentativa de golpe branco, como o presidente mais aprovado da história do Brasil.
E amanhã veremos um operário transmitir para uma mulher a faixa de presidente da República Federativa do Brasil, do nosso gigante país de 190 milhões de pessoas.
Foto: Ricardo Stuckert