Em seu discurso de posse, a nova ministra chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Maria do Rosário passou em revista nesta segunda uma série de temas relevantes e polêmicos, da instalação da Comissão da Verdade (para finalmente termos uma versão oficial sobre os mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura) à importância da aprovação, pelo Congresso Nacional, da PEC 438/2001, que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo for encontrado e sua destinação à reforma agrária. Isso sem contar o combate à homofobia (mais importante do que nunca por conta de atos de barbárie cometidos em todo o país por pessoas que deveriam ser recolhidas do convívio social) ou mesmo a violência contra crianças e adolescentes – lembrando que, no Brasil, muita gente acredita que surra educa e trabalho infantil forma o caráter. Desejamos a ela boa sorte, é claro.
Contudo, para a implementação, mesmo que parcial, do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, vai ser necessário muito mais do que isso. A SDH, mais do que uma executora de ações, é uma articuladora, com a função de envolver as diferentes áreas de governo para a necessidade de se atentar, promover e respeitar a dignidade humana. Como fazer isso, porém, se já sabemos, de antemão, que parte do governo vai jogar do outro lado?
(Antes de prosseguir, pausa para a reflexão: quando cito o PNDH3, rola uma enxurrada de comentários de pessoas que não leram o programa e pescaram alguma coisa através das bolas levantadas por veículos de comunicação. Aí vocês, que têm preguiça de se informar sobre algo que diz respeito à sua vida e preferem repetir o que ouviram, feito papagaio velho, a usar os neurônios, repito o conselho dado pelo imortal Nelson Rodrigues: cresçam!”)
Pelo menos 11 hidrelétricas de porte estão planejadas para serem construídas na Amazônia Legal, em rios como o Tapajós, o Tocantins e o Apiacás. Tendo em vista os graves impactos causados em trabalhadores rurais e em populações tradicionais, como povos indígenas, em processos em andamento como os das hidrelétricas de Estreito, Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, temos idéia do festival de desrespeito aos direitos humanos que vai baixar nos próximos anos por lá. Há camponeses que até aceitaram serem deslocados, mas que, até hoje, não receberam sua indenização prometida.
Como sempre os grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia vêm acompanhados de promessas de rios de leite e mel para a população local, mas na maioria das vezes os impactos negativos são tão grandes senão maiores que os positivos. Bom mesmo é para a gente do Sul e Sudeste ou das grandes cidades que vai consumir grande parte dessa energia, exportada para os nossos ar condicionados, videogames e para a produção de nossas latinhas de alumínio.
Nesse sentido, uma ironia. Como o atual governo, que começou com um discurso lembrando os que tombaram pelo caminho na luta pela redemocratização, pode esquecer que os que ficaram não morreram apenas por direitos civis e políticos – mas também pelos sociais, econômicos e culturais, ou seja, por uma outra forma de ver e fazer o Brasil? Não era apenas para poder se expressar e votar, mas para que aqueles que eram vítimas de arbitrariedades e tinham suas casas derrubadas em nome do progresso, desse que é “um país que vai pra frente”, pudessem ter uma alternativa além do “ame-o ou deixe-o”. Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas, xingando os opositores de “arautos do atraso” ou acusando-os de fazer o jogo do inimigo externo?
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura “lenta, gradual e segura”, mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa Passando por cima de qualquer um. Aliás, hoje parte daqueles planejadores é ovacionada e vira conselheiro real.
Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil, nos contou uma vez que ouviu uma justificativa da boca de um fazendeiro português com terras no Mato Grosso que serve feito uma luva para o que estou querendo dizer: “Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço”.
O filósofo e sociólogo Nicos Poulantzas afirmou que devemos compreender o Estado não como um bloco único que opera como tal, coisa ou sujeito, mas como algo dividido. Contradições fazem parte da estrutura do Estado e moldam a sua organização e seu funcionamento. O estabelecimento das políticas de Estado deve ser considerado como resultante dessas contradições de classe inseridas na própria estrutura do Estado.
Dessa forma abandona-se a concepção de uma estrutura hierárquica única que serve para colocar em prática a política de determinado bloco no poder. Frações das classes dominantes estão representadas nessa estrutura, mesmo apresentando interesses divergentes. A política se estabelece por um processo de contradições interestatais, podendo parecer caótica em um primeiro momento, mas que apresenta uma coerência ao final do processo. E, no caso brasileiro, que coerência…
Há dois lados na Esplanada dos Ministérios, um que têm poder e dinheiro e outro, com boa vontade. A área social (que envolve a SDH e outras secretarias, o Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério do Meio Ambiente, entre outros) no que pese grandes avanços, é abastecida com migalhas em recursos financeiros e em prestígio se comparado à outra (a discussão do aumento do mínimo que o diga). Não significa que um lado do governo quer a perdição e a outra a salvação. Todos desejam levar o país a um patamar melhor, o problema é como – o problema é sempre como.
Nesse contexto, a presidenta Dilma vai ter que fazer a diferença através de seu peso político. Não adianta elevar a questão dos direitos humanos nas relações internacionais, como parece que o Ministério das Relações Exteriores acertadamente deve fazer, e não executar o mesmo internamente. Se quiser fazer valer os direitos humanos em regiões rurais, ela terá que comprar brigas com áreas que, historicamente, lhe são importantes, como o setor elétrico, ou que eram para Lula, como o agronegócio e a construção civil. O crescimento tem que estar sujeito ao respeito dos direitos fundamentais e não flanar sobre eles.
Isso, se quiser, é claro.
Contudo, para a implementação, mesmo que parcial, do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, vai ser necessário muito mais do que isso. A SDH, mais do que uma executora de ações, é uma articuladora, com a função de envolver as diferentes áreas de governo para a necessidade de se atentar, promover e respeitar a dignidade humana. Como fazer isso, porém, se já sabemos, de antemão, que parte do governo vai jogar do outro lado?
(Antes de prosseguir, pausa para a reflexão: quando cito o PNDH3, rola uma enxurrada de comentários de pessoas que não leram o programa e pescaram alguma coisa através das bolas levantadas por veículos de comunicação. Aí vocês, que têm preguiça de se informar sobre algo que diz respeito à sua vida e preferem repetir o que ouviram, feito papagaio velho, a usar os neurônios, repito o conselho dado pelo imortal Nelson Rodrigues: cresçam!”)
Pelo menos 11 hidrelétricas de porte estão planejadas para serem construídas na Amazônia Legal, em rios como o Tapajós, o Tocantins e o Apiacás. Tendo em vista os graves impactos causados em trabalhadores rurais e em populações tradicionais, como povos indígenas, em processos em andamento como os das hidrelétricas de Estreito, Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, temos idéia do festival de desrespeito aos direitos humanos que vai baixar nos próximos anos por lá. Há camponeses que até aceitaram serem deslocados, mas que, até hoje, não receberam sua indenização prometida.
Como sempre os grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia vêm acompanhados de promessas de rios de leite e mel para a população local, mas na maioria das vezes os impactos negativos são tão grandes senão maiores que os positivos. Bom mesmo é para a gente do Sul e Sudeste ou das grandes cidades que vai consumir grande parte dessa energia, exportada para os nossos ar condicionados, videogames e para a produção de nossas latinhas de alumínio.
Nesse sentido, uma ironia. Como o atual governo, que começou com um discurso lembrando os que tombaram pelo caminho na luta pela redemocratização, pode esquecer que os que ficaram não morreram apenas por direitos civis e políticos – mas também pelos sociais, econômicos e culturais, ou seja, por uma outra forma de ver e fazer o Brasil? Não era apenas para poder se expressar e votar, mas para que aqueles que eram vítimas de arbitrariedades e tinham suas casas derrubadas em nome do progresso, desse que é “um país que vai pra frente”, pudessem ter uma alternativa além do “ame-o ou deixe-o”. Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas, xingando os opositores de “arautos do atraso” ou acusando-os de fazer o jogo do inimigo externo?
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura “lenta, gradual e segura”, mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa Passando por cima de qualquer um. Aliás, hoje parte daqueles planejadores é ovacionada e vira conselheiro real.
Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil, nos contou uma vez que ouviu uma justificativa da boca de um fazendeiro português com terras no Mato Grosso que serve feito uma luva para o que estou querendo dizer: “Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço”.
O filósofo e sociólogo Nicos Poulantzas afirmou que devemos compreender o Estado não como um bloco único que opera como tal, coisa ou sujeito, mas como algo dividido. Contradições fazem parte da estrutura do Estado e moldam a sua organização e seu funcionamento. O estabelecimento das políticas de Estado deve ser considerado como resultante dessas contradições de classe inseridas na própria estrutura do Estado.
Dessa forma abandona-se a concepção de uma estrutura hierárquica única que serve para colocar em prática a política de determinado bloco no poder. Frações das classes dominantes estão representadas nessa estrutura, mesmo apresentando interesses divergentes. A política se estabelece por um processo de contradições interestatais, podendo parecer caótica em um primeiro momento, mas que apresenta uma coerência ao final do processo. E, no caso brasileiro, que coerência…
Há dois lados na Esplanada dos Ministérios, um que têm poder e dinheiro e outro, com boa vontade. A área social (que envolve a SDH e outras secretarias, o Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério do Meio Ambiente, entre outros) no que pese grandes avanços, é abastecida com migalhas em recursos financeiros e em prestígio se comparado à outra (a discussão do aumento do mínimo que o diga). Não significa que um lado do governo quer a perdição e a outra a salvação. Todos desejam levar o país a um patamar melhor, o problema é como – o problema é sempre como.
Nesse contexto, a presidenta Dilma vai ter que fazer a diferença através de seu peso político. Não adianta elevar a questão dos direitos humanos nas relações internacionais, como parece que o Ministério das Relações Exteriores acertadamente deve fazer, e não executar o mesmo internamente. Se quiser fazer valer os direitos humanos em regiões rurais, ela terá que comprar brigas com áreas que, historicamente, lhe são importantes, como o setor elétrico, ou que eram para Lula, como o agronegócio e a construção civil. O crescimento tem que estar sujeito ao respeito dos direitos fundamentais e não flanar sobre eles.
Isso, se quiser, é claro.
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