Ana de Hollanda, Ana do Brasil
Sul21Discurso de posse depende de quem é o ministro ou o secretário e depende do recado que quer passar, do público que pretende atingir. Sempre tive medo da escolha do Ministro da Cultura. Sempre vi alguma referência sobre a área, contudo sem a ênfase que acho que merecia. Claro, a Dilma é uma mulher culta; leiam — não me lembro qual, se peça ou se comentário sobre o teatro, um trabalho de Ivo Bender, onde ele agradece às considerações da Dilma. Mas, quando a gente está na política, a urgência dela, o conflito que é básico no jogo do político, leva muitas vezes as pessoas a se esquecerem que o ambiente como um todo é que compõe a carne onde estes fenômenos se dão. Esquecem do ambiente como política — e este ambiente é a cultura, a sociedade viva como um todo. A arena do combate dos partidos e das classes pode ser o espaço público, mas a casa ampla onde os acontecimentos se efetivam levam a moldura do enquadramento cultural.
Pois, conhecia pouco o trabalho de Ana de Hollanda. Ontem, li o seu discurso de posse. Tinham me antecipado: “é bom”. Não acreditei muito, demasiado ligado à dúvida permanente. Embora pela origem de Ana, pudesse sair alguma megasena. Sempre achei que o Sérgio Buarque e sua mulher — pianista –, pelos múltiplos relatos sobre a sua família, tinham criado seus filhos imersos num viveiro de cultura. A variedade da obra dele é imensa, para começar. Lembro de suas críticas de literatura, entre a análise aguda à observação e o ponto de vista surpreendente. Quem como eu fui aluno da Economia de Campinas não deixou de ler e discutir “Raízes do Brasil”, sutilmente citado por Ana. As narrativas sobre o casal dão conta de sua casa sempre cheia de intelectuais e artistas. Mas, essas imagens sempre ficaram lá no fundo. Com a nomeação de Ana irrompeu a espera da surpresa, uma espera meio distraída, um tanto assim num aguardo e numa esperança vaga; vamos ver o que o Ministério vai fazer.
O discurso de Ana foi uma peça que me entusiasmou. Ana de Hollanda, Ana do Brasil. Atravessa a malha do texto uma voz de entusiasmo, um tom de lucidez, uma vocação de amplitude da ideia de cultura, que acho que o Sérgio Buarque anotaria com satisfação de pai e de intelectual. Mais. Se a gente se põe a escutar a palavra que corre na retórica, há uma cadeia delas que são palavras pra frente, pro alto, para a saudação da cultura brasileira, para o horizonte de futuro que, parece, pode estar aí e pode estar chegando. Ana, quero mais deste esplendor da grama, destas flores, quero mais deste jardim! Falando à moda dos diálogos imaginários do Nelson Rodrigues digo: Olha só, você fala que o Ministério da Cultura deve estar organicamente conectado ao programa geral de governo. Perfeito. O seu sonho de ministra, posto no papel, lido, falado para o auditório, tem o desafio da ponta do desejo. Tratando daqueles que ascenderam recentemente, você diz: “Até aqui essas pessoas têm consumido mais eletrodomésticos — e menos cultura. É perfeitamente compreensível. Mas a balança não pode permanecer assim tão desequilibrada. Cabe a nós alargar o acesso da população aos bens simbólicos. Porque é necessário democratizar tanto a possibilidade de produzir quanto a de consumir”.
Logo a seguir você, ministra da Cultura, nos diz, comovente, esta coisa maravilhosa: “A mesma e forte chama da cultura e de criatividade do nosso povo deve cintilar, ainda, no solo da reforma urbana e no horizonte da afirmação soberana do Brasil no mundo. Arquitetura é cultura. Urbanismo é cultura. Na visão tradicional, arquitetura e urbanismo só são “cultura” quando a gente olha para trás, na hora de tombamentos e restaurações. Isso é importante, mas não é tudo. Arquitetura e urbanismo são cultura também, no momento presente de cada cidade e na criação de seus desenhos e possibilidades futuras. Hoje, diante da crise geral das cidades brasileiras, isso vale mais do que nunca”. Aqui, Ana, você deu show de bola. Faça uma enquete com os secretários de Cultura dos estados e dos municípios para ver quantos acham que arquitetura é cultura. Aqui você pode até encontrar uma meia dúzia. Mas, urbanismo, aí sim, é que nós vamos ver quem entrou para o primeiro time, quem sabe que o barro não é apenas esperança da escultura, mas que também o urbano é a cultura traçando uma letra do seu nome.
Acho que sempre fui contra setores isolados. Para mim cultura tem que existir ligado à educação. Que bela homenagem você fez a todos que pensam desta maneira, nos incorporando e nos fazendo pensar nesta figura de diabo satanazim de Darcy Ribeiro. Fazia tanto tempo que o passado não ressurgia assim com aquela elegância brasileira da memória, quase portuguesa da saudade, mas de uma saudade que é promessa de futuro, de reconquista de terras perdidas para os tempos e os sapatos falsamente floridos e modernos do neoliberalismo.
Parece incrível, mas é verdade, você diz simplesmente isso, e que muitos acham que não: “A criatividade brasileira chega a ser espantosa, desconcertante e se expressa em todos os cantos e campos do fazer artístico e cultural: no artesanato, na dança, no cinema, na música, na produção digital, na arquitetura, no design, na televisão, na literatura, na moda, no teatro, na festa”. Que diferença de um colega seu, um antecessor, que disse que o seu grande triunfo e do governo ao qual pertencia, era ter introduzido no Brasil a indústria cultural. O que você está propondo tem outro condimento, passa pela cor do artista plástico, pela câmera do diretor, pela encenação do teatrólogo, pelo projeto do arquiteto, pela coreografia da dança, pelo traço do urbanista, pelo artesão de bonecos, pelo cantador de cordéis, pela concepção do artista de fogos de artifício. “Este é o verdadeiro milagre brasileiro, que vai do Círio de Nazaré às colunatas do Palácio da Alvorada, passado por muitas cores e tambores”. E você se jogou muito bem como Diadorim nesta vereda imensa: “ao assumir o Ministério da Cultura, assumo também a missão de celebrar e fomentar os processos criativos brasileiros. Porque, acima de tudo, é tempo de olhar para quem está criando”. E, leitor inquieto, escute esse clarão portentoso: “o Ministério (da Cultura) tem de realmente começar a pensar o Brasil como um dos centros mais vistosos da nova cultura mundial”.
E você sabe, Ana; você tem a intuição do que fazer: “A partir deste momento em que assumo o Ministério da Cultura, cada artista, cada criadora ou criador brasileiro, pode ter a certeza de uma coisa: meu coração está batendo por eles. E o meu coração vai saber se traduzir em programas, projetos e ações”. Bravo, Ana! Um dia Domingos de Oliveira filmou “Todas as mulheres do mundo”. Se você fizer o que você diz nestas palavras, vamos ter de inventar outro Domingos para escrever a sua época como ministra. Pois, sua aposta é de partido alto. E sua finura: “Por tudo isso é que devo dizer que a atuação do Ministério da Cultura vai estar sempre profundamente ligada às raízes do Brasil”.
(Ah! meu caro Sérgio, você e sua mulher não esperavam por essa, esperavam?) .
Agora tem mais alguma coisa que quero salientar. Tenho escrito por aqui que a nossa sociedade substitui o pensar pelo calcular, o pensamento é um vagabundo atrevido, pois coloca em cheque qualquer ideologia, inclusive a neoliberal da eficiência. Você, Ana, fala no criar, você louva a criação, você comemora que seu corpo e sua mente e sua sensibilidade pulsam com o artista, você põe junto cultura e arte. E você fala em pensar, fazer e saber escutar. Mas, falar em pensar é retomar a correnteza mais funda do Ocidente — sem esquecer o pensar zombante de Machado de Assis. Você está com ele, ou ele está com você: “Mas, volto a dizer, e vou insistir sempre: com a criação no centro de tudo. A criação será o centro do sistema solar de nossas políticas culturais e do nosso fazer cotidiano. Por uma razão muito simples: não existe arte, sem artista.” Você está certa Ana, você liga erradicação da miséria, ascensão social com ascensão cultural. E nesse movimento, está aí o segredo das jóias: “o Ministério vai ceder a todas as tentações da criatividade cultural brasileira”.
Ana, Aleluia! O plano das concepções, das ideias, dos sentimentos está ótimo, agora, como você disse, começa a hora do fazer!
(PS para a presidenta. Dilma, maravilha! Você não pensa só em taxa de juros, dívida pública, inflação, PAC e superávit primário, como muitos acham. Você mostrou que ao colocar Ana de Holanda no Ministério pensa também em superávit de cultura. Sua ministra disse bem: “Um momento novo está amanhecendo na história do Brasil”.)
* Economista
Texto publicado originalmente no blogue Econobrasil
Um comentário:
Caro,
Vários de nós, também eleitores da Dilma, estamos preocupados com o encaminhamento da Cultura.
Convite para dois breves textos:
http://a8000.blogspot.com/2011/01/cultura-esta-no-centro-das-disputas-do.html
e
http://olhodecorvo.redezero.org/politica-cultural-redes-ou-centralidade/
Abraços
Cezar
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