sábado, 21 de janeiro de 2012

Cenas cotidianas: e aí, ômeu... criando as meninas peruinhas, criancinhas de salto alto com caras e bocas?


Combate ao machismo, o buraco é mais em cima

Cláudia Rodrigues no SUL 21
Em uma parada para jantar durante uma viagem, lá estava a televisão sintonizada no inominável programa no restaurante do caminho. A maior parte das pessoas sentadas às mesas fitava a tela com olhos vidrados e as duas crianças de 7 e 9 que nos acompanhavam, naturalmente voltaram seus olhos inocentes para as cenas e diálogos acéfalos. Chamei a moça que atendia e perguntei se havia algum lugar em que pudéssemos ficar sem ter que ver e ouvir aquilo. Ela olhou para os lados e afirmou que apenas se ficássemos de costas para a televisão. Estávamos famintos, não havia outro jeito, o gerente veio explicar que a maioria dos clientes preferia assistir, democraticamente não era justo desligar a TV apenas por causa das nossas crianças, até porque havia outras crianças da mesma idade por ali e os pais não haviam feito um pedido semelhante. Sim, as outras crianças estavam jantando com os olhos grudados nas cenas chulas junto com os pais. Solicitamos que o volume não ficasse tão alto porque isso chamava a atenção dos pequenos e fomos atendidos sob o olhar repressor dos demais clientes.
Jantamos animadamente com a preocupação de distrair as crianças, um menino e uma menina, depois de explicar que aquele era um programa muito ruim para adultos e impróprio para crianças, um programa que oferece um milhão de reais depois de girar 100 milhões via telefonemas de pessoas durante várias semanas. E aí falamos um pouco só do quanto gostaríamos de telefonar para um programa que de fato fizesse algo de útil e bom para o povo que vive na guerra ou que precisa de ajuda no mundo. Induzidos a um pensar mais inteligente, eles concordaram e passamos o resto do tempo falando de amenidades infantis e coisas da viagem.
Meninas e meninos não deveriam ficar expostos a essas imagens em locais públicos, em casas de amigos e parentes. O discurso de que basta desligar a televisão ou proibir o acesso só funciona na casa dos “chatos”, entre os quais me incluo. Quem se liga em educação de qualidade, que batalha pelo politicamente correto, forma filhos que mais tarde, na adolescência e na juventude, vão ter mais o que fazer do que assistir programas como esse.
Os filhos dos que assistem serão os eternos levantadores de audiência do lixo cultural produzido pela TV, principalmente aqueles que precisam sair da sala, indo dormir mais cedo, curiosos e sedentos para um dia imitar os pais. Sim, educação se dá por exemplo, passa-se de uma geração a outra. Tem piorado bem.
Quando soube do caso do estupro ou abuso sexual – não assisti — da moça bêbada pelo moço bêbado, que foi ao ar pelo tal do pay-per-view, minha primeira reação foi a mesma da maior parte das mulheres: demonizar a atitude do rapaz. Obviamente ele, como todo e qualquer homem que só vê na mulher um pedaço de carne, um objeto para uso sexual, deve responder pelo que fez, mas isso não vai resolver e nem tocar na ferida social produzida por comportamentos que são masculinos e femininos; independem de gênero.
Quando pais permitem que meninos e meninas assistam programas como esse, assim como novelas e séries americanas que investem em sexualidade precoce, estão investindo na durabilidade desses papéis estereotipados de garanhões e donzelas. É correto afirmar que a falta de roupa de uma mulher não é motivo para justificar um estupro, um abuso ou mesmo uma cantada, mas há que se trabalhar também o conjunto da coisa. Essa história de criar meninas peruinhas, criancinhas de salto alto com caras e bocas está tão equivocada como a de investir em meninos cabra-machos.
Quando se ensina às meninas, em pleno 2012, depois de tanta luta feminista, que elas só devem se preocupar com aparência e beleza, estamos investindo no comportamento complementar ao valentão, poderoso, que tudo pode em relação ao corpo da mulher-objeto. Há que se mexer na costura entre as partes e não na destruição de uma parte considerada agressora, a masculina, em prol de um fortalecimento da agressividade da parte condenada como mais fraca, a feminina. A guerra dos sexos é tão velha, mofada, cansativa, mas curiosamente não a colocamos em dúvida, continuamos afirmando que a solução é uma disputa por algum tipo de poder. E se falamos de poder não falamos de igualdade, de solidariedade e muito menos de afeto, que é a capacidade de afetar o outro com nosso ser inteiro, o que inclui o nosso eu pensante, criativo, singular.
Educar meninos e meninas pode ser algo mais equilibrado e menos sexualizado. Educar pessoas como pessoas, sem levar em conta apenas o gênero, funciona melhor. Ser gentil, sentir-se útil, respeitar o corpo do outro e o próprio corpo são valores para ambos os sexos. Coloco aqui a dúvida, não sobre os homens grosseiros, agressivos, doentes sexuais e mentais, temos certeza da existência deles, mas sobre o tipo de enfrentamento que nós, mulheres, estamos fazendo ao lutar com as mesmas armas sexistas nos autodenominando como vadias, assumindo um lugar de empoderamento sexual e fragilidade intelectual.
Para levantar a autoestima das mulheres que ainda são frágeis, levam tapas, surras sem reação e honrar o nome de Pagu, Olga Benário, Simone de Bevoir, Carol Honisch, Berta Lutz, Carol Gillian, Leila Diniz, Maria Bonita e tantas outras que trabalharam arduamente contra a submissão das mulheres, precisamos compreender que o aniquilamento do machismo, não dos homens, só pode ocorrer pelo buraco mais de cima.
Vibro cada vez que uma menina de 12 anos denuncia um abusador. É com coragem, amor próprio e inteligência que vamos colocar fim a isso e não com discurso vitimista. Certamente não é colocando a bunda de fora e gritando “eu mostro a bunda e você não ouse olhar”, que vamos enfraquecer o machismo.
Para exemplificar, vou contar a história de uma mocinha brasileira que viajou pelo mundo no final dos anos 1980. Ela estava em Israel quando decidiu ir sozinha pelo Egito. Seus amigos israelenses disseram que estava louca por escolher viajar no meio dos tarados egípcios, mas ela foi mesmo assim, afirmou que não estava indo para o Egito encontrar um namorado, o sonho era de conhecer o país, ela daria um jeito de se virar. Depois de três dias em um hotel via ônibus turístico, única maneira de atravessar a fronteira, o que lhe custou os olhos da cara, estava livre para voltar à vida de traveller solitária.
Acabou entrando em uma van, meio de transporte mais rápido e mais barato, rumo a Luxor, com nada menos do que seis homens. Detalhe: aos 22 anos de idade no auge da beleza. Seu coração acelerou quando eles todos começaram a olhar para suas pernas, trajadas com uma bermuda. Seus braços, totalmente despidos, faziam com que se sentisse nua. Chegou a ansiar por uma burca. Eles olhavam insistentemente até para suas orelhas, o pescoço, tudo enfim que estava de fora. Começaram a cochichar e fazer piadas em árabe. Ela não compreendia a língua, mas percebeu do que se tratava, o machismo é universal. Tremeu nas bases, lembrou das advertências dos amigos do kibbutz. O rapaz que estava ao seu lado, muito jovem, parecia ser o mais ético do grupo. Respirou fundo, enfiou a mão na bolsa e retirou dali moedas e pequenas notas de países da Europa. Todos se interessaram e começou ali uma história entre pessoas, o fato de ser mulher virou um detalhe.
Eles riram muito quando ela sacou uma nota de Israel provocando-os, afirmando que aquela seria a nota que definitivamente nenhum deles gostaria de guardar como lembrança. Contou que seus amigos israelenses haviam advertido de que não existiam cavalheiros no Egito e eles logo reagiram em negativa. Foram conversando sobre as famílias deles e as famílias brasileiras, os hábitos, as comidas, a guerra, os palestinos que migravam em massa para o Egito. Na parada para o almoço, agüentou firme, comeu com eles e bebeu água da mesma cumbuca, uma tradição local, em um restaurante repleto de homens. Fumaram e beberam chá até o final da exaustiva viagem. Ela acabou hospedada na casa da mãe e das irmãs do moço que viajou ao seu lado. Com todo respeito, o respeito que se cria quando lutamos não por direitos sexistas, mas por direitos de cidadãos, de pessoas.
Que respondam sim pelos seus atos os machões abusadores, estupradores, os valentões do corpo, os acéfalos de corpo masculino, os covardes em todo e qualquer país do mundo; mas que se retome também e já a prática feminista de fato para as mulheres. Desde pequenas devem ser orientadas a usar o cérebro como instrumento principal e não o corpo. Trabalhemos para que nossas companheiras de gênero sejam firmes, fortes e jamais permitam subjugação, tapas ou abusos de qualquer espécie desde o banco escolar.
Cláudia Rodrigues, jornalista, terapeuta reichiana, autora de Bebês de Mamães mais que Perfeitas, 2008. Centauro Editora. Blog: Buenaleche.

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