terça-feira, 19 de junho de 2012

A profissionalização do médico e o fim do sistema “misto” consultório combinado com o “bico” do emprego público


Os médicos e a saúde pública

Paulo Muzell
A atividade do médico teve um papel muito importante ao longo da história. A essencialidade do seu trabalho, as exigências de uma formação longa, difícil, que combina denso conhecimento teórico com um aprendizado empírico que nunca se esgota tiveram como natural contrapartida o reconhecimento social. A doença e o medo da morte contribuíram para consolidar a sua importância e poder: para uns era um “santo”, para outros, especialmente os mais humildes, um verdadeiro “deus vestido de branco”.
A partir de meados do século XX começa o declínio da atividade médica como carreira liberal. O século anterior – período de uma medicina ainda não totalmente especializada -, marca o predomínio de um atendimento básico, predominantemente realizado no consultório particular, não acessível à grande maioria da população. É o tempo do “médico da família”.
A prática e o próprio conceito de saúde pública são fenômenos recentes, mesmo nos países desenvolvidos. Aliás, a definição mais corrente a aceita de saúde pública é de Edward Amory, médico americano que em 1920 definiu saúde pública como “o controle das infecções, o saneamento do meio, a educação dos indivíduos nos princípios da higiene pessoal, a organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico precoce e o pronto tratamento das doenças e a criação de uma estrutura social que assegure a cada indivíduo na sociedade uma padrão de vida adequado à manutenção da saúde”.
A saúde pública praticamente inexistiu no Brasil nos tempos de colônia. Em 1789, o Rio de Janeiro tinha apenas quatro médicos e as duas primeiras escolas de medicina do país foram criadas em 1808, com a vinda da família real portuguesa, as duas únicas ações governamentais até a República. A Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960, e a criação do Instituto Nacional de Previdência Social em 1967 que unificou os Institutos de Aposentadoria e Pensões (os IAPs) marcam o início da assistência massiva à saúde, da população brasileira via aporte, ainda que tímido e insuficiente, de recursos públicos. Apenas os trabalhadores integrantes da Consolidação das Leis Trabalhista, os celetistas, foram beneficiados, ficando de fora os trabalhadores rurais, os servidores públicos e os empregados domésticos. Os trabalhadores rurais, por séculos excluídos de qualquer auxílio sistemático à saúde somente a partir de 1963 passam a ter direito à aposentadoria e a uma tímida e insuficiente assistência via o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural).
O lento processo de desenvolvimento da saúde pública avança “pari passu” com as radicais mudanças ocorridas na ciência médica nas últimas décadas. A medicina foi “invadida”, tornou-se dependente de outras áreas de conhecimento. A notável evolução da genética e de outras áreas da biologia, da químico-farmacêutica, da bioquímica, da engenharia e da informática foram incorporando parcelas crescentes de capital e de tecnologia às práticas médicas. A rápida especialização e as crescentes necessidades de aportes de capital foram deslocando o conhecimento, a experiência e o trabalho médico. Embora imprescindível e essencial, ele foi se adaptando às mudanças do novo “modo de produção do serviço médico”, cada vez mais dependente de novas tecnologias e de equipamentos complexos e de grande porte. O capital assume crescente importância no custo do serviço: a atividade médica vai migrando do seu caráter individual-liberal para o especializado-coletivo-assalariado. O médico profissional liberal, símbolo da pequena burguesia bem sucedida entra em declínio e em apenas poucas décadas passa a ser nostalgia do passado.
Vivemos hoje no país um difícil momento de transição da profissão, com um grande número de profissionais relutando em transitar da esfera liberal – do seu consultório – para o trabalho assalariado. Esta vã tentativa de “fuga para o passado” resulta na insustentável e incômoda situação de ter que dividir sua carga de trabalho entre inúmeros afazeres que compreendem uma cada vez mais minguada clientela particular e mais dois, três ou até quatro empregos de 10 ou 20 horas semanais. Como é humanamente impossível atender tantos encargos, o resultado é a ausência e falta de profissionais nos postos de saúde, nas emergências e nos hospitais. Nos conselhos estaduais e municipais de saúde, nas associações comunitárias e nas instâncias do Orçamento Participativo tornam-se cada vez mais frequentes as reclamações sobre o trabalho do médico e piora a avaliação do serviço prestado. De “ex-santo”, “semi-deus de branco” o profissional caminha a passos largos para se transformar em vilão.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, estendeu os benefícios assegurados apenas aos participantes do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência social (INAMPS) a toda população brasileira. Apenas formalmente, é claro. O direito aos serviços e à assistência à saúde, passam, pelo menos constitucionalmente, a ser um direito de todo cidadão. Há significativos avanços: vastas camadas da população, anteriormente excluídas passam a ter acesso aos serviços básicos de saúde e, também, aos de média e alta complexidade. O SUS viabiliza cirurgias do coração, acesso à hemodiálise, garante a distribuição gratuita de medicamentos contra a Aids. Paradoxalmente convive com longas filas, superlotação das emergências, falta de leitos hospitalares e demora na marcação de exames. Há enormes desafios a enfrentar e o futuro do sistema nem sempre aponta para um rápido fortalecimento.
Para reverter o quadro atual e aprimorar o SUS alguns desafios precisam ser enfrentados e superados. O primeiro é ampliar os atuais e estreitos limites do seu financiamento. Não podemos esquecer que outras prioridades da área social como a educação, a assistência social e os programas de combate à miséria competem com a saúde e necessitam, também, de mais recursos. Há, também, o fato do Brasil ser o único país com sistema de saúde universal onde os gastos privados superam os públicos, que representam menos de metade (45%) dos recursos aplicados. Em Cuba, na Inglaterra e no Canadá, por exemplo, esse percentual supera os 70%. Temos no país um sistema misto no qual o setor privado, por receber via SUS baixos valores pelos serviços e procedimentos médico-hospitalares, descumpre a lei, proporcionando aos que podem pagar atendimento diferenciado.
É claro que a evolução e execução das políticas de saúde dependem diretamente da evolução política, social e econômica da sociedade brasileira. Só um país com melhor distribuição de renda, com menos desigualdades e mais cidadania poderá construir um SUS que tornará realidade os princípios que apregoa. A vasta extensão territorial do país, contribui, também, para a existência de áreas desassistidas, de baixa cobertura. Temos recursos públicos financiando indiretamente empresas privadas de planos e seguros de saúde. É o caso do co-financiamento dos planos privados beneficiando servidores públicos da administração direta e de estatais. Transfere-se, assim, recursos que deveriam custear atendimento do SUS para assegurar benefícios a uma minoria de afiliados. Cabe lembrar, também, a existência de “generosas” isenções tributárias (dedução do imposto de renda) que totalizam até 20% do faturamento das empresas privadas de saúde.
A melhoria da gestão, do controle social e da fiscalização da aplicação dos recursos públicos da saúde são condições iniciais para a melhoria do SUS. A profissionalização do médico e o fim do sistema “misto” consultório combinado com o “bico” do emprego público e/ou prestação de serviços a grupos privados de saúde é, também, outro passo importante a ser dado.
Aliás, esta é uma bandeira recentemente assumida pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, o SIMERS. Há anos dirigido por lideranças ultracorporativas e conservadoras, de claro caráter liberal-privatista, o sindicato médico do estado deu “um giro de 180 graus”. De uns tempos para cá “adotou” uma estranhíssima tese para quem conhece sua atuação e história. O SIMERS defende a necessidade da valorização do cargo de médico no serviço público como importante passo para a melhoria do atendimento. Ele teria, é claro, remuneração e prerrogativas das carreiras de estado. Em resumo, vantagens concedidas e gozadas hoje apenas por juízes, desembargadores e procuradores. Ironias da história.

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