“Itália é laboratório do totalitarismo moderno”
O mundo vive acontecimentos importantes. Em todas as épocas, alguém poderá dizer, o mundo vive acontecimentos importantes, mas, como a história acaba registrando mais tarde, alguns são mais importantes do que os outros. Neste momento, há eventos prenhes de significado e consequência ocorrendo justamente nas regiões apontadas como as mais civilizadas do planeta: Estados Unidos e Europa. Não se trata apenas da crise econômica e financeira e suas consequências perversas para milhões de pessoas. Trata-se, fundamentalmente, de uma certa degeneração do tecido social e político, com o florescimento de discursos racistas, xenófobos e profundamente autoritários. O atentado contra a deputada Gabrielle Giffords, no Arizona, é mais um evento que só vem confirmar os piores temores que vem sendo manifestados sobre o futuro dos Estados Unidos.
Não foi por acaso que a nova matança ocorreu no Arizona, Estado que se tornou uma das principais trincheiras do discurso ultra-conservador, especialmente contra os imigrantes. A crise econômica fornece o material necessário para adubar o solo do racismo e da xenofobia. Isso está ocorrendo, simultaneamente, nos Estados Unidos e na Europa, com uma perigosa contaminação da política por valores religiosos. Em entrevista ao jornal El País, em dezembro de 2010, Stefano Rodotà, professor de Direito Civil na Universidade de La Sapienza, em Roma, traça um quadro sombrio sobre o que está acontecendo na Itália e em outras partes da Europa:
Crescem a xenofobia e o racismo e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente europeu. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei. Aboliram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela.
Ex-dirigente do Partido Comunista Italiano, Rodotà fala com tristeza de uma Itália “triste e corrompida, que só olha o próprio umbigo e parece cada vez mais um apêndice do Vaticano”. Especialista em filosofía do direito e coautor da Carta Fundamental de Direitos da União Europeia, Rodotà denuncia a privatização do direito por uma “casta de notáveis” que forma juristas e advogados e cria as regras do direito global a mando das multinacionais, os “legisladores invisíveis que sequestram o instrumento jurídico, transformando uma mediação técnica em uma atitude sacerdotal”. Para ele, o evangelho do mercado, o poder político e a religião produziram “uma mercantilização do direito que abre caminho até para negociar os direitos fundamentais”.
A Itália, denuncia Rodotà, tornou-se uma laboratório do totalitarismo moderno:
A Itália é um laboratório do totalitarismo moderno. O poder, ao abusar do direito, privatizá-lo e tratá-lo como mercadoria, dá asas ao fundamentalismo político e religioso, e isso mina a democracia. Os bispos italianos não admitem testamento biológico; os alemães propuseram um texto mais avançado que a esquerda italiana. (…) Com o objetivo de angariar seu apoio para seguir governando, Berlusconi vendeu o Estado de Direito ao Vaticano, por quatro tostões.
E as relações entre política e religião, assinala Rodotà, recebem a benção do mundo dos negócios e das finanças:
Não tenho dúvida de que a saúde privada influi nas posições do Vaticano. Desde o Concílio tudo piorou, e hoje a Itália está sendo governada por movimentos como o Comunhão e Liberação, que fazem negócios fabulosos com a ajuda e a anuência do governo. A má política sempre é filha da má cultura. A degradação cultural é a chave do problema. Espero que o regime político de Berlusconi acabe o quanto antes possível, mas nos recuperarmos deste deserto cultural levará décadas.
Berlusconi não é uma excentricidade italiana. Tampouco o Tea Party, no caso dos Estados Unidos. Em períodos de crise, o capitalismo tem filhos bizarros e perigosos para a democracia. E, em termos de bizarrice, salta aos olhos o fato de que muitos dos agentes responsáveis pela grave crise financeira de 2008-2009 já recuperaram seu prejuízo graças à ajuda dos contribuintes que, agora, são chamados a dar sua quota de sacrifício para a “recuperação das economias nacionais”. O mundo está, definitivamente, vivendo acontecimentos importantes.
Não há marasmo, apatia e, muito menos, fim da história. Em meio à turbulência, os mais ricos querem manter sua riqueza intacta e cobram sacrifícios do restante da população. E estimulam ou compactuam com qualquer discurso racista e xenófobo que ajude a desviar a atenção dos problemas centrais. Berlusconi não é o único a vender o Estado de Direito em nome dos bons negócios, dos seus bons negócios. Mas é um dos vendedores mais ousados. Vale a pena prestar a atenção no que está acontecendo na Itália e refletir sobre a entrevista do professor Rodotà (disponível em português na Carta Maior). A fusão entre fé, mercado e política é um pesadelo que ronda nossas cabeças neste início de 2011.
Não foi por acaso que a nova matança ocorreu no Arizona, Estado que se tornou uma das principais trincheiras do discurso ultra-conservador, especialmente contra os imigrantes. A crise econômica fornece o material necessário para adubar o solo do racismo e da xenofobia. Isso está ocorrendo, simultaneamente, nos Estados Unidos e na Europa, com uma perigosa contaminação da política por valores religiosos. Em entrevista ao jornal El País, em dezembro de 2010, Stefano Rodotà, professor de Direito Civil na Universidade de La Sapienza, em Roma, traça um quadro sombrio sobre o que está acontecendo na Itália e em outras partes da Europa:
Crescem a xenofobia e o racismo e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente europeu. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei. Aboliram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela.
Ex-dirigente do Partido Comunista Italiano, Rodotà fala com tristeza de uma Itália “triste e corrompida, que só olha o próprio umbigo e parece cada vez mais um apêndice do Vaticano”. Especialista em filosofía do direito e coautor da Carta Fundamental de Direitos da União Europeia, Rodotà denuncia a privatização do direito por uma “casta de notáveis” que forma juristas e advogados e cria as regras do direito global a mando das multinacionais, os “legisladores invisíveis que sequestram o instrumento jurídico, transformando uma mediação técnica em uma atitude sacerdotal”. Para ele, o evangelho do mercado, o poder político e a religião produziram “uma mercantilização do direito que abre caminho até para negociar os direitos fundamentais”.
A Itália, denuncia Rodotà, tornou-se uma laboratório do totalitarismo moderno:
A Itália é um laboratório do totalitarismo moderno. O poder, ao abusar do direito, privatizá-lo e tratá-lo como mercadoria, dá asas ao fundamentalismo político e religioso, e isso mina a democracia. Os bispos italianos não admitem testamento biológico; os alemães propuseram um texto mais avançado que a esquerda italiana. (…) Com o objetivo de angariar seu apoio para seguir governando, Berlusconi vendeu o Estado de Direito ao Vaticano, por quatro tostões.
E as relações entre política e religião, assinala Rodotà, recebem a benção do mundo dos negócios e das finanças:
Não tenho dúvida de que a saúde privada influi nas posições do Vaticano. Desde o Concílio tudo piorou, e hoje a Itália está sendo governada por movimentos como o Comunhão e Liberação, que fazem negócios fabulosos com a ajuda e a anuência do governo. A má política sempre é filha da má cultura. A degradação cultural é a chave do problema. Espero que o regime político de Berlusconi acabe o quanto antes possível, mas nos recuperarmos deste deserto cultural levará décadas.
Berlusconi não é uma excentricidade italiana. Tampouco o Tea Party, no caso dos Estados Unidos. Em períodos de crise, o capitalismo tem filhos bizarros e perigosos para a democracia. E, em termos de bizarrice, salta aos olhos o fato de que muitos dos agentes responsáveis pela grave crise financeira de 2008-2009 já recuperaram seu prejuízo graças à ajuda dos contribuintes que, agora, são chamados a dar sua quota de sacrifício para a “recuperação das economias nacionais”. O mundo está, definitivamente, vivendo acontecimentos importantes.
Não há marasmo, apatia e, muito menos, fim da história. Em meio à turbulência, os mais ricos querem manter sua riqueza intacta e cobram sacrifícios do restante da população. E estimulam ou compactuam com qualquer discurso racista e xenófobo que ajude a desviar a atenção dos problemas centrais. Berlusconi não é o único a vender o Estado de Direito em nome dos bons negócios, dos seus bons negócios. Mas é um dos vendedores mais ousados. Vale a pena prestar a atenção no que está acontecendo na Itália e refletir sobre a entrevista do professor Rodotà (disponível em português na Carta Maior). A fusão entre fé, mercado e política é um pesadelo que ronda nossas cabeças neste início de 2011.
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