A transição política no Ministério da Cultura já apresenta os primeiros sinais de mudança. A pergunta: em que medida o discurso de posse da Ministra da Cultura, Ana de Holanda (01), modifica ou reafirma as conquistas culturais ocorridas na gestão de Gilberto Gil e, de certo modo, garantidas por Juca Ferreira?
Uma análise nessa direção deve nos precaver, entretanto, de cair numa possível negatividade. Opor-se ao outro, diria Nietzsche, é próprio da fraqueza. A potência, ao contrário, quer afirmatividade. Por isso mesmo, o artigo em tela não esconde sua opção: afirma a importância da política cultural colocada em prática por Gilberto Gil e Juca Ferreira. Não por ser “propriedade” de alguém, mas por ter ocorrido uma apropriação da ordem da multidão conectada (e não das massas). E também porque foi objeto de discussão pelo país afora. Manifestamos, assim, nosso desejo de continuidade e, mais do que tudo, queremos o avanço social dos mecanismos de gestão pública implantados, entre eles a participação de amplos setores da sociedade civil.
Estamos no momento, portanto, de anotar e avaliar a transição política no Ministério da Cultura. Todas as nossas boas-vindas a essa pessoa que é Ana de Holanda. Se examinamos algumas de suas posições, o fazemos para discutir ideias e não pessoas. E alguns pontos merecem destaque.
Primeiramente, devemos lembrar que a nova Ministra, ainda antes de tomar posse, mostrara-se reticente em relação às propostas de mudança na Lei Rouanet e na Lei dos Direitos Autorais. O que levou alguns artistas, entidades e ativistas, principalmente aqueles ligados à cultura digital, a apresentar uma Carta Aberta à Presidente Dilma e à Nova Ministra (01).
Entre outros pontos, a Carta mostra uma preocupação com um possível retrocesso nas discussões sobre a Lei dos Direitos Autorais. Segundo o documento, a atual legislação por demais restritiva, anterior à chegada das novas tecnologias, sendo “inadequada para representar a pluralidade de interesses e práticas que giram em torno das economias intelectuais”.
Na posse, a nova ministra não tocou no assunto da Lei Rouanet e na Lei dos Direitos Autorais, porém o seu discurso mostra onde está o foco da mudança. A esse respeito, três tópicos podem ser destacados de sua fala: a) a centralidade da “criação” e o lugar do “artista”; b) a ênfase no acesso ao consumo cultural, c) a visão de que no meio rural é necessário uma melhor distribuição de cultura.
A ideia de colocar a criação como centro da política cultural pode ser examinada com mais atenção. Ana de Holanda considera todos os fazedores de cultura (da festa ao espetáculo, passando pelo artesanato), como “criadores”. Não sabemos, ainda, como isso será conduzido pelo novo Ministério da Cultura. No entanto, ela mesma diz afirma, nessa “centralidade”, o lugar do “artista”.
Notemos que a gestão de Gilberto Gil deslocou o foco da questão. Até então, pode-se dizer que o “sistema das artes” ocupou, de certo modo, o “centro” das políticas de cultura. E os debates se davam estritamente entre aqueles que eram, corporativamente, credenciados para tal. E quem os credenciava? O “sistema das artes”, que se faziam representar corporativamente. Sem perder de vista o acúmulo que os setores institucionalizados acumularam em termos de discussão, Gil e Ferreira abriram outras dimensões. Já o “restante da cultura”, este entrava no debate perifericamente.
Entra em cena o conceito de diversidade cultural. A multiplicidade, não no sentido numérico, mas nas trilhas de Deleuze e Guattari (“uma multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões”), passa a tomar conta da pauta da cultura e do seu debate na sociedade civil.
Perguntamo-nos se não ocorreu, então, uma descentralização, dada geograficamente, mas também na relação entre as artes e o “restante” da cultura. Tal desmontagem não teria, por meta, o reconhecimento da existência de outros “centros”, mas sim um pensamento das “redes”. Esperamos que esse pensamento possa continuar sua multiplicação virulenta pelo país afora. E que a nova gestão não perca de vista a potência desse movimento.
Tudo isso não pode ser creditado a uma concordância geral. Há um intenso debate sobre os ganhos e as perdas dessa política de cultura. Incluindo a necessidade de ajustes, de melhorias etc. O discurso de posse de Ana de Holanda não deixa de ser uma reviravolta, ou uma necessidade de retomar o que ela chamou de “centralidade da criação”. Ninguém questiona a existência de um mercado das artes. Entrar por esse caminho é ficar retido num armadilha: ser contra ou a favor. E o ato de pensar será apenas uma recognição apaixonada. Não vamos por aí.
Vejamos, por um instante, as categorias de “artista” e de “criador”. Elas se fizeram através de uma construção histórica. Para dizer com Jacques Ranciére, tal construção supõe um tipo de “partilha do sensível”. Às partes já estão definidas suas participações: a divisão entre criadores e consumidores, por exemplo. E acrescenta-se: a definição mesma, como sendo de interesse público, de uma categoria tal como a de “consumidor” de cultura.
Mas a ideia de centralidade supõe, ainda, uma relação com as suas “periferias”, por assim dizer. Supõe distribuição a partir de um “centro”. As artes são pensadas como núcleos substanciais. A ideia de redes, ao contrário, não supõe centralidades.
Engana-se quem acredita que as “artes” e os “artistas” desaparecem no conceito de redes. Entram em devir. Operam nas vizinhanças, nas zonas de indeterminação, nos hibridismos e mestiçagens. Não se definem mais pelos núcleos duros e substanciais.
Nesse aspecto, surge uma nova polarização: ter em mente que somente uns são “artistas” ou que todos o são. Quando Joseph Beuys revoltou-se contra o sistema das artes, afirmando que todo indivíduo é um artista (desde que mostre sua ferida…), ele quis dizer que não há mais o “centro” desse sistema. E mais: não há sistema. Portanto, não são réplicas de “arte”, ou de “artistas”, que uma política pública deve favorecer. Não se trata de elitismo x populismo. É necessário outro operador: o de uma política do sensível. Por isso, é necessário pensar em redes mais do que em centralidades. Até porque, tudo requer e exige ser uma centralidade: saúde, educação, arte, cultura, sociabilidade etc.
O que são as redes? Márcia Oliveira Moraes explica:
“Do ponto de vista topológico, uma rede é caracterizada por suas conexões, seus pontos de convergência e bifurcação. Ela é uma lógica de conexões, e não de superfícies, definidas por seus agenciamentos internos e não por seus limites externos. Assim, uma rede é uma totalidade aberta capaz de crescer em todos os lados e direções, sendo seu único elemento constitutivo o nó.”
Podemos dizer que, nos últimos anos, a cultura foi tomada por uma programática de redes. Basta pensar nos Pontos de Cultura. Gilberto Gil, logo que assumiu, falou que seria preciso realizar um “doin-antropológico” para entende a força da cultura brasileira. Cada “ponto”, nesse sentido, seria um “nó”, ele conecta com outro, sendo antes um regulador de fluxos do que uma amarra.
Num artigo sobre as conquistas da gestão Gil e Ferreira no Ministério da Cultura, o poeta Makely Ka observa que
“durante esses anos houve uma intensa movimentação, tanto em listas virtuais quanto em encontros presenciais de dezenas de milhares de agentes, entre eles artistas, produtores, pesquisadores, gestores, jornalistas e cidadãos em geral interessados em discutir políticas públicas para a cultura. Foram organizados fóruns onde se discutiu exaustivamente cada ponto considerado importante nas respectivas áreas. Mais do que simples consultas, as conferência de cultura se transformaram numa demonstração vigorosa do exercício democrático com a capacidade de anular, por si, qualquer possibilidade de clientelismo de um lado e de dirigismo por outro. Isso em cada setor, mas também transversalmente.”
Desse modo, preocupamos com a mudança da ideia de “redes” para a ideia de “centralidade” na “criação” e, mais ainda, no “artista”. Daí resulta a ideia de uma ênfase no acesso do consumo cultural (do centro para a periferia) e de que no campo é preciso uma “distribuição” de cultura. Como colocou bem Ivana Bentes no twitter, o meio rural é produtor de cultura, o que lhe falta é justamente uma política pública de cultura.
Mais uma vez, é preciso afirmar que não podemos cair num novo tipo de opção binária: ou “arte”, ou “cultura”. O acesso aos bens e produtos culturais faz parte da política. O que nos preocupa é a mudança operada no plano que irá conduzir esses termos. Na ideia de “centralidade”, você terá a reafirmação de um núcleo de mercado e suas vias de distribuição. Com as redes, o pensamento, como vimos, é outro. E nesse aspecto, sim, a arte volta, junto com o artista, a ocupar não “um lugar” central, mas a operar disjunções, passagens, mudanças de estado, rupturas etc. Como diz Robert Filliou, do Fluxus,“arte é o que faz a vida ser mais interessante que a arte”.
“Cultura” como diversidade e “arte” não são necessariamente opostos e podem ser complementares. Não a partir de núcleos substanciais, mas sim a partir de suas próprias variações. E é por isso que a ideia de uma universalidade abstrata, seja em arte, ou em cultura, não faz o menor sentido. O que temos o tempo todo é uma guerrilha cultural. São ocupações territoriais. E é isso o que está acontecendo nesse momento de transição política. E necessariamente, uma política para as linguagens artísticas é o que mais reivindicamos. Mas não nos termos corporativos e nas linhas segmentadas.
As redes não seriam uma nova oposição binária ao sistema das centralidades. Elas indicam, antes de tudo, a superação desse paradigma. Seria um equívoco, portanto, utilizar o mesmo modus operandi das territorialidades. Esta é uma estratégia de política sedentária: captura e acúmulo, com uma desconfiança crescente do que não é idêntico. Como dizem Deleuze e Guattari: uma estratégia nômade exigiria “desterritorializar o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritorializar-se a si mesmo renunciando, indo a outra parte…”.
Isso afeta também as relações com o Estado. Mas isso já é assunto para outra abordagem. Por enquanto, cabe sim ir à luta, com a rede na mão.
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