sexta-feira, 19 de novembro de 2010

as Academias de Sião

Clube de Leituras (com Brasiliana):
"As Academias de Sião", de Machado de Assis

o biscoito fino e a massa

Esta é uma edição do Clube de Leituras em parceria com o maravilhoso projeto Brasiliana USP Digital, onde recomendamos que leia "As Academias de Sião", de Machado de Assis. A única regra do Clube é a proibição ao pedido de desculpas por não ser especialista em literatura.

Alguma tinta já foi gasta para elucubrar sobre se Borges teria ou não conhecido algum texto de Machado de Assis. Nessas matérias, costuma ser impossível ter certeza e, mesmo tendo-a, impossível determinar qual o grau de “influência” de um texto sobre o outro. Tendo sido Borges um sujeito que não escondia seus linques, tenho lá minhas dúvidas mas, em todo caso, é um exercício inútil. Independente disso, “As Academias de Sião” é um conto protoborgeano de Machado, não há dúvidas.

“Academias” talvez seja o espécimen mais acabado do flerte de Machado com o fantástico em sentido estrito (Darlan Luna, em trabalho de doutorado para a UFF, conta dezesseis[pdf]). Ao contrário de variantes posteriores, mais presas a fórmulas, como o realismo mágico, no fantástico não há surpresas inverossímeis “maravilhando” o leitor. A suspensão da descrença ocorre de forma imediata, como nos contos de fadas (apesar de que há alusões a lugares “reais”, como Sião, que remete a Jerusalém *). Já na segunda frase de “Academias”, o leitor sabe que a verossimilhança realista está suspensa. É, literalmente, um mundo imaginário, como Tlön Uqbar, Orbis Tertius. Fantástico em estado puro, como teria apreciado Borges, que gostava dos gêneros reduzidos ao seu núcleo essencial.

Em “Academias”, no entanto, o mundo imaginário aparece para compor uma alegoria de algo que só aflora em Borges como denegação, espaço proibido, um não-tema: o gênero e o sexo. Em época de definições “científicas” tão fixas sobre o que eram o masculino e o feminino, Machado, sabiamente, prefere lidar com a caracterização deles em terreno fantástico, fabular: Kalaphangko é rei, homem, mas tem a alma feminina, definida como “olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas” (a alma masculina, por oposição a isso, não se sabe o que seja: o conto não nos diz, a não ser por pistas dadas depois da troca de almas). A guerra entre interpretações—seriam as almas dotadas ou não de masculinidade ou feminilidade, marcadas ou não em gênero, sexuadas ou não, neutras ou não—gera a guerra civil que leva à reorganização baseada na academia de sábios, uma espécie de gestora da Loteria da Babilônia que administra o consenso.

Só a bela Kinnara, mulher em alma masculina, aprova o terror pós-apocalíptico. Definida inicialmente (antes da troca de almas) como búfalo com penas de cisne, ela é o protótipo da mulher feminina fisicamente mas poderosa, viril, “masculina”, dominadora: consegue do rei da declaração de que a tese das almas não-sexuadas é herética, e restabelece-se a paz. Até aí, claro, poder-se-ia dizer que, apesar de almas estarem em corpos “trocados”, Machado trabalha, como aponta a Profa. Marta Cavalcante de Barros em sua tese (pdf, p.54 passim), com definições tradicionais, positivistas do que é o masculino e o feminino (como também notou Milton Ribeiro). Seria assim, claro, se a primeira parte não tivesse sido um componente do plano de Kinnara: a troca de almas.

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