Entrevista com Prof. Carlos Eduardo Rebello de Mendonça sobre Trotski
o biscoito fino e a massa
O professor Carlos Eduardo Rebello de Mendonça, da UERJ e da PUC-RJ, acaba de escrever um belo livro. O que segue é minha entrevista com ele sobre Trotski: Diante do Socialismo Real
(Faperj / FGV, 2010), que já li e recomendo.
1. Quem leu León Trotski, mesmo em tradução, não costuma discordar: entre as figuras políticas do marxismo do século XX, foi o maior escritor e o mais poderoso no manejo da retórica. Ao mesmo tempo, foi o mais inapelavelmente derrotado na política na última década e meia da vida. Fale um pouco, por favor, dessas e de outras singularidades de Trotski.
Acredito que o paradoxo maior da carreira de Trotski está nele ter sido, na definição gramsciana da palavra, acima de tudo um intelectual, alguém que a partir de determinadas premissas, foi capaz de desdobrar sua concepção de mundo até as suas últimas conseqüências lógicas. No entanto, havia um lado do intelectual Trotski que nada tinha de gramsciano: sua indiferença freqüente ao seu papel “orgânico”, prático, de adequar esta visão geral de mundo às tarefas concretas do momento. Exatamente por isso, o ponto de inflexão da carreira política de Trotski esteve na sua relação com Lenin que, por mais que fosse um escritor pedestre e até mesmo um filósofo “vulgar”, no dizer de Zizek, foi capaz precisamente daquilo que Trotski sempre teve a maior dificuldade: adequar as suas posições políticas às tarefas práticas do momento. Trotski, mais de uma década antes de Lenin, já havia intuído o caráter socialista da Revolução Russa, ao qual Lenin só aderiu em 1917, no discurso da Estação Finlândia; mas o mérito de Lenin foi o de só sustentar esta posição publicamente quando percebeu a possibilidade de formar um consenso em torno dela. Trotski só foi capaz de funcionar como político prático enquanto em associação com Lenin. Quando Lenin esteve hostil – antes de 1917 – assim como depois da sua morte, Trotski exerceu um papel importante como visionário, como alguém capaz de perceber desenvolvimentos futuros, mas ao preço de sua incapacidade de agir de forma efetiva no momento presente.
2. Como este livro se insere no projeto maior que você realiza sobre Trotski? Não é uma biografia nem uma reconstituição histórica pura e simples, eu gostei disso. O que é?
Trotski começou sua carreira política como herdeiro de uma tradição das esquerdas européias, que haviam passado o século XIX acumulando forças em torno de reivindicações do movimento operário e sindical, acabando por exercer uma hegemonia quase total sobre a oposição às insuficiências do liberalismo, o que permitiu ao proletariado do início do século XX começar a pensar em si mesmo como uma classe dominante alternativa à burguesia. Ora, em 1914, o estilhaçamento da II Internacional diante da Ia. Guerra Mundial – a escolha do patriotismo imperialista sobre o internacionalismo proletário – liquidou esta tradição socialista contra-hegemônica. É a partir daí que começam a surgir toda espécie de críticas ideológicas ao liberalismo burguês, que, no entanto, não se tem como tributárias do projeto socialista: a política de gênero, o nacionalismo anti-colonial, os fundamentalismos – sem falar na emergência do fascismo como contestação à ordem liberal pela direita através do ressentimento pequeno-burguês. A americanização do mundo a partir dos anos 1920, que internacionalizou os termos do debate político americano - onde o socialismo prima pela sua ausência - aprofundou este processo ainda mais. Ora, a base de toda a reflexão política do último Trotski, o “profeta banido” dos anos 1920 e 1930, está em partir da incapacidade da Revolução Russa de internacionalizar-se, para pensar em que termos o socialismo poderia reconstruir-se como ideologia contra-hegemônica diante de tantas propostas políticas concorrentes ou “alternativas”. A minha proposta, portanto, está em fazer uma série de comentários temáticos sobre os escritos de Trotski, mudando a ênfase do comentário, do Trotski anti-stalinista de Isaac Deutscher & Mandel – cuja importância é hoje apenas histórica – para Trotski como um intelectual socialista engajado num debate “prematuro”, avant la lettre, com o nosso mundo pós-moderno.
3. Para introduzir o leitor que não conhece a História da Revolução Russa: Lênin passa boa parte do último ano da vida trancafiado, querendo mas não conseguindo desautorizar Stalin. Trotski, chefe do Exército Vermelho e co-líder inconteste da Revolução, com duas décadas de ascendência política na luta, perde a parada, num jogo palaciano, para um toupeira intriguenta (com o perdão da figura), que estava para Trotski, intelectualmente, como Merval estaria para Chauí ou Kehl. Como seu livro ilumina essa tão bizarra, misteriosa e decisiva cena?
Hegel, em algum lugar, escreveu que os grandes homens que não conseguem mais apoiar-se no Espírito do seu tempo (como Napoleão ao voltar de Elba) simplesmente caem no chão. Como o próprio Trotski acabou reconhecendo à época, o refluxo conservador da Revolução Russa, a fadiga do Partido Bolchevique diante do fracasso da revolução européia, encontrou em Stalin o seu porta voz (inclusive porque Stalin era um velho bolchevique, enquanto Trotski tinha passado a maior parte da sua vida revolucionária pregressa como um franco atirador radical que atacava os bolcheviques de uma posição puramente pessoal) e deixou Trotski diante da seguinte escolha: ou dar um golpe militar – e virar um genérico de Stalin - ou sustentar posições impraticáveis naquele momento com vistas a um futuro incerto e não-sabido. Ele escolheu a segunda posição, com péssimas conseqüências para si mesmo, mas salvou a sua relevância intelectual futura.
4. Seu livro apresenta, acredito, um poderoso argumento contra os anticomunistas que tenta(ra)m tomar a processo de consolidação do autoritarismo burocrático na Rússia e depois URSS com o stalinismo como uma espécie de sina ontológica, essencial de qualquer processo revolucionário. Você daria uma canja do que o leitor vai encontrar no desenvolvimento desse argumento?
A História não se repete (a não ser como farsa, dizia Marx) e diante dos problemas objetivos do capitalismo (a riqueza social posta a serviço de finalidades anti-sociais, dizia Deutscher) o socialismo é algo que precisa ser pensado. É infantil pensar que tal não implicará em problemas (bem) sérios, mas certamente serão problemas outros que não os da URSS dos anos 1930, ou da China dos anos 1960...
5. Conversando uma vez, num grupo grande, com Slavoj Żižek, ouvi dele algo como: “gosto muito de Trotski, mas ouvindo alguns trotskistas tem-se a sensação de que se Trotski, e não Stalin, tivesse vencido a disputa em 1923-26, o mundo teria sido outro e tudo teria sido maravilhoso. Isso é muito ingênuo.” Como você se situa ante essa objeção?
Maravilhoso certamente não seria, mas seria um mundo talvez mais interessante. Se Trotski tivesse chegado ao poder nos anos 1920, ele estaria limitado pelo fato de ser um hiper-Hugo Chávez dirigindo uma URSS politicamente militarizada, mas uma coisa é certa: ele certamente teria colocado todo o peso político e econômico da URSS na tentativa de organizar uma Frente Única antifascista na Alemanha e em estimular a Revolução Chinesa. Logo, é de esperar-se que neste mundo alternativo, o nazismo e o militarismo japonês tivessem um papel bem menor do que tiveram no mundo real – mas ao preço de que uma Alemanha e uma China, sob influência soviética, atrairiam contra si uma frente de governos capitalistas – logo, possivelmente seria um mundo em que a IIa. Guerra Mundial e a Guerra Fria estariam “fundidas” num único processo. Se há algo de “bom” nisso, estaria no fato de que seria um mundo onde as lutas ideológicas seriam mais “normais”, mais preto no branco, esquerda vs. direita como o grande eixo de todas as questões.... Também não haveria Pearl Herbour, a “Solução Final”, nem os expurgos de Stalin, mas haveria coisas que nem podemos imaginar...
6. Há uma visão, mesmo entre trotskistas, de que Trotski se excedeu no episódio da militarização do trabalho e que isso foi um erro que favoreceu a burocratização futura. Você discorda. Dê, por favor, ao leitor menos familiarizado, o contexto do que era a Rússia na virada e começo da década de 1920 e seu argumento sobre as escolhas de Trotski naquele momento quanto à militarização do trabalho.
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