quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

torturas e torturados

Os livros de denúncia da tortura após 64


por Flamarion Maués




Com o golpe de 1964, a tortura voltou a ser utilizada como arma de repressão política. Apresentarei aqui, em duas partes, alguns dos primeiros livros publicados no Brasil que denunciaram a tortura a dissidentes políticos após o golpe. Trata-se de um levantamento preliminar, apenas de obras editadas até 1979.

A tortura foi certamente o mais vil e covarde método utilizado pela ditadura brasileira de 1964 contra seus adversários políticos. As vítimas da tortura levam suas marcas para sempre. Não há como apagá-las. É um mal que não tem fim, um crime cujas sequelas são permanentes e atingem também os familiares e amigos das vítimas.

O golpe de 31 de março de 1964 desencadeou uma onda de violência no país. Logo em seguida à derrubada de João Goulart, teve início a repressão, por meio da “Operação limpeza” e dos IPMs (Inquéritos Policiais-Militares), que tinham como objetivo desarticular os setores de esquerda e todos aqueles que apoiavam o governo Jango. E ao contrário de uma certa imagem que foi construída posteriormente, esse período de 1964-65 foi fortemente repressivo.

No mesmo ano do golpe surgiram as primeiras denúncias de torturas: “A campanha de imprensa contra a tortura em 1964 foi o primeiro exemplo de um movimento organizado de oposição da opinião pública suficientemente forte para impor modificações nas estratégias do Estado de Segurança Nacional”, registra Maria Helena Moreira Alves no livro Estado e oposição no Brasil – 1964-1984.

Após a primeira etapa caracterizada pela “Operação Limpeza”, a estrutura de repressão foi reorganizada sob novos moldes a partir de 1969, com o fim de combater e eliminar a dissidência política, principalmente a armada. A partir de 1969, a organização de um sistema repressivo altamente centralizado tornou-se uma das marcas do regime. Em julho daquele ano surgiu a Operação Bandeirante, em São Paulo, que inovou ao criar uma estrutura mais dinâmica e ágil para a repressão, em que o comando estava com as Forças Armadas, mas que incluía também setores das polícias civis estaduais.

O modelo teve êxito e foi institucionalizado em 1970, com a criação dos Destacamentos de Operações de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Entre 1969 e 1975 foram mortas sob tortura ou desapareceram a grande maioria das pessoas assassinadas pela ditadura brasileira.
A repressão e a tortura não tiveram nada de improvisado, não se tratou de “excessos” de um ou outro militar mais violento. Foi algo planejado e estruturado, e realizado sob o comando das Forças Armadas, que empregaram seus homens, instalações e conhecimentos para esse fim.

Cultura do medo


Além de afetar profundamente as suas vítimas, a tortura tem também um lado social, político, da maior importância. Como destaca Maria Helena Moreira Alves no já citado livro: “O uso generalizado e institucionalizado da tortura numa sociedade cria um ‘efeito demonstrativo’ capaz de intimidar os que têm conhecimento de sua existência e inibir a participação política”. De acordo com a autora, no Brasil “A evidência da repressão de Estado criou uma ‘cultura do medo’ na qual a participação política equiparou-se ao risco real de prisão e conseqüente tortura [e] coibiu a participação em atividades de oposição comunitária, sindical ou política”.

E continua Maria Helena Moreira Alves: “Esta cultura do medo tinha três importantes componentes psicológicos: o primeiro era o silêncio imposto à sociedade pela rigorosa censura [...] Este silêncio imposto, provocou profundo sentimento de isolamento naqueles que sofriam diretamente a repressão e/ou exploração econômica . [...] Amplos setores da população viram-se marginalizados e isolados de outros segmentos que poderiam oferecer-lhes apoio e ajuda. [...] Parecia impossível enfrentar o poder do Estado. Um sentimento de total desesperança passou a prevalecer na sociedade [...] Silêncio, isolamento e descrença eram os fortes elementos dissuasivos da ‘cultura do medo’”.

Por isso os livros que primeiro denunciaram a tortura no Brasil foram importantes, pois deram a sua contribuição para romper este cerco da “cultura do medo”, o cerco do silêncio, do isolamento e da descrença.

A tortura após o golpe

Como já mencionamos, ainda em 1964 surgiram notícias de torturas, que deram origem, em 1966, ao primeiro livro de denúncia desses fatos: Torturas e torturados, de Márcio Moreira Alves (Rio de Janeiro, Idade Nova, 1966). O livro foi proibido e recolhido pelo governo federal, sendo liberado pela justiça em julho de 1967, ano em que saiu a segunda edição da obra. É um livro documental, que procura registrar os casos de tortura ocorridos naquele período da forma mais detalhada possível.

Houve, ainda que de forma muito limitada, denúncias das atrocidades desde 1969, principalmente por meio de cartas enviadas à imprensa por familiares de pessoas que eram presas ou sumiam repentinamente. Algumas dessas cartas foram publicadas. Houve também denúncias levadas a público por bispos e pela CNBB, ou pela OAB, mas a sua repercussão era muito reduzida, em virtude do clima político ditatorial e da censura.

Em 1969 surgiu o “Documento de Linhares”, elaborado por presos políticos da penitenciária de Linhares, localizada na cidade de Juiz de Fora (MG), e que denunciava as torturas e suas conseqüências dentro das prisões. “Este foi o primeiro documento do gênero, elaborado no Brasil e encaminhado às autoridades brasileiras, que ignoraram o seu conteúdo, mas foi amplamente divulgado no exterior”, relata o livro Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil.

No exterior houve muitas denúncias das torturas praticadas no Brasil. Na Europa, na América Latina (principalmente antes dos golpes no Chile e na Argentina) e nos Estados Unidos organizaram-se grupos de exilados, de familiares e de pessoas – geralmente ligadas à universidade e a igrejas – que produziram dossiês sobre as violações aos direitos humanos promovidas ou toleradas pela ditadura brasileira. Foram ações de grande importância, pois, apesar de praticamente não repercutirem no Brasil, devido à censura, tiveram repercussão internacional, criando constrangimentos ao governo. Ao reunirem farta documentação sobre casos de torturas, mortes e desaparecimentos, esses grupos também colaboraram para o surgimento das primeiras publicações – boletins, jornais e, depois, livros – editadas no exterior sobre o assunto. Formaram também a memória desses casos.

No Brasil, todavia, prevalecia o silêncio sobre a repressão e as torturas.
(Continua no próximo artigo)

Este artigo tem como base a comunicação apresentada no evento “200 anos da imprensa no Brasil”, organizado pelo CEDEM/Unesp, nos dias 8 e 9 de outubro de 2008. “O poder da palavra impressa” foi o título de uma das mesas que compuseram o evento.

Flamarion Maués é editor de livros e historiador


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