Alípio Freire: A impunidade de ontem é a farsa de hoje
ViomundoPor NPC
Em entrevista, Alípio Freire destaca a urgência da abertura dos arquivos da ditadura
O tema da abertura dos arquivos oficiais voltou à tona no final de junho, quando foi anunciado que o Governo teria dado sinalizações de recuo em relação ao tema. Apesar de afirmar a possibilidade de “sigilo” em relação a alguns documentos, os referentes à soberania nacional e questões de fronteira, a postura do Governo preocupou muitos familiares de desaparecidos e entidades de defesa dos direitos humanos que enxergam possibilidades de manter o silêncio em relação ao período da ditadura civil-militar (1964-1985).
Para falar sobre o assunto, o BoletimNPC entrevistou por e-mail o jornalista e ex-preso político Alípio Freire, militante da Ala Vermelha. Nessa entrevista, ele reafirma a importância da abertura dos arquivos como enfrentamento à História Oficial construída pelas elites em função de seus interesses. Ele ainda apresenta dados da violência cometida durante o período da ditadura militar, e fala das conseqüências, hoje, da impunidade aos crimes cometidos pelos agentes do Estado. Por fim, defende a criação de uma Comissão Nacional da Verdade e a organização dos familiares de desaparecidos e entidades autônomas para pressionar o Governo em relação à consolidação da justiça. Confira a entrevista.
por Sheila Jacob
Para começar, qual seria, na sua opinião, a importância da abertura dos arquivos da ditadura?
No atacado, eu diria que é fundamental e indispensável que a classe trabalhadora e o povo, ou seja, os explorados e oprimidos, conheçam a realidade e a História do país onde vivem, e do qual são responsáveis pela produção de todas as riquezas, bem como por sua circulação. Nos arquivos está toda a documentação de como a classe trabalhadora, suas organizações, seus representantes e os que falaram em seu nome foram vistos, controlados, perseguidos e/ou cooptados pelas classes dominantes. Os arquivos são informações organizadas, e todos sabemos que informação organizada é poder. Portanto nós, que entendemos que a democracia que reivindicamos significa igualdade, mais até do que liberdade, não podemos abrir mão do direito (igualitário) de conhecer essas coleções de conhecimento organizadas pelas classes dominantes e seus aliados, as quais nos dizem respeito diretamente. Quero deixar claro que, quando insisto na questão da igualdade, é porque entendo que toda liberdade que não venha acompanhada de igualdade será sempre a liberdade do mais forte de dominar, explorar e oprimir o mais fraco. Isto aprendi com os que vieram antes de mim…
Os arquivos são, portanto, importante fonte, ainda que não única, para as diversas versões e imagens que se possa fazer da nossa história. Não abrir os arquivos significa deixar a sociedade sempre à mercê de uma História Oficial construída pelas elites, em função de seus interesses, de sua perpetuação em termos de poder econômico, político e ideológico.
E o que você diria sobre os objetivos do golpe de 1964?
Temos, antes de tudo, de entender que o golpe, e o regime de terror e super-exploração dos trabalhadores e do povo que implantou, significou uma ruptura institucional e uma fratura histórica desencadeadas pelo grande capital nacional e internacional e seus aliados, contra um programa de reformas de interesse popular. Estas eram as chamadas Reformas de Base, que unificavam, naquele momento, um conjunto de projetos em torno de um desenvolvimento nacional independente, e fundado na distribuição de renda.
Os golpistas, ao contrário, representavam projetos de desenvolvimento fundados na concentração de rendas, subordinados aos interesses do grande capital internacional e à política dos Estados Unidos.
O ponto número um desse segundo programa era a derrubada do Governo do presidente João Goulart – o Jango. Uma pesquisa feita pelo Ibope em março de 1964, às vésperas do golpe, mostrou que a maioria esmagadora dos brasileiros apoiava as reformas que o presidente Jango propunha, e votaria pela reeleição do presidente, caso isto fosse possível. Reverter esse quadro, portanto, exigia não apenas dar o golpe, como também implantar um regime fundado na violência. Ou seja, a violência não foi algo acidental ou que em alguns momentos foi praticada nos “porões do regime”, fugindo ao controle dos militares e civis que dirigiam o País. Era parte constitutiva e inseparável do programa dos golpistas.
O que vimos depois foi que, tendo como objetivo um avanço na concentração de riquezas, na ampliação dos seus lucros e poder, o Estado, controlado pelo grande capital e seus aliados, utilizará impunemente todos os meios de repressão e violência contra a classe trabalhadora, o povo, seus representantes, os que falavam e agiam em nome dos interesses do conjunto, seus movimentos e organizações.
Qual a dimensão que assumiu essa violência cometida contra a população?
De acordo com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (dados do início de 2010), durante a ditadura do pós-64, 30 mil pessoas foram torturadas, e 308 mil investigadas. Além disto, milhares de opositores tiveram de viver na clandestinidade, e outros acabaram por se exilar, para não cair nas malhas da repressão. Dentre tantos crimes, os mais graves: por volta de 500 cidadãos foram assassinados, dos quais cerca de 150 são considerados “desaparecidos”. Ou seja, seus cadáveres foram ocultados.
De qualquer ponto de vista que se proponha a consolidar a democracia em nosso país, é urgente e indispensável a apuração dos crimes que acabei de elencar, crimes atentatórios contra os direitos humanos e, portanto, imprescritíveis. É preciso identificar seus responsáveis diretos e indiretos e submetê-los a um processo legal, público e com o mais amplo direito de defesa. Após comprovadas as responsabilidades, puni-los, nos termos da lei.
Peguemos um exemplo que considero o mais grave por conter e envolver todos os demais crimes: o caso dos “desaparecimentos forçados”, ou seja, dos assassinatos seguidos de ocultação de cadáveres. Nestes casos, somam-se cinco crimes contra os direitos humanos: sequestro; manutenção em cárcere clandestino; torturas; assassinato e ocultação de cadáveres.
Vejamos:
Durante a ditadura, seus opositores não eram jamais detidos ou presos por ordem judicial, o que configura, portanto, um sequestro. Em seguida, eram levados para dependências de instituições do Estado, como quartéis e delegacias, ou para casas, sítios e campos de concentração, como aconteceu no caso da Guerrilha do Araguaia. Essas casas e sítios eram locais mantidos com verbas públicas, ou provenientes de doações de grandes empresários. Nesses espaços, os opositores permaneciam encarcerados por tempo indeterminado, escondidos das suas famílias, advogados e amigos, e sob constantes interrogatórios – ou seja, em cárceres clandestinos. Os interrogatórios eram sempre feitos sob torturas, durante as quais cerca de 500 homens e mulheres foram assassinados. Destes, cerca de uma centena e meia foi dada como “desaparecidos”: tiveram seus cadáveres ocultados.
Estamos em 2011, e esses crimes de “desaparecimento forçado” foram cometidos entre 47 e 31 anos atrás. Desde então, os familiares dos “desaparecidos” buscam seus restos mortais, para que possam consumar suas despedidas e luto, velar e lhes garantir sepultura digna. Ao longo de tantos anos, muitos já morreram sem conseguir sequer consumar o luto por seu parente.
Acredito que, com esse exemplo que acabo de descrever, esteja mais que destacada a urgência da abertura dos arquivos da ditadura. Mais ainda: fica clara a importância de insistirmos na questão dos “desaparecidos”. Esse fio, se for desembaraçado e puxado, nos possibilitará desvendar todos os crimes contra os direitos humanos a que nos referimos anteriormente. Há ainda outros crimes que somente agora começam a ser descobertos como, por exemplo, a existência de filhos de militantes “desaparecidos” no Araguaia, dos quais não se tinha notícia.
Quais são as consequências dessa impunidade para a sociedade atual?
É exatamente a impunidade dos criminosos de ontem que estimula, naturaliza, banaliza e torna impunes os crimes, chacinas e massacres do presente. Hoje esses mesmos crimes são cometidos contra a população de baixa renda das periferias das cidades; contra os trabalhadores rurais e camponeses pobres; estão presentes nas torturas e assassinatos nas sombrias salas de “interrogatório” das delegacias e outros órgãos públicos do presente.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, entre 1999 e 2008 foram assassinadas 365 pessoas no campo. A quase totalidade desses crimes permanece impune.
De acordo com a Ouvidoria de Polícia, no primeiro trimestre deste ano (2011), em São Paulo, a média diária de assassinatos de cidadãos por agentes da Polícia Militar (PMs) foi de 0,96. Quase todos impunes.
Nas periferias da cidade de São Paulo e da Baixada Santista, em maio de 2006, Policiais Militares trucidaram cerca de 600 pessoas. A maioria era de jovens negros, sem qualquer passagem anterior pela polícia, ou mandado de captura. Mesmo que fossem “bandidos”, o procedimento seria igualmente intolerável. São os chamados Crimes de Maio – que permanecem até hoje impunes.
A impunidade do ontem é a farsa do hoje. A impunidade do ontem é o cinismo do hoje. E em que irão se traduzir, no futuro, tanta farsa e tanto cinismo?
Sabemos que a proposta de abertura dos arquivos da ditadura vem incomodando certos setores e personalidades públicas. Por que será que se sentem tão ameaçados?
Assim como os perseguidos, os presos políticos, os torturados e os familiares de mortos e desaparecidos continuam vivos, o mesmo acontece com aqueles que dirigiram o país naqueles anos e que são responsáveis não apenas por todos os crimes contra os direitos humanos, como pela grande corrupção daquele tempo.
É do período do “milagre brasileiro” o surgimento de novas fortunas – entre civis e militares. Basta atentarmos para as novas oligarquias que emergiram no Nordeste naqueles anos. Alguns dos exemplos mais notórios são o senador, ex-presidente e beletrista José Sarney – no Maranhão, e o falecido senador e ex-governador Antônio Carlos Magalhães – na Bahia.
Entre os militares, os assaltos aos cofres públicos não foram menores. Por exemplo, o coronel Mário Andreazza é também um caso (ainda que não o único) a não ser esquecido. Ele foi ministro dos Transportes e do Interior de vários dos governos da ditadura, responsável, dentre outras coisas, pela construção da ponte Rio-Niterói e das obras da Transamazônica.
Além disto, durante aqueles anos, muitos militares de alta patente foram diretores de diversas empresas multinacionais que atuavam em nosso país – a maioria das quais continua a atuar.
Lembro ainda o escandaloso envolvimento de uma primeira-dama brasileira, num grande contrabando de pérolas do Japão, quando da inauguração da primeira linha aérea comercial Rio de Janeiro-Tóquio, em 1968.
Ora, se já podemos encontrar hoje tudo isto em arquivos de universidades, em coleções da imprensa popular, socialista ou de resistência, imaginem o que não poderemos descobrir nos arquivos da ditadura?
Isto, para não falarmos dos esquadrões da morte, o seu papel na profissionalização e monopolização do crime e sua íntima relação e promiscuidade com o Estado, os governos e o grande capital.
Como aconteceu na Alemanha de Adolph Hitler e na Itália de Mussolini, é próprio desses regimes esse entrelaçamento simbiótico entre as máfias, a direita, o Estado, os governos e o poder econômico. Todos sabemos que o empresário Henning Albert Boilesen contribuía financeiramente para a criação e manutenção dos aparelhos para-legais de repressão. Além disso, ele participava nas sessões de torturas, lado a lado com militares, delegados, policiais, membros de esquadrões da morte, do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Seu caso é o mais lembrado apenas pelo fato de ter sido executado, ou melhor, justiçado por um comando formado por duas organizações revolucionárias clandestinas: o Movimento Revolucionário Tiradentes – MRT, e a Ação Libertadora Nacional – ALN.
Ou seja, é toda essa imensa teia de relações criminosas que os arquivos podem nos revelar ou, pelo menos, fornecer importantes pistas.
É por essas e outras que figuras de “ilibada reputação” – como gostam de afirmar a respeito de si próprios –, como o atual vice-presidente Michel Temer; o ex-presidente cassado e hoje senador Fernando Collor de Mello; e o também ex-presidente, beletrista e hoje senador José Sarney, além de outros, tanto temem a abertura dos arquivos.
Você acha que as propostas de alteração do governo ameaçam a história do país, mesmo a presidenta Dilma tendo informado que estariam em sigilo “apenas” documentos que ameacem a soberania, a integridade do território e as relações internacionais?
Considero mais que legítima a preocupação da presidenta em preservar a soberania nacional e a integridade do nosso território. Trata-se de um dever legal seu, um dever constitucional ao qual deverá sempre se subordinar, na qualidade de chefa de Estado, ainda que eu não desconsidere a possibilidade (bastante provável) de que os “serviços de inteligência” das grandes potências – especialmente dos EUA – tenham cópias de toda, ou pelo menos da parte que lhes interessa dessa documentação. Além disto, as elites brasileiras devem saber exatamente do que se trata, já que foram elas que produziram.
Ou seja, apenas nós, os trabalhadores e o povo, seremos mantidos sempre na mais santa ignorância, manipulados por versões oficialistas da nossa História, onde os diversos golpes perpetrados pelo capital assumem versões heróicas. É assim, por exemplo, que a atabalhoada fuga da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, nos é servida como “Transmigração da família real”; a entrega do comércio do Brasil Colônia à Inglaterra se traveste de “abertura dos portos às nações amigas”; a quartelada de 15 de novembro de 1889 nos chega sob a pomposa rubrica de “Proclamação da República”; e por aí vai, até chegarmos à “Revolução Redentora” de 1964 (leia como se faz a construção do mito e a roubação da história - baitasar).
Já no que diz respeito à questão de “possíveis ameaças às relações internacionais”, estamos no terreno não mais fundamentalmente da chefa de Estado, mas da chefa de Governo, da sua estratégia e projeto político geral para o país e, especificamente, da sua política de relações internacionais. Como tal, trata-se, portanto, de matéria sempre discutível e passível de disputa. E para tornar ainda mais complexo o assunto, a grande mídia comercial atribui ainda à presidenta Dilma Rousseff declaração de que nada que diga respeito a violações dos direitos humanos poderá ficar sob sigilo.
Daí, então, algumas perguntas me vêm à cabeça. A Operação Condor; as “ciências” das torturas repassadas para o Brasil por agências de diversos países (pelo menos, EUA, França e Israel), e repassadas pela ditadura brasileira para outras ditaduras do nosso Continente; a presença da Marinha de Guerra Estadunidense em nosso litoral para, “em caso de necessidade”, dar cobertura aos golpistas do 31 de março; a participação direta do embaixador e do Governo dos EUA no golpe de 64; o envio de tropas brasileiras para invasão da República Dominicana (1965)… Essas e outras coisas, como serão classificadas e entendidas?
Apesar de afirmar o contrário, esta posição não abriria possibilidades de ainda se manter silêncio em relação a casos da ditadura?
Neste momento, sobretudo quando há um vai e vem do Executivo sobre esta matéria, o mais importante é entendermos que as organizações de defesa dos direitos humanos são (ou pelo menos deveriam ser), antes de tudo, forças independentes e autônomas, que se mobilizam em torno de programas e objetivos próprios. A eles se somam os movimentos pela defesa da memória política do país; os familiares de mortos e desaparecidos; as entidades de perseguidos e presos políticos etc. Todos esses grupos devem buscar se unificar em torno de uma plataforma comum, disputar junto à sociedade, acumular força e pressionar o Executivo e demais poderes da República para atenderem suas propostas.
Sinto-me na obrigação de registrar que considero a presidenta Dilma Rousseff uma importante aliada nessa luta. Necessitamos perceber isto, para não metermos os pés pelas mãos em busca de soluções imediatistas. Isto não significa, de modo algum, nos atrelarmos às suas decisões, mas manter a autonomia e independência dos movimentos e entidades empenhados nessa disputa, para sabermos que passo dar a cada recuo ou avanço do Planalto (destaque do baitasar). Além, é claro, da nossa capacidade de construir uma força (de pressão) que possa fazer frente às permanentes investidas da direita e da ultradireita. Meu entendimento se funda não apenas no passado da presidenta nos anos de ditadura, ou em suas declarações a respeito do papel e peso que os direitos humanos terão durante seu Governo. Funda-se, sobretudo, no importante e cuidadoso trabalho que desenvolveu acerca da unificação e organização dos arquivos, quando esteve à frente da Casa Civil – o projeto “Memórias Reveladas”.
Qual a importância, então, de criação de uma Comissão da Verdade no Brasil?
Toda. Sua missão é recuperar a objetividade factual do período sobre o qual se debruçará. Para cumpri-la, é indispensável que todos os arquivos referentes à matéria que investigará necessitam estar totalmente abertos e acessíveis.
Do meu ponto de vista, para que seja de fato “da Verdade”, a Comissão tem de recuperar seu caráter original definido no 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos, golpeado no final de 2009 pelo então e atual ministro da Defesa, doutor Nelson Jobim. Ou seja, deve retomar seu caráter de Comissão da Verdade, da Memória e da Justiça.
Neste sentido, muita gente tem se mobilizado, propondo emendas e outros dispositivos relativos às suas atribuições, e percebo que essa discussão tem avançado bastante em todo o Brasil. Do que eu conheço, o que há de mais avançado nesse sentido é o trabalho desenvolvido pelo Coletivo de Mulheres (de São Paulo) cuja proposta pode ser acessada, em forma de petição pública, através de http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N10720
Para encerrar essa entrevista, sugiro que o documento do Coletivo de Mulheres seja acessado, lido e, havendo concordância, que seja assinado e divulgado amplamente.
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