quinta-feira, 28 de outubro de 2010

a morte do general calçacurta - I

Esse é o seu cadáver, General.


Não acreditou na própria morte, mas ela está aqui. Tudo acaba General, até mesmo os desmandos dos canalhas. Às vezes demora, mas no fim todos se vão, tudo tem um fim.

Inclusive o senhor foi deitado abaixo, nunca acreditou que seria derrotado. Esqueceu que o tempo apaga tudo, corrói por dentro. Queria morrer dormindo, né General, tranquilo e não gritando como os passageiros das suas prisões, é isso, conseguiu

─ General Calçacurta!

─ Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém... Imploramos que a Tua bondade recaia sobre todos nós...

Eu sei, ainda descrê do acontecido, mas neste ataúde não sou eu, é a sua carcaça inconveniente que está depositada imóvel. Não tem mais jeito, parece que nem dia de luto oficial o senhor ganha. Li nos jornais, lá no assoalho da página, pequenas notas do seu passamento. Essa gente ou não lembra mais ou lhe querem ver pelas costas, quer dizer, anseiam por o senhor debaixo do tapete do esquecimento

─ Permite que como a Virgem Maria, abençoada Mãe de Deus...

Eu sou a última voz que escuta enquanto a força se desmancha desta cobertura de carne condecorada por cicatrizes venéreas. Isso mesmo, o seu entusiasmo se desarranja como a cera das velas que por certo, algum distraído lhe irá acender. Azar o meu, odeio velas. Tenho asma, a sua doença era outra

─ Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...

É, eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo, atravessar a rua e sumir. O General Calçacurta não pode mais renunciar, pois se finou. A vida desobrigou-se do dominador. Ela não tem nenhum sentido, é coisa de ir vivendo e ver no que vai dar. No seu caso, nós já sabemos no que deu, né? Muita porrada e gente desaparecida nas eternidades, também, foram lhe deixar solto, pra fazer o que bem entendesse. Perderam o controle

─ Sejamos contemplados com a Vida eterna e cantemos em Teu louvor...

Eu acredito que desta vida só se leva a nostalgia das saudades pela nossa ausência. Isso mesmo, General, carregamos pro túmulo apenas o pesar dos bêbados que ficam e o amor das putas. Essas não mentem, já sabemos quanto custa antes de usar os serviços de acolhimento. Não querem carinho, nem beijinho, apenas entrar, sair e, antes de abrir a porta, agarrar o preço concordado na cômoda. Não precisa dar adeusinho, nem fazer aceno de despedida, é bem isso, essa gente só tem na preocupação que o senhor não encosta mais no balcão e grita

─ Essa rodada é por minha conta, pode servir!

O puteiro levantava e saudava o General

─ A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...

Os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar. Afirmam que, talvez, com um pouco de sorte, lhe reste o ódio dos comparsas que se foram antes, desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho. Adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades e pôr as próprias mãos nos destroços

─ ... toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

Não é um ótimo dia, mas é um bom dia. Afinal, tem dia pra tudo

─ Até para morrer...

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