quarta-feira, 3 de novembro de 2010

moradores de rua

O estranho mundo dos moradores de rua

Fazendo Média

Por Jadson Oliveira, 03.11.2010


Debaixo do Viaduto do Glicério, eles fazem "festa" para as fotos, um exibe. Foto: Jadson Oliveira.


“Você eu conheço, já vi por aqui, mas tem muita gente que aparece uma vez, quer tirar foto da gente, chamo de ‘turismo de doação’, ah, não gosto não, gostei que vocês pediram permissão para tirar fotografia, está certo…” Era Maria, dona Maria, seria mesmo? falou o nome com má vontade, falou, falou, se irritou um pouco quando perguntei onde ela morava, talvez porque estava na cara que morava na rua. Falava com Lana e desconfio que ela me enquadrava no tal “turismo de doação”.

Estávamos entrando no simpático bairro da Liberdade, quase 10 horas da noite de um domingo, uma fileira de moradores de rua/trabalhadores de rua/mendigos, a quem Lana e Cesar ofereciam “um salgado, um suco”, sentados, deitados, de pé, pelos passeios e batentes. Mas, àquela hora, o estoque de uns 100 pãezinhos com manteiga e dois vasilhames de suco de maracujá já estava se esgotando. Uma parte da “clientela” lamentava: “Ah, dou azar… logo na minha hora acabou”, “oh, sentimos muito, fica pra outra vez, no próximo domingo”, consolava o caridoso casal.

No batente/porta da agência da Caixa Econômica/Liberdade. Foto: Jadson Oliveira.


Lana e Cesar posaram para uma foto como a festejar mais uma jornada cumprida. Todo domingo à noite, a partir das 7 horas, os dois têm uma missão: saem por ruas, geralmente do Centro Velho de São Paulo, puxando carrinhos carregados de pães, sanduíches, frutas e sucos e vão distribuindo pelas calçadas e pelos socavões escuros da grande cidade, onde transita e/ou se abriga uma gente um tanto diferente, pelo menos para olhos habituados a ver outras paragens, mais turísticas, vamos dizer assim. Fazem isso há um ano e meio. Os alimentos são doações que conseguem de pequenos comerciantes de bom coração, às vezes eles próprios compram algum ingrediente, a manteiga ou o açúcar, por exemplo.

Um mundo, de fato, clandestino, feio, obscuro

Desta vez, eles estavam sem carro e decidiram por um itinerário nas proximidades de Aclimação, onde residem. Desceram a Rua Bueno de Andrade e concentraram a distribuição dos pães e suco embaixo do Viaduto do Glicério, área onde “se esconde” muita gente, muito mais gente do que os passantes distraídos possam imaginar. Gente que está sempre por ali, que faz ponto por ali, que trabalha, geralmente coletando coisas pelas ruas, latinhas, papelão, metais, objetos que vão pra o lixo, saem do lixo e viram de novo mercadoria, de valor, às vezes até valor “agregado”, para usar o jargão do economês. Um mundo, de fato, clandestino, feio, obscuro, para nós, “bem nascidos” e/ou “bem sucedidos” nesta nossa emergente potência capitalista.
Cesar dá o suco, enquanto Lana é encarregada de dar o pão. Foto: Jadson Oliveira.


Um que diz viver da coleta e reciclagem de tais objetos conta uma incrível história: ele e mais quatro companheiros juntam peças de roupa e calçados e, de quando em quando, despacham, pelo Correio, para pessoas necessitadas do Norte e Nordeste. Diz que é paulista, é um trabalho voluntário, não ganham nada com isso. Mas vocês fazem parte de alguma entidade? Fazemos sim, o nome é Amigos e Amigas. E quem paga a despesa do Correio? Nós mesmos pagamos. Mas vocês despacham pra quem? Pras prefeituras. Prefeituras das cidades nordestinas? Sim, do Norte e Nordeste, repete.

Ao lado, um outro fala, fala, fala, mas ninguém entende nada do que ele diz, está bêbado (ou drogado, o que vem a dar no mesmo), não faz muita questão do pão e suco oferecidos. Outros e outros vão pegando o lanche, Lana dá o pão, enquanto Cesar dá o suco, eu sou chamado a colaborar segurando os copos plásticos, uns pedem mais de um lanche, para um amigo/uma amiga que está logo ali, encostado/deitado por ali. No vão mais amplo do viaduto se “descobre” bem mais gente, uma variada comunidade: uma bonita morena e um rapaz pegam sua comida e se sentam num canto, comem e depois cantam, cantam e ficam a cantar; uma moça branca, bem vestida, elegante, anda entre uns e outros, com ares de princesa; um rapaz bem humorado, quase negro, brinca com os cabelos longos meus e de Cesar, toca nas nossas orelhas e pergunta pelos brincos (ele usava brincos).

No lugar do suco de maracujá, por que não uma pinga?

Faltaram as fotos para ilustrar a “riqueza” do ambiente, Lana e Cesar avisaram não ser conveniente fotografar ali. Muitos estavam deitados, embaixo de cobertores e mantas, não era uma noite muita fria, mas sempre há uma pequena fogueira por ali, para esquentar, para alumiar. Uns se levantam para tomar seu lanche, outros se erguem e comem sentados na cama (não sei se escrevo “cama” com ou sem aspas). Um senhor idoso recusa o suco, pede uma pinga, “ah, pinga não temos, só suco”. Um outro pede ajuda a Lana para voltar pra casa, conta que é militar reformado, sua família o jogou na rua, tomou conta de sua pensão e ele vive agora abandonado.

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