O Cadáver do General Calçacurta
Mauro Marques
Esse é o seu cadáver, General.
Não acreditou na própria morte, mas ela está aqui. Tudo acaba General, até mesmo os desmandos dos canalhas. Às vezes demora, mas no fim todos se vão, tudo tem um fim.
Inclusive o senhor foi deitado abaixo, nunca acreditou que seria derrotado. Esqueceu que o tempo apaga tudo, corrói por dentro. Queria morrer dormindo, né General, tranquilo e não gritando como os passageiros das suas prisões, é isso, conseguiu
( General Calçacurta!)
(Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém... Imploramos que a Tua bondade recaia sobre todos nós... )
Eu sei, ainda descrê do acontecido, mas neste ataúde não sou eu, é a sua carcaça inconveniente que está depositada imóvel. Não tem mais jeito, parece que nem dia de luto oficial o senhor ganha. Li nos jornais, lá no assoalho da página, pequenas notas do seu passamento. Essa gente ou não lembra mais ou lhe querem ver pelas costas, quer dizer, anseiam por o senhor debaixo do tapete do esquecimento
(Permite que como a Virgem Maria, abençoada Mãe de Deus...)
Eu sou a última voz que escuta enquanto a força se desmancha desta cobertura de carne condecorada por cicatrizes venéreas. Isso mesmo, o seu entusiasmo se desarranja como a cera das velas que por certo, algum distraído lhe irá acender. Azar o meu, odeio velas. Tenho asma, a sua doença era outra
(Os Apóstolos e os Santos de todos os dias que viveram na Tua amizade...)
É, eu sei, estou aqui de vela, mas sempre posso abandonar tudo, atravessar a rua e sumir. O General Calçacurta não pode mais renunciar, pois se finou. A vida desobrigou-se do dominador. Ela não tem nenhum sentido, é coisa de ir vivendo e ver no que vai dar. No seu caso, nós já sabemos no que deu, né? Muita porrada e gente desaparecida nas eternidades, também, foram lhe deixar solto, pra fazer o que bem entendesse. Perderam o controle
(Sejamos contemplados com a Vida eterna e cantemos em Teu louvor...)
Eu acredito que desta vida só se leva a nostalgia das saudades pela nossa ausência. Isso mesmo, General, carregamos pro túmulo apenas o pesar dos bêbados que ficam e o amor das putas. Essas não mentem, já sabemos quanto custa antes de usar os serviços de acolhimento. Não querem carinho, nem beijinho, apenas entrar, sair e, antes de abrir a porta, agarrar o preço concordado na cômoda. Não precisa dar adeusinho, nem fazer aceno de despedida, é bem isso, essa gente só tem na preocupação que o senhor não encosta mais no balcão e grita
(Essa rodada é por minha conta, pode servir!)
O puteiro levantava e saudava o General
(A Ti, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo...)
Os arruaceiros comunistas apostam que nem isso vai levar. Afirmam que, talvez, com um pouco de sorte, lhe reste o ódio dos comparsas que se foram antes, desaparecidos pelos seus desmandos de espremer as tetas por capricho. Adorava arranjar as coisas segundo as suas vontades e pôr as próprias mãos nos destroços
(... toda honra e toda glória, agora e para sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!)
Não é um ótimo dia, mas é um bom dia. Afinal, tem dia pra tudo
(Até para morrer...)
Eu mesmo não desisti do senhor por dever de ofício. O General pensou que me conheceu. Os seus colegas, General, esperam que eu vá abandonar meu posto. Também não me conhecem. Nem eu me conheço, mas a memória da farda nos diz pra onde temos que ir. O fardamento e a vida militar é que me julgam melhor. Sempre me deram missão do meu tamanho. Não sei o que seria de mim longe do alojamento dos soldados. Aprendi a ser homem dentro das paredes do quartel. Lavar, passar, cozinhar e limpar os banheiros é código de comportamento que carrego pro resto da minha vida. A disciplina e o respeito dos companheiros de farda são tudo na história de um homem. Somos uma associação criada pra proteger a nossa pátria. Tenho muito orgulho desta missão: lutar, defender e obedecer. É um time juramentado pra ajudar uns e outros
(Morrer se preciso for...)
Hoje, sou o guardião que se despede da última missão com o General Calçacurta, por dever de ofício. Não sinto alegria nem tristeza, apenas espero essas últimas horas, como sempre esperei o seu retorno das missões de reconhecimento e controle, no carro, lendo gibi e mastigando chicle. Não tinha maiores desesperos que continuar vivendo. Deixei pro comandante os traumas e insônias. Afinal das contas, todo general deve assumir as lesões da dor moral daqueles que matam por suas ordens. E sofrer quando morrem por seus descuidos e vaidades. Os soldados apenas confiam que o seu general é o mocinho da história. Eles duelam até morrer contra as forças do mal em nome de um deus guerreiro. As estrelas de oficial general lhes dão o caráter divino da infalibilidade, como o Pedro católico. A pedra basilar dos milicos é a disciplina sob as insígnias e os distintivos que anunciam a hierarquia dos cavaleiros da terra. Sempre gostei de acreditar nisso. Quando me sonhava, era um desses cavaleiros de modo gentil e suave. Pronto a salvar qualquer donzela em perigo. Cavalarianos dignos de comandar e inspirar seus homens a morrerem por qualquer causa ou coisa. Infalíveis. Semideuses. Príncipes. Membros de ordenação nobre que procuram aventuras justas. Não cheguei até lá, mas fui perto. Sou cabo e nunca precisei matar nenhum inimigo ou desconhecido.
De qualquer maneira, esse tempo de sonhos já vai longe. Cresci. E como já disse, sou cabo. Não gosto de me repetir, mas muitas vezes é preciso esclarecer que não sou soldadinho raso qualquer, mereço mais respeito. Isso nos deixa parecido, eu também tenho em quem mandar. Tenho governo sobre o Jacaré. Esse é boa gente, mas precisa de algum comando pra tomar decisão. É feito criança. Volta e meia, é necessário mostrar que ele não agiu certo, é preciso ensinar a pensar. Ainda bem que pelo menos cumprir ordens ele sabe. É qualidade que vem do berço, o sujeito tem ou não.
Aprendi com o senhor, General, que existe um tempo de reparos, pequenos oásis de calmaria, onde as pessoas cantam as liberdades que não compreendem. Não sabem o quanto foi dura a luta contra os comunistas. Gente cheia de ódios que comiam crianças e gritavam que Deus não existia. Parece que por esses dias mudaram o cardápio e a fé. É quando precisamos estar alertas: na calmaria. Nos dias de hoje, ficam a dizer aos murmúrios que quem come as criancinhas são os padres. Pura maldade. Assim como não se pode julgar a armada de guerreiros pelo desertor, também não se julga a igreja pelos padres malvados. Esses comunistas são foda.
Sei, por própria experiência, que ninguém acaba consigo mesmo, e as lutas retornam mais na frente sob as botas de outros generais, mas o exército e o inimigo são os mesmos. Precisamos de generais. Perdemos a memória dos desacertos. Não acho que isso seja uma sina, mas a tristeza de lidar com o passado e não aprender que o preço é a vigilância. Cuidar e castigar. É a luta do bem contra o mal que nunca se termina. Nós sabemos disso, e sofremos com essa cruz que carregamos. A incompreensão de todos com a missão de proteger e matar se preciso na defesa da nossa aparência de acostumar-se
(Viva o nosso jeito de viver!)
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