terça-feira, 22 de junho de 2010

Ensaio sobre o sectarismo

JOSÉ SARAMAGO (1922-2010)

Por Alberto Dines

A Folha de S. Paulo noticiou a morte de José Saramago no sábado com manchete na primeira página. Previu que o concorrente, o catolicíssimo Estado de S.Paulo, seria reservado e optou pelo destaque. Mas o texto escolhido pela Folha para avaliar a obra do único Nobel de literatura de língua portuguesa está impregnado do mesmo sectarismo e ressentimento do L´Osservatore Romano, órgão oficial da Santa Sé.

O colunista da Folha João Pereira Coutinho, como o seu colega do Vaticano, não soube guardar a necessária compostura e criticou Saramago antes que fosse enterrado alegando que "depois do prêmio tornou-se esquemático e primitivo" (Folha, caderno especial, 19/6, pág. 5). O comentarista da Cúria Romana, por sua vez, designou Saramago de "populista extremista" e "ideólogo antirreligioso".

A Folha poderia ter privilegiado o comovido perfil biográfico escrito por Luiz Schwarcz (pág. 7), amigo íntimo e editor de Saramago no Brasil, responsável pelo seu extraordinário sucesso aqui, mas preferiu ser "diferente", chamar a atenção. A Folha é audaciosa, mas não é generosa; afirma ter o rabo preso no leitor, na realidade tem o rabo atrelado à sua arrogância.

Mesmo divergindo politicamente do escritor recém-falecido, o Estadão foi digno e respeitoso: "Um talento que lembrava Shakespeare", de Ubiratan Brasil, é um dos textos incluídos na edição especial do caderno "Sabático". No domingo (20/6), nenhum dos três jornalões noticiou ou comentou o grosseiro e desrespeitoso ataque do Vaticano.

18 linhas

O Brasil descobriu e valorizou Fernando Pessoa no fim dos anos 1940, muito antes de Portugal enrustido na ditadura do também católico Oliveira Salazar.

Saramago chegou aqui em 1982 com o extraordinário Memorial do Convento em edição abrasileirada da Bertrand Brasil – um horror. Tirar a grafia e a sintaxe lusitana de Saramago é o mesmo que retirar a sonoridade das suas palavras e frases.

Com a Jangada de Pedra (Companhia das Letras) arribou ao Brasil o verdadeiro e inconfundível Saramago. E nesta mesma embarcação fez-se ibérico: deixou a amada Lisboa ferido com a submissão do governo às pressões da igreja católica por ter escrito O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Foi morar numa Espanha quase africana, a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias. Vinha ao Brasil com freqüência e só tinha uma queixa depois dos eventos: "Essa gente mata-me de amor". Nem todos.

Portugal continua ranzinza: homenageou Saramago com luto oficial de dois dias – a grande fadista Amália Rodrigues mereceu três. O presidente Cavaco Silva (PSD, centro-direita) divulgou uma burocrática nota de pesar, mas não compareceu ao velório – ao contrário dos socialistas Mário Soares e Jorge Sampaio. Cavaco era o primeiro-ministro quando o nome de Saramago foi boicotado para representar o país num grande certame europeu.

A Espanha mais uma vez passou a perna no enfezado e pequeno vizinho: El País dedicou-lhe no sábado (19) oito páginas inteiras e no domingo mais duas – inspiradíssimas, generosas, altamente informativas.

Num texto de 18 linhas, o poeta argentino Juan Gelman constata: "Com as lágrimas que se vertem agora se poderia acabar com as secas do mundo."

Memorial do Convento, a obra que celebrizou Saramago, não trata de religião – trata da brutal Inquisição.

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