Voar de pé e a dignidade das pequenas coisas
Sakamoto
Já faz um tempo, recebi de um amigo uma (contra-)propaganda de um cemitério no Norte do Tocantins, alertando possíveis interessados na compra de jazigos que, ao contrários dos boatos maldosos que por lá corriam, eles não enterravam os mortos em pé para economizar espaço.
Sinceramente, não vejo problema. Por mais que a frase “tá morto mesmo” soe insensível para alguém que perdeu um ente querido, ela é bastante verdadeira. Dercy Gonçalves foi sepultada na vertical em sua pirâmide de cristal e, ao que tudo indica, até agora tudo bem. Se podemos ser deixados em descanso eterno virados para Meca, de bruços, cócoras, agachados, dentro de urnas, mumificados, empalhados, em forma de pó, aspergidos ou soprado sobre local de grande interesse turístico, devorados, por que não de pé?
Estar de pé em situações constrangedoras é sim problema dos vivos. A Folha de S. Paulo trouxe, hoje, uma boa matéria sobre o problema de falta de espaço em aviões e como algumas companhias de baixo custo, como a européia Ryanair, estão estudando implantar alguns assentos especial para possibilitar que passageiros fiquem em pé durante vôos com menos de uma hora de duração. No caso, a empresa irlandesa ganharia mais cinco filas e cobraria menos dos passageiros que topassem (cerca de R$ 10,00, mais taxas de embarque – o que não estaria tão longe dos preços promocionais já praticados hoje pela companhia de quem vai sentado).
Por aqui, não se viaja em pé, mas a distância entre as poltronas já diminuiu consideravelmente. Ironicamente, escrevo este texto em um avião, indo dar uma palestra em Florianópolis, apertado feito atum em lata e utilizando uma técnica jedi secreta, desenvolvida por passageiros frequentes que aprenderam a digitar usando a força, mesmo com a poltrona à sua frente tendo sido reclinada totalmente para trás. Não sou um gigante, mas a altura (1,83 m) atrapalha nessas horas. Se eu estivesse em pé, poderia não estar sentindo a maldita dormência no pé esquerdo que sinto agora, mas também não estaria digitando este texto. Maldita genética, maldito hormônio do frango de granja.
Há certas mudanças que podem até ser seguras, mas são desconfortáveis. E respondem a uma lógica perversa: você quer pagar menos, eu quero ganhar mais (tudo bem que vou ganhar bem mais do que a sua relativa economia, mas ninguém precisa saber, né?) Então, que tal fazermos um acordo?
Sinceramente, por essa lógica, gostaria de saber aonde vamos chegar? Restaurantes em que vocês traz o talher e o prato de casa? Cinema em pé? Banheiro de shopping em que se deposita R$ 0,10 pelo picote de papel higiênico? Na justificativa de reduzir custos na relação de consumidor e prestador de serviços, podemos ir cortando, cortando, cortando, rumo à desumanização – não que o mercado seja um ambiente humano, mas há limites. O debate pode parecer inútil, mas o que está em jogo não é um rolo de Primavera na vida de alguém e sim a idéia de dignidade das pequenas coisas e nos pequenos atos.
Pequena, como uma moedinha. Anos atrás, antes do euro, em Portugal, quase vendi minha alma para o Tinhoso por uma moeda que abriria as portas mágicas de um banheiro na estação ferroviária de Santa Apolónia. Eu tinha dinheiro no bolso, mas só uma moeda específica introduzida na porta (acho que de 50 escudos) abriria a dita. Corri pela estação e neca. O horror, o horror…
O problema é que tem gente, à espreita, que fareja dificuldade alheia e ganha com isso. Como cambistas de trocados na porta de banheiros. Ou gente que vende assentos de avião de pé. Um é visto com mais desconfiança porque não tem acionista, só isso.
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