Em entrevista para o Portal da Fundação Perseu Abramo, o presidente da fundação e ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fala sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e as intensas reações causadas pela iniciativa em alguns setores da sociedade. Para ele, há uma grande manipulação política nas reações ao programa. "Há uma disputa eleitoral em 2010. No caso do PNDH 3, boa parte do que li, é assim: "não li e não gostei". Estão opinando a partir do “ouvir dizer”. Não houve boa vontade nem mesmo para ler o conteúdo do Programa".
Portal da Fundação Perseu Abramo
Em entrevista exclusiva para o Portal FPA, o presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fala sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e as intensas reações causadas pela iniciativa em alguns setores da sociedade.
Há uma discussão acalorada na imprensa sobre a Lei de Anistia, a reboque da divulgação do III Plano Nacional dos Direitos Humanos. Qual é a avaliação da Fundação sobre esse debate?
Existe um manifesto do Comitê Nacional contra a anistia aos torturadores, que está recolhendo assinaturas de juristas, intelectuais, ativistas de movimentos dos direitos humanos, lideranças de movimentos sociais e populares, cidadãos... Isso, para ser anexado a uma ação que arguiu o preceito fundamental da Constituição, chamada ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) e ingressada pela OAB em 2008. Nela, o STF vai julgar se a Lei de Anistia de 1979 concede ou não impunidade aos torturadores – por causa daquela expressão “crimes conexos”, usada para criar a ideia de que a Anistia era para os “dois lados”.
Esse manifesto já tem 12 mil assinaturas, e a Fundação Perseu Abramo resolveu ingressar formalmente nesse movimento. Ela publicou no seu portal a petição, e fará um apelo para que as pessoas o assinem, difundindo-o. A FPA concorda com o teor do apelo, segundo o qual a tortura é um crime imprescritível. Não é crime político – portanto, não foi beneficiado pela Anistia de 79. Trata-se de um crime comum que afrontou as leis da época, da própria ditadura, e também é visto como tal pelo direito internacional, que o considera imprescritível. E o Brasil faz parte dessa legislação, desses tratados, e eles são absolutamente insofismáveis quanto a seu caráter imprescritível. Ninguém propõe a revisão da lei da Anistia, e sim que a Justiça considere que esta lei não perdoe o torturador.
Quer dizer que este debate da Anistia não tem nada a ver com o que está proposto no PNDH? Não é um decreto do presidente Lula, conforme tem sido colocado pela imprensa?
Não, não é, isso é uma notícia manipulada. Trata-se de uma versão que vem tentando se transformar em fato, quando não é verdade que o Plano seja para rever a Lei de Anistia. Ele não faz essa revisão. Nesse debate, tanto o Paulo Vanucchi como o Tarso Genro – assim como nós e todos os que nos apóiam – acham que é uma decisão a ser tomada pela Justiça. E é uma posição do presidente Lula também, não há o que o discutir.
Então o que propõe o PNDH sobre a ditadura, que provocou toda a reação (dos militares e afins)?
O Plano propõe uma Comissão de Verdade, que é outra coisa. A Comissão de Verdade é administrativa, ela não substitui a Justiça, não tem o poder de declarar se os torturadores estão perdoados ou não. Ela deve recompor um trabalho sobre a memória e a história para chegar à verdade histórica, ao que aconteceu durante a ditadura civil-militar que durou 21 anos no Brasil. E isso provocou essa reação, e sempre provocará...
A cúpula militar, a inteligência militar do país é totalmente identificada com a democracia, tem profundo sentimento nacional e espírito público. Ela está profundamente identificada com um projeto de Nação que está sendo construído no Brasil. Não tem contradição nisso, ela acata e aceita a Constituição totalmente. Mas [ao mesmo tempo] tem uma dificuldade enorme de lidar com o passado. Querem manter a ficção de que a ditadura instalada em 1964 foi um golpe para restabelecer a democracia, o que não é verdade. Foi para instituir uma ditadura com todas as suas consequências, e que durou 21 anos.
Agora, esse é um problema que tem que ser enfrentado dessa maneira. Quer dizer, não se trata de civis contra militares, ou democratas contra militares, não é nada disso. Não tem disputa maniqueísta do bem contra o mal. São pessoas que a gente admira, que o Brasil respeita. O país admira suas Forças Armadas, trata-se de parte integrante do nosso projeto e nenhum louco pensa diferente. Então, é necessário apartar essa ideia de uma volta do confronto entre a esquerda e a direita, que aconteceu durante a ditadura. Não tem nada a ver isso, é passado, fica no domínio da História. O que está em discussão agora é: como resgatar o passado? A democracia avança. Se na ditadura a Lei de Anistia possível foi aquela, inconclusa, incompleta, imperfeita, excludente, ela também cumpriu um grande papel na volta da democracia. Tanto que foi mudada várias vezes. Na Constituição de 1988, foi alterada pela lei 9140/95, que reconheceu os mortos e desaparecidos políticos – antes, não o eram. E foi mudada na Comissão de Anistia, que incorporou reparação econômica e moral – o que a Anistia inicial não comportava - para civis e militares perseguidos pela ditadura. Ela foi modificada várias vezes, não é intocável.
Mas nem por isso é proposta uma nova lei de Anistia, porque isso passou. Já temos trinta anos da Lei, o que a gente vê no Brasil é um processo que acompanha a evolução democrática do país. E à medida em que se consolida a democracia, direitos novos se colocam. Hoje existe a demanda ao direito à memória e à verdade – que é tão importante quanto outros direitos. Uma nação com sua democracia não comporta a manipulação de sua História, nem permite que alguém vete sua busca. Ninguém tem esse poder, é um direito inerente à cidadania e à democracia. Então não terá veto.
Temos que tratar isso de uma maneira madura, de modo que saibamos dialogar, mesmo com as dificuldades existentes. E é isso que está colocado. O PNDH 3 é uma sequência de dois planos prévios, que vieram do governo anterior. Participei dos dois ativamente, eu era da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e um dos negociadores do Plano Nacional 1, que tem pontos que estão entrando hoje neste terceiro. No 2 os movimentos de Direitos Humanos brasileiros e do mundo inteiro colocaram que o Estado brasileiro incorporasse uma nova versão, com os direitos sociais, econômicos e culturais. Isso foi feito em 1999.
O que significam esses direitos, na prática?
Significa, para os Direitos Humanos, incorporar o mundo do trabalho, o acesso à terra urbana e rural, e o direito à alimentação como parte dos direitos econômicos. Incorpora direitos sociais – os direitos previdenciários, o direito à saúde, que são dever do Estado – e a assistência social cidadã. E inclui grupos vulneráveis, povos ameaçados de extinção e de risco social elevado.
Os direitos humanos culturais – o direito à educação – ficam abertos, e vão se acrescentando na Constituição. O antigo “ensino fundamental” – agora, pré-escola – e o ensino médio profissional vão entrando, de forma progressiva, no ensino universitário. E a agenda vai evoluindo enquanto o país evolui.
O direito à cultura, não como o “direito de ser espectador”, mas produtor da cultura, com todas suas as implicações – em todos os níveis, em todo o país, para todas as classes. Entra o acesso aos bens do progresso científico, como bem comum da humanidade que não pode ser apropriado por uma classe social, por um grupo. E é inserido o combate a toda a forma de discriminação e preconceito: de gênero, sexual, de procedência nacional ou regional. A questão racial, tudo isso entra, desde o primeiro plano.
Por que se fez o Plano 3? Porque depois de sete anos de governo Lula, com investimento no social, o Brasil mudou. Então agora existem novas demandas e agendas, e o PNDH tem essa tarefa em comum para o Brasil todo – não é do governo A, B ou C, nem do partido A, B ou C. É tarefa de todos. Muitos só veem Direitos Humanos retoricamente, quando entra no plano concreto, há reação. A Kátia Abreu (senadora ruralista) é a favor dos Direitos Humanos; mas, quando isso atinge os ruralistas e o latifúndio, ela é contra. No momento em que queremos discutir o trabalho escravo e degradante, a questão da produtividade e o limite da propriedade, é guerra civil. Mas essas são coisas banais nos Direitos Humanos.
Ela (Kátia Abreu) é a favor dos Direitos Humanos retóricos, formais. Mas ao falarmos que é um direito para todos, é contra. Trata-se de uma tarefa a se conquistar, convencê-los (os ruralistas) que não podem ter a terra. A Constituição fala da função social da propriedade. Leia mais
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