
Do que o Brasil precisa?
por Jorge Furtado em 10 de julho de 2010
Ler Guimarães Rosa (e outras dez sugestões para fazer deste um país  melhor para nós e os nossos filhos) *
Diminuir a desigualdade social. Ainda somos um dos países de pior  distribuição de renda no planeta, em poucos lugares há tanta diferença  entre ricos e pobres. A miséria num país tão rico, os sem-teto e os  sem-terra, são uma vergonha, um atestado de incompetência da sociedade  brasileira e de seus muitos governos. Se não por questões humanitárias,  que já deveriam ser suficientes, a sociedade brasileira poderia apoiar  políticas de distribuição de renda e erradicação da miséria pensando ao  menos no bem-estar de seus filhos, já que os índices de violência estão  diretamente relacionados com os indicadores sociais.
Aumentar o salário dos professores. O Brasil precisa melhorar muito a  qualidade do ensino, especialmente do ensino público. Acredito que a  maneira mais rápida e eficiente de fazer isso é aumentar muito o salário  dos professores. Internet nas escolas, boas bibliotecas e bons prédios  são importantes, mas o que mais determina a boa qualidade do ensino são  os bons professores, que só existirão se profissionais competentes e  preparados pensarem que pode ser uma boa ideia ensinar.
Reduzir os índices de violência. Vivemos num país onde os assassinatos  passam de 40 mil por ano, número que supera qualquer guerra em curso no  planeta. Para quem já tem emprego, o que comer e onde morar, o pior do  Brasil é a violência, o medo de sair na rua, a insônia pensando se os  filhos vão chegar bem em casa. Os assassinados e os assassinos são, em  sua imensa maioria, pobres e jovens, quase adultos abandonados por suas  famílias e pelo Estado, sem educação, profissão ou esperança de um  futuro melhor do que imaginam que lhes possa proporcionar uma arma. Como  cantou Sérgio Sampaio, “um marginal que já não pode mais fugir, vai  reagir, menino é bom ficar de olho aí!”
Fazer política, acreditar na política. Cresce, especialmente entre os  jovens, a ideia inteiramente falsa de que todos os políticos são  picaretas, que política não serve para nada e que todos são iguais. Não  são. É no debate político civilizado que surgem as ideias que viram  ações. Os políticos são, em sua imensa maioria, cidadãos honestos que  trabalham muito e se dedicam, às vezes recebendo baixos salários, a uma  tarefa fundamental na democracia. A ideia, falsa e amplamente  disseminada, de que a política é um emaranhado de malfeitorias é um  desastre, atraindo para a vida pública um número crescente de  aproveitadores e afugentando pessoas decentes que gostariam de trabalhar  pelo bem comum.
De uma oposição melhor. Que apresente alguma ideia, boa ou ruim que  seja. Ideias ruins também podem apontar caminhos, ao negá-las afirmamos  algo. O problema é a total falta de ideias, substituídas por um  moralismo oportunista que joga para a plateia e segue pesquisas de  opinião o tempo todo, a ponto de o candidato de oposição declarar, sem  qualquer ironia, que o presidente – que há pouco era demonizado, chamado  de corrupto, ladrão e assassino – “está acima do bem e do mal”. A  impressão é que os partidos de oposição terceirizaram suas ideias,  esperam para ler nos jornais o que devem dizer aos jornais. Sem uma  oposição consistente, que proponha opções ou apresente ao menos uma  ideia, qualquer governo se acomoda, se apequena.
Respeitar a diversidade religiosa, mas coibir a exploração da fé. É  indecente que mistificadores enriqueçam à custa da fé e da miséria  alheia. A intimidação de fiéis para que façam doações, frequentemente  denunciada com vídeos assustadores, deveria ser um simples caso de  polícia. O fato de as igrejas não pagarem impostos é um convite à  maracutaia. A propriedade disfarçada de empresas de comunicação – a  Constituição Brasileira proíbe que igrejas sejam proprietárias de  emissoras comerciais – é uma das muitas hipocrisias nacionais, como a  conivência com o jogo ilegal e o tráfico de drogas: todos sabem como e  onde se dão, pouco ou nada se faz para evitá-los.
Mais cultura. Para começar, melhorando a qualidade da educação (ver  “salário dos professores”) e aumentando muito o investimento na produção  e difusão cultural e também na preservação do patrimônio histórico. A  indústria cultural, além de “limpa”, não poluente e autossustentável,  emprega profissionais de todas as áreas, com qualificação e salários, em  média, mais altos que de atividades tradicionais, como a agricultura e a  indústria. A cultura está diretamente relacionada com outros setores  produtivos, comunicação, turismo e serviços. A riqueza cultural  brasileira é imensa e o seu público consumidor, especialmente o público  interno, tem grande potencial de crescimento. Uma sociedade mais  escolarizada, mais bem informada e com poder aquisitivo crescente, vai  consumir mais livros, mais filmes, discos, peças, vai frequentar mais  museus e fazer mais turismo. A longo prazo, a indústria cultural tem  mais futuro, por exemplo, que a atividade de fazer buracos e mandar  minério, de navio, para a China.
Internet banda larga boa e barata para todos. A comunicação rápida e o  acesso à informação são fundamentais para o desenvolvimento e para o  aperfeiçoamento da democracia. O serviço de internet no Brasil é dos  mais caros do mundo e alcança apenas parte do País. O serviço de  internet nas grandes cidades deveria ser – e será, resta ver quando –  gratuito, como a televisão aberta e o rádio.
Cuidar melhor do seu patrimônio natural. Energia e mineração são  fundamentais, mas as usinas, de qualquer tipo, sempre causam algum  impacto ao meio ambiente e o petróleo e outros minérios são recursos não  renováveis. O Brasil precisa aprofundar, democratizar, o debate  racional e consequente sobre crescimento sustentável. Não se trata (só)  de preservar o mico-leão ou o boto-cor-de-rosa, trata-se de saber que  espécie de futuro queremos para os nossos filhos e netos.
Mais funcionários públicos qualificados e bem remunerados. Uma lenda  amplamente difundida é a de que há funcionários públicos demais. Alguém  acha que há médicos demais nos postos de saúde? Há policiais demais nas  ruas? Há professores demais nas escolas? Talvez haja muitos fiscais nas  reservas ecológicas?
O Brasil precisa acreditar na ideia de que, com o aperfeiçoamento de sua  jovem democracia, saberá descobrir, por si mesmo, do que precisa. O  Brasil precisa aprender a não dar tanta atenção a criaturas que se  julgam iluminadas a ponto de saber do que o Brasil precisa. O brasileiro  informar-se tão bem a ponto de ficar em dúvida e decidir pensando por  sua própria cabeça. O Brasil precisa acreditar que a maioria saberá  escolher o que é melhor para o País e que, se achar que as coisas estão  indo mal, pode fazer outra escolha em alguns anos. Chama-se democracia.  Ninguém teve uma ideia melhor.
O Brasil precisa ler bons livros. É assustador o domínio da autoajuda,  emocional e financeira, nas prateleiras das livrarias. Nossos excelentes  romancistas, poetas, pesquisadores, jornalistas, estão soterrados por  livros de espertos que prometem ensinar o leitor pobre de espírito a ser  feliz em cinco dias e se tornar milionário em um ano. Espero que essa  espécie de livro migre rapidamente para as versões digitais, evitando a  continuada transformação de árvores em bobagens.
O Brasil precisa ler Guimarães Rosa: “Olhe: o que deveria de haver, era  de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem  no definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que  não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim davam  tranquilidade à boa gente. Por que o governo não cuida? Ah, eu sei que  não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr  ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue,  de mil e tantas misérias... Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum  se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de  emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e  negócios bons...” (Grande Sertão: Veredas)
Perguntei para minha filha e para minha sobrinha, as duas com 9 anos, do que o Brasil precisa. Antes “do mi de um minuto”, elas responderam: “Casas para os moradores de rua e preservar a natureza”. As crianças sabem de tudo.
*
Texto publicado na edição especial número 600 da revista Carta Capital em 26 de junho de 2010.
P.S.:
As atividades culturais - e também o esporte - essenciais ao corpo e ao espírito, também ajudam a combater a violência. São muitos os exemplos de bons programas que envolvem comunidades carentes, especialmente suas crianças, em atividades culturais e esportivas, e o Brasil precisa de mais.
Aqui, Luiz Melodia e os meninos da Escola de Música da Rocinha cantam “Cruel”, de Sérgio Sampaio.
Cruel
Sérgio Sampaio
tudo cruel tudo sistema
torre Babel falso dilema
é uma dor que não esconde seu papel
Morro Borel
eu subo e nunca estou no céu
tudo joão nada na mesa
deu no jornal mãos na cabeça
um marginal que já não pode mais fugir
vai reagir
menino é bom ficar de olho aí
que tudo é desse mundo
surpresa também
espinho é bem mais fundo
destino também
o amor tá quase mudo
minha voz também
cruel é isso tudo
tudo tão mal tão sem beleza
doce de sal lágrima presa
o que eles falam não se deve nem ouvir
verbo mentir
menino é bom ficar de olho aí
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=7127
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