quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

esse Saramago continua muito bom

No Brasil existe censura, sim


JornalismoB


O artigo a seguir é uma colaboração especial de Rodrigo Cardia*

Sabe-se que as relações de força nunca se reduzem a relações de força: todo exercício de força é acompanhado por um discurso que visa legitimar a força de quem a exerce; pode-se mesmo dizer que é próprio de toda relação de forças dissimular-se como relação de força e de só ter toda sua força na medida que ela se dissimula como tal. Em suma, para falar simplesmente, o homem político é aquele que diz: “Deus está conosco”. O equivalente de “Deus está conosco” é, hoje em dia, “a opinião pública está conosco”. – Pierre Bourdieu

Quando se fala em qualquer iniciativa que vise à democratização da imprensa no Brasil, a mídia corporativa reage com o velho brado: “querem ressuscitar a censura!”. O mesmo é utilizado quando se fala em regular a programação da televisão, para que os programas sejam adequados aos horários em que são exibidos.

Porém, ela reage assim para esconder o fato de que a censura continua a existir no país. Só que ela é diferente daquela da época da ditadura militar. Naqueles tempos difíceis, a censura era política, pois era fruto do abuso do poder político. Hoje, ela é econômica.

Esse tipo de censura nos atinge muito mais do que pensamos. Jamais veremos, por exemplo, algum dos principais jornais do Brasil publicar matérias que demonstrem o quanto melhor para a cidade – e mesmo para a saúde humana – é trocar o carro pela bicicleta: basta folhear o jornal e contar os anúncios de revendas de automóveis… A mídia corporativa depende dos anunciantes para sobreviver. Logo, não irá divulgar alguma notícia que prejudique os interesses das empresas que a patrocinam. (E quando uma matéria não é ruim para nenhum anunciante, pode o ser para o próprio dono do veículo de mídia.)

O mesmo raciocínio vale para outras editorias, até a de esportes: a prioridade é dada ao futebol não só porque ele é o esporte mais popular do país, mas também porque “dá mais lucro” (então, dê-lhe matérias de pura “perfumaria”). Assim, outras modalidades têm pouco ou nenhum espaço na mídia corporativa, e o Brasil deixa de ser mais forte em outros esportes, que poderiam fazer de nosso país realmente uma “potência olímpica”. E mesmo se falando de futebol, há censura: o texto que escrevi aqui para o Jornalismo B no mês passado dá uma amostra.

Mas essa censura é mais ampla. Pois além de limitar o que é noticiado pela “grande imprensa”, também sufoca a mídia alternativa, que sobrevive (quando consegue sobreviver) com muitas dificuldades, e poucos patrocinadores. Assim, ela não consegue atingir o mesmo número de pessoas que a mídia corporativa.
E, em alguns momentos, ela é um pouco mais perceptível como censura, mas travestida de “ação judicial”. É o que acontece com alguns blogueiros cujas opiniões não agradam a certas pessoas, que tentam calar as vozes divergentes via processo. Usar o poder econômico contra um blogueiro (que geralmente não tem condições de contratar algum dos melhores advogados para sua defesa) ao invés de deixar um comentário discordando é mais sedutor para quem não tem lá muito apreço pela democracia.

Porém, a maioria das pessoas não percebe a existência desse tipo de censura no Brasil. É exatamente por isso que ela é muito mais eficaz: pois usa a máscara da “democracia”. Tem-se a ilusão da liberdade, e a mídia corporativa colabora decisivamente para que isso se mantenha: por sua insistência em apresentar-se como “imparcial” – utilizando-se de uma nebulosa entidade chamada “opinião pública” (que segundo Pierre Bourdieu, “não existe”) para justificar o viés dado a cada notícia –, é vista como “autoridade” por muitas pessoas, logo, detém um poder simbólico sobre elas, que só acreditam que determinados acontecimentos são reais se noticiados em certos jornais ou revistas. Popularmente, isso corresponde à expressão utilizada por muito tempo em Porto Alegre em relação ao jornal Correio do Povo: “se deu no Correio, é verdade”.

Como já disse, a censura era política, pois era fruto do abuso do poder político. Hoje, ela é econômica devido ao abuso do poder econômico. Elegemos parlamentares, prefeitos, governadores e até presidentes, mas a maioria deles se submete à vontade de grandes corporações e organismos como o FMI – e não nos é dado o direito de escolher quem comanda tais entidades.


*Rodrigo Cardia é historiador, autor do blog Cão Uivador.

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