sábado, 19 de fevereiro de 2011

a maior tragédia de Maria Schneider

A bunda da Maria Schneider, o pinto de John Malkovich e Bertolucci, “o gângster”

 
 
 
Morreu Maria Schneider. E, novamente, tivemos que ler aquela ladainha chata: ela era uma jovem inocente de 19 anos durante as filmagens de “O último tango em Paris”;  a cena da manteiga não estava no roteiro, e ela sentiu-se “psicologicamente estuprada” por Brando e Bertolucci (a quem chamava de “gângster); o filme a prejudicou muito, a ponto de transformá-la numa alcoólatra e não sei mais o quê. Coitada da Maria Schneider... Não pelo que ela disse, é claro, um monte de bobagens, e sim pela sua gigantesca incompreensão do que é um filme, do que é cinema, do que é arte, do que é ficção. E, conseqüência natural disse tudo: do que é a vida. Quem não sabe mentir (ou não sabe o valor de uma mentira) também não sabe dizer a verdade.

Ontem, talvez levado, inconscientemente, pela notícia da morte de Maria Schneider, revi “O céu que nos protege”, tão bom, ou até melhor, que “O último tango”. Bertolucci é um cara que consegue fazer lindos e amplos movimentos de grua e continuar dentro das mentes dos seus personagens. Ele pega o osso e não larga. As atuações de Debra Winger e John Malkovich são soberbas, impecáveis, emocionantes e, com certeza, rivalizam com a de Brando em “O último tango”. “O céu que nos protege” não teve a mesma repercussão, o mesmo sucesso de escândalo, mas é farinha do mesmo saco: uma discussão implacável sobre sexo, amor e morte, não necessariamente nesta ordem, mas em doses bem medidas.

As cenas de sexo em “O céu que nos protege” são brilhantes e intensas, apesar de haver relativamente pouca nudez. A bunda de Debra Winger não aparece com o mesmo esplendor da bunda de Maria Schneider. Mas a idéia é a mesma: uma cena de sexo não é só uma cena de sexo. Se for, melhor nem filmar. Melhor nem escrever. Melhor fazer uma elipse, o que será abençoado pelas mães e pela Santa Igreja. Uma cena de sexo é um momento de tamanha intimidade que os personagens são obrigados a revelar uma boa parte do que são. Ou a mentir com muita habilidade para manter seus segredos. É a vida em sua infinita doçura se mostrando para a câmera, o que incomoda profundamente quem prefere cortejar a morte e a violência.

O pinto de John Malkovich, acompanhado de suas bolas, também é revelado para a câmera. Não é uma cena de sexo. O pinto simplesmente passeia pelo quadro durante uma panorâmica. Não lembro de qualquer escândalo que essa imagem tenha provocado. Malkovich não reclamou de ter sido estuprado psicologicamente por Bertolucci. Nem Debra Winger acusou seu diretor por ter se sujeitado a expor seu corpo na sequencia em que transa com o beduíno, que, aliás, se revela um sujeito com grande cultura sexual. Pelo contrário: Malkovich e Debra devem ter agradecido, e muito, a Bertolucci por tê-los feito atuar tão bem, mentir com tanta habilidade, emocionar aos espectadores com tanta eficiência. O pinto de John Malkovich, os seios de Debra Winger, a bunda de Maria Schneider, o que são? Partes de uma representação da vida. Só isso. E tudo isso.

Atores e atrizes, obviamente, expõem seus corpos como quiserem. São seus, e não do diretor. Lidam com seus constrangimentos íntimos, com suas inibições naturais. Preocupam-se. Estabelecem limites. Discutem o story-board. Exigem uma determinada luz. Querem saber como será a decupagem. Não querem revelar determinados detalhes anatômicos (que, provavelmente, o diretor também não quererá revelar). E, a partir disso tudo, cria-se um pacto entre diretor e ator/atriz. Filma-se segundo esse pacto. Mas uma coisa atores e atrizes não podem esquecer: seus corpos também pertencem aos personagens que querem interpretar. É preciso um certo grau de entrega, de loucura, de mentira. É preciso ver Kerry Fox em “Intimidade”. Ou o pinto de  Malkovich em “O céu que nos protege”.  A maior tragédia de Maria Schneider é que ela nunca soube que ajudou a construir, com seu corpo, com sua mente – e, principalmente, com sua bunda! - uma grande obra de arte.  

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