quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cachorreiros

Lá, pelo dia 22 de dezembro, recebo carta no correio da internet. Uma amiga de muito tempo sem ver, e de muita vontade de rever, manda um aviso de cuidado. Ei-lo, É muito importante, pois eu tenho meus cães e com orientação do veterinário tenho que deixá-los sedados. Eles sofrem muito na noite da virada de ano, com os fogos de artifícios, quebram portas, tentam se esconder, ficam desesperados, então leia atentamente. Não li. Ou melhor, lembro de ter visto de relance, bem lá embaixo, Pratique a posse responsável de animais. É isso, não quero praticar a posse de nada mais, nesse mundo. Fiz um pequeno resmungo e passei para o próximo e-mail. Todos a desejar um feliz natal e próspero ano novo. Nada de novo. Até mesmo as lembranças são dos mesmos amigos e amigas. Todos e todas bem-vindos.
É isso, fiquei decepcionado. Não, com certeza, fiquei desenganado. Tanto tempo e a carta que me chega, desta querida amiga, lá dos meus dezenove anos, é para cuidar de animais que não tenho. E não quero ter. Esses bichos precisam de cuidados constantes, jamais deixam de serem alimentados. Latem ao menor sinal de alegria ou estranhamentos. Deixam seus pêlos pela casa. Já me bastam os cabelos nos ralos dos banheiros. Quando chegamos ficam a rodar de lá para cá, aos pulos e num tal de lamba-lambe que sinceramente, não me animo. Relacionamento canino, apenas no limite da distância. Algo como, um reconhecimento mútuo. Um não incomoda ao outro. Eles lá e eu por aqui.
Não consigo me pensar a passear com animais, pela corda de uma coleira. Levá-los ao parque para brincar e esperar até que façam o número um ou o número dois, pelos gramados. Muito menos, levá-los à praia para vê-los correr pelas areias. Felizes com a liberdade que não querem, pois não se afastam nem se perdem. Com exceção dos mais desatentos. As ovelhas negras, os irresponsáveis.
Não sou cachorreiro nem gateiro.
Fico irritado quando as madames e os seus cachorrinhos se ficam instalados nas minhas areias. Aquele xixi ou aquele cocô, mais hoje, mais amanhã, irá parar em mim. Não tenho motivos para amá-los. Não tenho vontades de tê-los. Sou indiferente aos seus olhares de submissão e pedidos de carinhos, não lhes guardo em minhas poucas preces. Não os tenho em casa.
Mas como o tempo é o melhor remédio para feridas desprotegidas, segui em frente. Esquecido daquela senhora tão linda, afugentada das minhas memórias. Agora, preocupado com os preparativos para a noite de natal. Aquela reunião familiar e fraternal entre tantos e tantas. Quanto mais filhos, mais sogros e sogras e cunhados e cunhadas. Sobrinhos aos montes. Alguns se dão a conhecer durante a visita do velhinho, Oi, tio, conhece a minha namorada, Não, muito prazer, fique à vontade. Isso quando não lhe dão a missão de transportar seus amores de um lugar ao outro, Pai, me leva até a casa da Jú, Claro, meu filho, Pai, Você não, minha filha, fica em casa, Mas, pai, eu só quero saber se o Ravel pode vir aqui, em casa, Pode, minha filha, quer que vá buscá-lo, Não precisa, ele está no portão, Ah, então diz pra ele entrar.
É isso, minha noite de natal, mas têm mais, além dos abraços e as trocas de presentes, temos aqueles malucos que ficam pelas ruas a estourar rojões e bombas de papelão e pólvora. Barulhos de enlouquecer qualquer um. Sustos difíceis de suportar. Estrondos rápidos que apenas deixam como vestígio um cheiro da polvorada e um pequeno rastro de fumaça. Particularmente, está noite de 24 para 25 de dezembro foi muito barulhenta. Muitos estouros e sustos. Mas conseguimos sobreviver a estes humanos enlouquecidos.
A manhã seguinte é reservada à ressaca. Dormir e dormir. Com a preferência de acordar com litros de água ao lado da cama. Na distância de um braço. Beber e beber. Foi o que fiz.
Na tarde, resolvi que deveria manobrar o carro e guardá-lo de ré. Foi o que fiz. Não sei a razão, mas escolhi a hora de sol mais intenso, alguma coisa do tipo duas horas da tarde. Sol a pino. Erguido o portão, olhei para os lados, nenhuma alma viva ou morta se manifestava por ali, sai e tornei a entrar com o carro de costas. Barbada em dias normais, mas hoje, foi necessário mais de um ir e vir, até ajustar o carro nas medidas da garagem. Depois de feito, ergui os olhos para o portão e com o controle na mão me preparei para fechá-lo. Surpresa. Aparece a caminhar de maneira perdida e desorientada uma cachorra. Antes de continuar o grito mecânico, Sai daqui, reconheci o sexo do bicho, pelo par de fitinhas presas em suas orelhas. E, mais, reconheci a cachorra também. Tuca, a cadela da minha cunhada. Estava a quadras e quadras de distância. Moramos em bairros diferentes. E ali está a cachorra. Tuca. Passa no exato instante em que estou lá, para reconhecê-la. Naquele calor infernal. Chamei-a pelo nome, Tuca, Tuca, me ignorou. Continuou a caminhar. Sem destino. Desorientada. Segui em seu encalço. Deixando tudo em aberto. Não podia perder a Tuca de vista. Cuidando para não assustá-la. Mas sem nenhuma condição de competir com sua correria. Lembrei que carregava meu celular em um dos bolsos, Alô, Denise, Oi, Menina, achei a tua cachorra, Onde, Caminha aqui, na minha rua, To indo.
Nesse tempo de falar ao telefone e perseguir a desatinada, recebo socorro. Meu filho vem na correria e se põe na perseguição. Grito em aviso, Cuidado, não assusta a cachorra. Como se o animal já não estivesse desnorteada e apavorada. Ele segue em frente, Tuca, Tuca. Lembrava que, logo adiante, temos uma avenida muita movimentada e, por certo, aquele bicho criado em casa não saberia se esquivar e desviar. Peguei, novamente, o celular e já quase em desespero, Venham logo, ela está indo para a avenida, Onde vocês estão, Quase no final da rua. Na verdade, eles, meu filho e a cachorra, iam bem adiantados, eu os seguia como podia. Atrasado. Com os pulmões repletos do ar quente daquele dia ensolarado. Os pequenos arbustos me impediam a visão. Vi quando meu filho entrou na avenida e um enorme carro, desses gigantescos, deu uma freada brusca. Meu coração estava aos pulos. Apressei mais meus passos. Naquela esquina temos uma praça e algumas árvores, não conseguia ver. Acho que corria. Não sei. Quando consegui espichar meus olhos lá estavam os dois. Parados em meio da avenida. Os carros parados. Meu filho conseguira segurá-la. A mantinha deitada e a acariciava. Depois a pegou no colo. Estava protegida. Não reagia apenas se deixava carregar. A boca aberta, a língua caída da boca, os olhos arregalados. O coração galopava pelo seu peito peludo. Pêlos brancos com manchas amareladas.
Estava salvo.
Ela também. Fugira em desatino na noite dos estouros e vagara perdida toda noite até àquela hora da tarde. Ela tem estrela, eu tive destino.
Acima, na íntegra, a mensagem de aviso. Podem ler, caso não tenham lido. Eu acabei de ler.

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