sábado, 13 de dezembro de 2008

Inhacundá

As lembranças daquele arroio e dos meninos pelados correndo a se jogar nas suas águas não me deixam. As marés das chuvas a crescer suas águas no contorno da minha cidade, São Francisco de Assis. Meus cabelos brancos não me afastam destas memórias, pelo contrário, a cada novo fio pálido de leite meu memorial se reconstrói. As minhas carnes se ficam com doze anos, o fôlego me volta de uma só vez, os olhos se arregalam, esbugalhos de contentamento.
O arroio se chega em curvas de sinuosas intenções.
Tenho mais que a nostalgia poderia me trazer, tenho a memória do vivido com aqueles guris.
Voltei.
Precisava voltar.
Achei quase tudo no lugar. Minha casinha humilde com seu telhado de telhas em canoa. A porta. Janelas. As mexeriqueiras sumiram e as terras se dividiram para abrigarem muitas casas. Mas a praça e os bugios ainda andam por lá, viraram atrações. Os matos se acabam e resta a praça com os seus macaqueadores. Os turistas se vêm para alimentá-los e se fotografarem juntos. Fico de longe.
Não tenho precisão das fotos, pois tenho a vida, conservo as lembranças. Escuto os gritos de convocação, Milton, vamos jogar bola na beirada, Vó Nena, posso, Vai, mas cuida a hora do sol mais fraco, Tem pão quando eu voltar, Bem quentinho. E lá se iam os guris de São Chico na direção do arroio Inhacundá. A pelada se jogava com bola de costuras por fora nem parecia que doía chutar. O guri que eu era crescia entre os amigos, enquanto meus irmãos se foram pra capital mudar de vida. Deixaram a absoluta calmaria pela agitação das charretes e fords bigodes. Burburinho civilizatório.
Talvez, tudo não tenha sido bem assim, mas e daí, é como lembro e gosto de pensar que foi. Depois do futebol batia aquela vontade danada de pular no Inhacundá, mas o que fazer dos calções molhados, todos se olhavam e lá se iam eles pernas abaixo. Corríamos pelados até a barranca e pulávamos um após o outro, feitos pedras de dominó. Minhas lembranças se ficaram dos vôos até as suas águas límpidas de cor marrom. Cheiravam a mato. Sinto ainda estar a flutuar da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de alegria, os olhos arregalados de satisfação e os braços estendidos junto com minhas mãos e dedos. Voltei a ser aquele guri que já havia esquecido, deixado de lado, meio a contragosto.
Nadávamos até a ilha no meio do arroio e tornávamos a saltar nas águas, Silêncio, Psiu, O que foi, Ouçam, Não to escutando, As gurias estão a se banhar lá pra cima, Vamos espiar. E lá nos íamos espiar os banhos das gurias, com seus maiôs de manga e pernas compridas. Quando nos viam saiam nas correrias. Todos fugiam. Voltávamos a buscar calções e calças.
Lembro dos dias de chuva dentro do rancho. Não sei se o rumo dos sonhos viaja no tempo e chega a terra de lugares distantes, para mudar as lembranças, apenas atravesso a rua. Eis a agonia de percorrer o tempo e lugares antes que o estalar dos dedos se faça ouvir. Caminho com as mãos nos bolsos e passos deliberadamente lentos. Tenho a pele avermelhada pelo sol radiante e mergulhada em sua luz devastadora. A vasta cabeleira negra cedeu lugar ao cabelo encanecido pelo tempo, cortado baixinho. Digo que estou ainda inteiramente ingênuo e, até esse tempo, represento por inteiro aquele menino.
Paro a tomar fôlego e ouvir minhas preces ocultas. As vozes dos guris.
Ninguém percebe minha alegria do espanto, o eco me retorna. Sou aquelas memórias que só existem em mim. Fui feito em muitos anos. Lutei em muitos moinhos e sonhos, devaneios de guri feito homem sozinho. Esses pedaços da memória que me pertencem me fazem de carne e osso.
Tenho oitenta, e sei, sempre terei doze. Aquele guri do Inhacundá chegou até aqui e pretende ir mais longe, Nada é tão simples, meus filhos, do que viver. Sou um narrador intrometido nos próprios sonhos de lembrar. Sinto saudades da escola que não fui, fugia para jogar bola e tomar banho de rio. Sinto a ausência das letras que deixei pelos caminhos sem decifrá-las. Fiz um mundo diferente para mim. Tenho meus grandes heróis, brilhantes e universais. Quero reunir todos e todas que enquanto dormem sonham e são felizes.
Sinto o sonho do sono invadir os lugares mais retirados do meu corpo. Minha consciência vai me abandonando, quase adormeço do mesmo modo que sempre digo que devem descansar, confiantes, sem medo do escuro, pois, no final, sempre vencemos a escuridão. Continuo a conduzir as histórias do real, gostosas lembranças de guri. Eu sou o que existe de fato, o andamento dos compassos recolhidos dentro da memória. Intacto. Descobri o tempo de dizer o que decifrei do tempo que também sou. Isso, eu sou o guri que nunca deixei de ser. No mundo dos sonhos estou apenas usando minha memória, lembrando do que desejo sonhar de novo, coisas que podem ser acontecidas. Sigo fazendo o meu discurso, o meu abraço em vocês, meus filhos, desses que acontecem de vez em quando, pelo mundo desta ilha de muitos sabores.
Hiiiippppp, estou a flutuar da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de contentamento, os olhos arregalados de satisfação e os braços estendidos junto com suas mãos, meus filhos. Meus cabelos nevados se arrepiam, envelheceram. Minhas memórias pulam ansiosas, gritam alegres.
A magia é um mundo aberto sem porteiras.

Nenhum comentário: