Linchar Zuñiga e ameaçar sua família não trará Neymar de volta
Leonardo Sakamoto
Blogueiro do UOL, em São Paulo05/07/201420h13
AFP PHOTO / ODD ANDERSEN
Sakamoto: "O que está sendo feito contra Zuñiga por algumas pessoas tem um nome: linchamento"
É claro que todos ficamos tristes, indignados, irritados, deprimidos, aviltados ou qualquer outro sinônimo que permita expressar a dor diante da falta cometida pelo colombiano Juan Zuñiga contra Neymar, na última sexta-feira, nas quartas de final da Copa. Doeu coletivamente, não só pelo brilhante jogador que não poderá concluir o campeonato, mas também por entendermos o que isso significa para todos nós.
Espero que Zuñiga receba uma punição da Fifa, não por vingança (afinal, banir o rapaz dos campos não vai trazer o Neymar de volta para a semifinal), mas para que sirva de referência aos próximos jogos (neste, a porrada correu solta e o juiz esqueceu os cartões no bolso) e para o próprio futebol.
E como a discussão entre "maldade" e "fatalidade" é do mesmo nível daquela sobre a definição do sexo dos anjos, não há como ter uma resposta definitiva sobre a intenção. O que é possível é analisar a ação em si e suas consequências e tomar uma decisão racional sobre elas.
Contudo, a entrada em Neymar ou mesmo a decepção de um país inteiro não são justificativas para que Zuñiga e sua família recebam as pesadas ameaças nas redes sociais.
Como, por exemplo, "que tal estoramos (sic) a coluna da sua filha?" e "Menina vai ser estuprada".
A mulher do jogador, em seu perfil em rede social, pediu: "por favor, estão ameaçando minha filha de ser estuprada, ela é inocente".
Mesmo entendendo que parte dos brasileiros está em estado de choque ou extremamente comovida pelo que aconteceu, não há justificativa plausível para ameaçar uma criança de estupro ou de agressão por conta do comportamento de seu pai em um jogo de futebol. Muito menos jurar o jogador de morte por conta do ocorrido.
Caso contrário, sugiro que paremos tudo e voltemos para as cavernas começar tudo de novo. Porque algo vai ter dado muito errado com a civilização.
"Ah, Japa, mas isso não vai acontecer. É só brincadeira. As pessoas não levam isso a sério no futebol." Em julho de 1994, o zagueiro Andrés Escobar foi morto ao retornar a seu país após a Colômbia ser desclassificada da Copa do Mundo. Ele foi responsabilizado pela saída da equipe ainda na primeira fase por ter feito um gol contra em jogo com os Estados Unidos, donos da casa. Morto. Por causa de um gol contra.
O que está sendo feito contra Zuñiga por algumas pessoas tem um nome: linchamento. Tem o mesmo DNA das turbas enfurecidas que decidem fazer justiça com as próprias mãos e prendem, espancam e matam nas capitais e no interior do Brasil.
Teoricamente, em algum momento da história humana, nós abrimos mão de resolver as coisas por conta própria para impedir que nos devorássemos. O sistema que criamos para isso não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje. A Fifa, além de não ser perfeita, responde por denúncias de corrupção e atenta contra a soberania dos países. Mas, gostando ou não, é a ela que se deve fazer uma representação pedindo que um jogador seja punido. Em tendo em vista a dura resposta que ela deu ao uruguaio Suárez, há uma grande chance de ter o pleito atendido.
Ao criticar linchamentos públicos de "culpados" ou "inocentes", não defendo "bandido", "a impunidade" ou "jogador criminoso", mas sim esse pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia.
Para muita gente, ações sumárias são lindas, sejam feitas pelas mãos da população contra um jogador de futebol e sua família, sejam pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. As pessoas estão cansadas de tentarem levar alguém a julgamento e, estando lá, conseguir uma condenação por ações realizadas contra os outros.
Mas creio que todos os que lutam para que Justiça não seja uma palavra bonita numa capa dura de um livro não se sentem contemplados quando o revide vem com o assassinato de um jogador ou o estupro de sua filha pequena.
E, da mesma forma que acontece nos linchamentos de suspeitos ou responsáveis por crimes, não raro a turba é incitada por jornalistas que, a partir da TV, analisam os fatos e dão seu veredito. Protegem-se atrás da justificativa de que não mandaram ninguém bater em ninguém. Como se precisassem dar a ordem quando todo o contexto já foi posto.
Logo após o jogo, quem zapeava os canais da TV encontrava discussões condenando o lance e criticando duramente o jogador - o que é normal. Mas muitos deles foram além. O próprio animador-mor, Galvão Bueno, falou em "atentado contra a arte, contra o futebol" ao externar sua revolta.
O problema é que, na cabeça de muita gente, violência contra quem faz atentados não é violência. É Justiça.
Não somos nós, jornalistas, que vamos a público cometer agressões. Da mesma forma que não é a mão de pastores ou deputados que seguram a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam gays e lésbicas. Mas somos nós que, muitas vezes, na busca por audiência ou para encaixar um fato em nossa visão de mundo, tornamos a agressão banal, quase uma necessidade para restabelecer a ordem das coisas.
Desejo a Neymar que se recupere rápido. E que sejamos campeões. Sou palmeirense, tenho fé naquele técnico. Mas também desejo que um ato violento não seja respondido com outros. Porque um título é importante. Mas a dignidade humana é mais.
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