A violência dentro da corporação: mulheres policiais relatam assédio moral e sexual
SUL21
Daiane Vivatti
Em janeiro veio o primeiro assédio. “Quando eu estava com a viatura, deixava um dos meus colegas em casa, depois largava o material para o delegado despachar e me despedia. Em uma das vezes que eu fui dar tchau, ele me segurou pelos dois braços e me beijou o braço até o pescoço dos dois lados. Fiquei com os braços esticados, sem reação. Eu pensei ou ele é louco ou é tarado, será que ele faz isso com a minha colega também?” Laura* é escrivã, trabalha em uma delegacia no interior do Estado e sofreu assédio sexual de um delegado no primeiro mês de trabalho. Depois da primeira vez, ainda vieram outras duas, dentro do próprio local de trabalho.
“Na segunda vez, ele me chamou para ir à delegacia em um sábado de manhã. Eu estranhei, mas minha colega tinha alertado que ele chamaria pra ficar contando ‘causos’. Eu não queria ir, mas diz que tem uma lei que quando o delegado chama, tem que ir. Quando disse que precisava ir embora fui dar tchau e quando olhei pra frente ele tava fazendo “biquinho” pra eu beijar ele na boca. Aí eu virei o rosto e nisso ele me agarrou pelo quadril. Eu fiquei paralisada, olhei minha bolsa que estava do lado da porta e saí”. Laura lembra que quando chegou em casa contou para a mãe e foi orientada pela família a sair da polícia, mas não achou justo desperdiçar os anos de estudo por sofrer essa violência.
“Em fevereiro, aconteceu outro assédio dentro da delegacia, ou seja, ele não ia parar. Eu contei para os meus colegas (…) um deles, que tinha experiência em plantão e já havia tratado de casos de violência contra a mulher disse: só um pouquinho, tu não pode deixar assim, tu é vítima, se tu ficar quieta vai dar margem pra ele continuar fazendo isso”. Laura rompeu o silêncio e denunciou o caso. A escrivã recebeu apoio de muitos colegas, do sindicato, mas passou por momentos difíceis: “O mais horrível, além de toda aquela decepção de entrar na polícia (chora) (…) a gente pensa que é uma coisa e é outra, né?! Teve audiência do Conselho Superior de Polícia e foi pior, porque o lugar onde achei que ia ter pessoas com uma capacidade intelectual, um ambiente sério, que iam ouvir, eu fui atacada. A autoridade processante disse na minha cara que a culpa foi minha. Primeiro ele disse pra mim que quando um delegado chama eu tenho obrigação de ir (…) e depois ele disse que eu fui porque eu quis, porque eu sou uma mulher adulta e que a culpa foi minha. Mas se Deus quiser, no Fórum é diferente”.
Para Denise Dora, Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado, mesmo com todas as dificuldades e o medo de realizar uma denúncia de violência sexual ou assédio – já que isso implica não só em enfrentar um colega, mas toda organização daquela Instituição – a importância do ato está no fato de que existem “muitos casos demonstrando que quando uma mulher toma coragem pra denunciar o caso, aparece uma enxurrada de outras denúncias contra aquela mesma pessoa. Já que em um ambiente de trabalho, muitas vezes um sujeito assediador não faz isso só com uma mulher, mas faz com várias e é preciso quebrar esse ambiente de impunidade”.
Foi o que aconteceu com Laura: após a acusação, outra colega também denunciou o delegado por assédio. No dia seguinte à denúncia, a regional onde a escrivã atua baixou uma portaria, e o delegado foi trocado de delegacia. “Ele acha que está tão certo o que ele faz, que, pra ele, isso [a denúncia] é um golpe (…) pra ele é normal, então eu penso que ele fez isso com tantas outras vítimas e as mulheres têm medo de falar pra não serem humilhadas e eu entendo, quando eu fui no Conselho eu vi, em vez de ser vítima tu entra lá como culpada” – desabafa Laura. A policial precisou realizar tratamento psicológico e psiquiátrico.
Mãe policial castigada
E o assédio sexual não é a única forma de violência que atinge as mulheres policiais. Um debate acerca do tema foi realizado na última sexta-feira (25) no evento “Vamos falar sobre nós”, primeiro seminário da Ugeirm Sindicato “Construindo a Identidade Feminina na Segurança Pública”. A painelista, diretora de gênero do sindicato e idealizadora do encontro, Neiva Carla Back Leite, enfatizou que piadas discriminatórias são ouvidas diariamente pelas profissionais, além da existência de assédio moral e diferença nos trabalhos desempenhados – como, por exemplo, trabalhos na rua e de investigação – porque as mulheres necessitam provar diariamente que são capazes, o que não acontece com os homens. “Todas nós sofremos assédio, por mais que a gente não perceba, existe, e isso é uma coisa que não é falada”.
Carla* é inspetora há 6 anos e conta que, desde que entrou na polícia, os comentários preconceituosos de colegas pelo fato de ela ser mulher sempre existiram, além da constante necessidade de provação: “tu sempre tem que comprovar não [apenas] que tu é competente, mas que tu é duas, três vez mais competente que o colega, só que é uma coisa mais velada”. Mas o assédio moral já atingiu a profissional também de maneira explícita. Com a previsão de entrada de novos policiais, Carla e o marido – que trabalha como inspetor no mesmo local – acharam uma boa oportunidade para pedir a troca de delegacia, já que o processo envolve conversar com diversos superiores. Inicialmente, o delegado disse que “não havia problema”, mas a inspetora conta que depois lhe foram impostas represálias. “Ele parou de falar comigo, fez uns dois churrascos na delegacia e não me convidou, ele não me cumprimentava mais e o meu marido ele continuava cumprimentando, conversando”.
A inspetora é mãe e, na época, a filha estava com um ano de idade, em período de amamentação. Como no local de trabalho existia plantão 24 horas, o delegado passou a tentar colocar Carla nessa escala de trabalho. “Eu tava amamentando, mas mesmo que eu não estivesse, como eu ia deixar a minha filha sozinha? Ela já passa todo o dia na creche, eu não poderia ficar com ela à noite” – conta a policial. Ela pediu ajuda para as chefias acima do delegado, expôs a situação e, inicialmente, conseguiu auxílio. “Mas a forma que ele achou de me castigar foi fechando o plantão 24 horas. Agora o registro de ocorrências é das 8h ao 12h e das 13h30 às 18h, ele me colocou lá, então eu fico lá o dia inteiro registrando ocorrência. Ele disse para os colegas que foi a forma que encontrou de me castigar” – relata Carla. A inspetora avalia que obteve apoio de superiores, mas aponta que alguns pendem para a defesa do delegado. Enquanto ela e o marido aguardam a transferência, é necessário apoio psiquiátrico.
A diretora Neiva Carla Back Leite destaca que debater os casos de violência é de extrema importância para que as próprias mulheres identifiquem as agressões: “Quando se fala em violência contra a mulher, a gente pensa logo nas mulheres fora da Instituição. Não! Nós também sofremos violência. E é isso que nós temos que ter presente, é isso que nós temos que parar, desnudar, pensar, a gente sofre alguma violência quase todos os dias nas delegacias de polícia”.
Denise Dora explica que esse empoderamento – independente do local onde a violência acontece – é necessário para a integridade pessoal das policiais que realizam atendimento: “Eu sou advogada, já fiz muitos atendimentos de mulheres em situação de violência. Se a gente tiver passando por uma situação de violência, se a gente tiver passando por uma situação de assédio, se a gente não estiver segura dessa integridade, dessa autonomia, obviamente que o relato da outra nos atinge em cheio, desestabiliza, a gente tem dificuldade de atender, então tem uma questão que é subjetiva, mas acaba produzindo um efeito nos procedimentos objetivos, portanto a gente tem que estar empoderadas, a gente tem que conhecer os direitos”. Neiva reforça que, para as profissionais, é necessária uma mudança dentro da Instituição: “A gente sabe que é terrível o número de feminicídios e para que a gente possa prestar um bom serviço, para que as pessoas possam ter direitos uma segurança de qualidade, é necessário que nós, mulheres policiais, sejamos incluídas nessa estrutura de segurança, sejamos enxergadas e respeitadas”.
*Os dois nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade das vítimas
SUL21
Daiane Vivatti
Casos de violência sofrida por mulheres dentro da polícia foram relatados em seminário promovido pela Ugeirm. Foto: Ramiro Furquim/Sul21 |
Em janeiro veio o primeiro assédio. “Quando eu estava com a viatura, deixava um dos meus colegas em casa, depois largava o material para o delegado despachar e me despedia. Em uma das vezes que eu fui dar tchau, ele me segurou pelos dois braços e me beijou o braço até o pescoço dos dois lados. Fiquei com os braços esticados, sem reação. Eu pensei ou ele é louco ou é tarado, será que ele faz isso com a minha colega também?” Laura* é escrivã, trabalha em uma delegacia no interior do Estado e sofreu assédio sexual de um delegado no primeiro mês de trabalho. Depois da primeira vez, ainda vieram outras duas, dentro do próprio local de trabalho.
“Na segunda vez, ele me chamou para ir à delegacia em um sábado de manhã. Eu estranhei, mas minha colega tinha alertado que ele chamaria pra ficar contando ‘causos’. Eu não queria ir, mas diz que tem uma lei que quando o delegado chama, tem que ir. Quando disse que precisava ir embora fui dar tchau e quando olhei pra frente ele tava fazendo “biquinho” pra eu beijar ele na boca. Aí eu virei o rosto e nisso ele me agarrou pelo quadril. Eu fiquei paralisada, olhei minha bolsa que estava do lado da porta e saí”. Laura lembra que quando chegou em casa contou para a mãe e foi orientada pela família a sair da polícia, mas não achou justo desperdiçar os anos de estudo por sofrer essa violência.
“Em fevereiro, aconteceu outro assédio dentro da delegacia, ou seja, ele não ia parar. Eu contei para os meus colegas (…) um deles, que tinha experiência em plantão e já havia tratado de casos de violência contra a mulher disse: só um pouquinho, tu não pode deixar assim, tu é vítima, se tu ficar quieta vai dar margem pra ele continuar fazendo isso”. Laura rompeu o silêncio e denunciou o caso. A escrivã recebeu apoio de muitos colegas, do sindicato, mas passou por momentos difíceis: “O mais horrível, além de toda aquela decepção de entrar na polícia (chora) (…) a gente pensa que é uma coisa e é outra, né?! Teve audiência do Conselho Superior de Polícia e foi pior, porque o lugar onde achei que ia ter pessoas com uma capacidade intelectual, um ambiente sério, que iam ouvir, eu fui atacada. A autoridade processante disse na minha cara que a culpa foi minha. Primeiro ele disse pra mim que quando um delegado chama eu tenho obrigação de ir (…) e depois ele disse que eu fui porque eu quis, porque eu sou uma mulher adulta e que a culpa foi minha. Mas se Deus quiser, no Fórum é diferente”.
Denise Dora (Foto: Guilherme Santos/Sul21) |
Para Denise Dora, Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado, mesmo com todas as dificuldades e o medo de realizar uma denúncia de violência sexual ou assédio – já que isso implica não só em enfrentar um colega, mas toda organização daquela Instituição – a importância do ato está no fato de que existem “muitos casos demonstrando que quando uma mulher toma coragem pra denunciar o caso, aparece uma enxurrada de outras denúncias contra aquela mesma pessoa. Já que em um ambiente de trabalho, muitas vezes um sujeito assediador não faz isso só com uma mulher, mas faz com várias e é preciso quebrar esse ambiente de impunidade”.
Foi o que aconteceu com Laura: após a acusação, outra colega também denunciou o delegado por assédio. No dia seguinte à denúncia, a regional onde a escrivã atua baixou uma portaria, e o delegado foi trocado de delegacia. “Ele acha que está tão certo o que ele faz, que, pra ele, isso [a denúncia] é um golpe (…) pra ele é normal, então eu penso que ele fez isso com tantas outras vítimas e as mulheres têm medo de falar pra não serem humilhadas e eu entendo, quando eu fui no Conselho eu vi, em vez de ser vítima tu entra lá como culpada” – desabafa Laura. A policial precisou realizar tratamento psicológico e psiquiátrico.
Mãe policial castigada
E o assédio sexual não é a única forma de violência que atinge as mulheres policiais. Um debate acerca do tema foi realizado na última sexta-feira (25) no evento “Vamos falar sobre nós”, primeiro seminário da Ugeirm Sindicato “Construindo a Identidade Feminina na Segurança Pública”. A painelista, diretora de gênero do sindicato e idealizadora do encontro, Neiva Carla Back Leite, enfatizou que piadas discriminatórias são ouvidas diariamente pelas profissionais, além da existência de assédio moral e diferença nos trabalhos desempenhados – como, por exemplo, trabalhos na rua e de investigação – porque as mulheres necessitam provar diariamente que são capazes, o que não acontece com os homens. “Todas nós sofremos assédio, por mais que a gente não perceba, existe, e isso é uma coisa que não é falada”.
Carla* é inspetora há 6 anos e conta que, desde que entrou na polícia, os comentários preconceituosos de colegas pelo fato de ela ser mulher sempre existiram, além da constante necessidade de provação: “tu sempre tem que comprovar não [apenas] que tu é competente, mas que tu é duas, três vez mais competente que o colega, só que é uma coisa mais velada”. Mas o assédio moral já atingiu a profissional também de maneira explícita. Com a previsão de entrada de novos policiais, Carla e o marido – que trabalha como inspetor no mesmo local – acharam uma boa oportunidade para pedir a troca de delegacia, já que o processo envolve conversar com diversos superiores. Inicialmente, o delegado disse que “não havia problema”, mas a inspetora conta que depois lhe foram impostas represálias. “Ele parou de falar comigo, fez uns dois churrascos na delegacia e não me convidou, ele não me cumprimentava mais e o meu marido ele continuava cumprimentando, conversando”.
Mulheres policiais em encontro recente da categoria | Foto: Divulgação/Ugeirm |
A inspetora é mãe e, na época, a filha estava com um ano de idade, em período de amamentação. Como no local de trabalho existia plantão 24 horas, o delegado passou a tentar colocar Carla nessa escala de trabalho. “Eu tava amamentando, mas mesmo que eu não estivesse, como eu ia deixar a minha filha sozinha? Ela já passa todo o dia na creche, eu não poderia ficar com ela à noite” – conta a policial. Ela pediu ajuda para as chefias acima do delegado, expôs a situação e, inicialmente, conseguiu auxílio. “Mas a forma que ele achou de me castigar foi fechando o plantão 24 horas. Agora o registro de ocorrências é das 8h ao 12h e das 13h30 às 18h, ele me colocou lá, então eu fico lá o dia inteiro registrando ocorrência. Ele disse para os colegas que foi a forma que encontrou de me castigar” – relata Carla. A inspetora avalia que obteve apoio de superiores, mas aponta que alguns pendem para a defesa do delegado. Enquanto ela e o marido aguardam a transferência, é necessário apoio psiquiátrico.
A diretora Neiva Carla Back Leite destaca que debater os casos de violência é de extrema importância para que as próprias mulheres identifiquem as agressões: “Quando se fala em violência contra a mulher, a gente pensa logo nas mulheres fora da Instituição. Não! Nós também sofremos violência. E é isso que nós temos que ter presente, é isso que nós temos que parar, desnudar, pensar, a gente sofre alguma violência quase todos os dias nas delegacias de polícia”.
Denise Dora explica que esse empoderamento – independente do local onde a violência acontece – é necessário para a integridade pessoal das policiais que realizam atendimento: “Eu sou advogada, já fiz muitos atendimentos de mulheres em situação de violência. Se a gente tiver passando por uma situação de violência, se a gente tiver passando por uma situação de assédio, se a gente não estiver segura dessa integridade, dessa autonomia, obviamente que o relato da outra nos atinge em cheio, desestabiliza, a gente tem dificuldade de atender, então tem uma questão que é subjetiva, mas acaba produzindo um efeito nos procedimentos objetivos, portanto a gente tem que estar empoderadas, a gente tem que conhecer os direitos”. Neiva reforça que, para as profissionais, é necessária uma mudança dentro da Instituição: “A gente sabe que é terrível o número de feminicídios e para que a gente possa prestar um bom serviço, para que as pessoas possam ter direitos uma segurança de qualidade, é necessário que nós, mulheres policiais, sejamos incluídas nessa estrutura de segurança, sejamos enxergadas e respeitadas”.
*Os dois nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade das vítimas
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