terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

a construção do mito e a roubação da memória

O mito do gauchismo-pardal

Diário Gauche



Todo mito moderno é um roubo e uma ocupação: rouba a história e ocupa a imaginação do homem abstrato; devolvendo-lhe um arremedo de identidade. O mito do gauchismo, emalado nos arreios do tradicionalismo estancieiro, foi duramente criticado por Érico Veríssimo em “O tempo e o vento”, através do personagem Floriano Cambará.

“Sentido! – disse ele a um negro,
queres passar por bonito,
e és no entanto o mais maldito
que se encontra em todo o pago;
um favor é o que te trago,
quando ao serviço te admito”.

               (“Martin Fierro”, de José Hernández, publicado em 1872. Aqui, Martin relata o tratamento dado aos peões nas estâncias do pampa. Canto XXV, 936.)


Jorge Luis Borges, um dos mais imaginosos escritores da literatura universal, tem um conto breve e trágico chamado A intrusa; tão breve, quanto denso de significações – uma das marcas da escrita borgeana. A trama é simples e direta: no final do século 19, dois irmãos, muito unidos, que “foram tropeiros, carneadores, ladrões de gado e, uma ou outra vez, trapaceiros”, começam a compartilhar dos serviços domésticos e sexuais de Juliana Burgos, uma morena de olhos rasgados e sorriso fácil. Na alma xucra dos irmãos brota o “amor monstruoso”, e “isso, de algum modo, os humilhava”. Então, vendem Juliana Burgos (“que era uma coisa”) a um prostíbulo; mas cada um, escondido, continua a freqüentá-la. “A infame solução havia fracassado; os dois haviam cedido à tentação de fazer trapaça”. Caim andava por ali. À intrusa Juliana Burgos, “que trouxera a discórdia”, só restava a morte. A sua eliminação é uma forma insana de reconciliá-los, na obrigação de esquecê-la.

Juliana Burgos

A metáfora borgeana, nesse caso, simboliza a intolerância do narcísico para com o Outro. O indesejado interpõem-se frente às imagens que desejamos ver ou ser. O narcisismo quer mais do mesmo – daí a sua intransigência para com o diferente. O diferente precisa ser eliminado. As Juliana Burgos precisam morrer. Suas existências são motivo de medo e sofrimento para a arranjada e sempre precária normalidade dos iguais.

A evocação borgeana não é fortuita. Senão, vejamos: no Rio Grande do Sul, os formuladores e militantes políticos do tradicionalismo gauchista tem medo de Juliana Burgos. Tem medo do diferente. Por isso querem impor a ordem unidimensional da estância. Ramiro Frota Barcellos, na obra Rio Grande, tradição e cultura (1915), é de uma clareza solar quanto aos propósitos delirantes do tradicionalismo estancieiro: “O que agora se verifica, mercê do atual movimento tradicionalista, é a transposição simbólica dos remanescentes dos ‘grupos locais’, com suas estâncias e seus galpões para o coração das cidades. Transposição simbólica, mas que fará sobreviver, na mais singular aculturação de todos os tempos, o Rio Grande latifundiário e pecuarista”. O arrebatado Ramiro manifesta aqui uma violência latente, uma mentalidade-pardal, uma agressividade incomum na imposição de valores míticos que ele quer que sejam dominantes na região.

O tradicionalismo estancieiro de espetáculo constitui-se, a rigor, em um mito; um mito que trabalha para legitimar-se (e tornar-se exclusivo) como fala, hábitos, costumes, valores e discursos, através dos métodos da naturalização. Em sociedades escassamente letradas, como o Rio Grande do século XIX, o discurso do poder tem trânsito e capilaridade social difícil, e o grau de inteligibilidade é próximo do zero. Como fazer para legitimar o mando e, sobretudo, os valores hegemônicos de elites econômicas e culturais num cenário humano tão tosco e refratário? “Ele teria de ser feito – assinala José Murilo de Carvalho – mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos”.

Esses “sinais mais universais”, agora, são compreendidos e assimilados por todos. E de forma lenta, acumulativa e constante vão se naturalizando no senso comum das populações, sejam letrados ou iletrados. Não foi Mirabeau que afirmou ser necessário “apoderar-se da imaginação do povo”? Assim, o mito moderno é um roubo e uma ocupação: rouba a história e ocupa as mentalidades, em troca empresta-lhe um simulacro de identidade social. A mitologia é um processo lento, mas compensado por eficácia imagética, democratização horizontal dos discursos, porosidade étnica, nivelamento cognitivo, abolição do conflito, universalidade social, ocultamento do propósito original e seu caráter de sujeição/disciplinamento de classes, aparenta neutralidade política, e, o mais importante, naturalização simbólica de tudo que faz parte do universo mítico. Exemplo: “é da natureza do gaúcho ser assim, bravo, indômito, grosso e rebelde”. Essa é a típica fala do mito: um constructo, um arranjo manipulatório com a moldura do Natural, visando objetivos de normalização, sujeição e disciplinamento social. O gaúcho (em abstrato) não é natural, assim como o social igualmente não é natural. Tanto o gaúcho coletivo, abstrato, quanto o cidadão conceitual são inventivas construções histórico-sociais. Ambos estão inscritos numa ordem cultural – que é histórica – que pode e deve passar pelo crivo de amiúdes revisões críticas, especialmente se estiverem a serviço de objetivos dissimuladamente políticos, comerciais ou falsamente culturais, como é o caso do gauchismo-pardal. As máscaras sempre caem, mas pode-se abreviar essa fatalidade. Roland Barthes diz que “a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade”. “Passando da história à natureza – prossegue Barthes – o mito faz uma economia; abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias”.

O mito é naturalizado

No mito, a natureza das coisas é auto-explicada e, por isso mesmo, tautológicas, onde se define o mesmo pelo mesmo: “gaúcho é gaúcho; sendo gaúcho você é naturalmente tradicionalista; sendo tradicionalista você é naturalmente gaúcho”. E estamos conversados, permanecemos prisioneiros de uma sentença irrecorrível. Quem estiver fora dessa perspectiva estreita está fora do mundo. É o diferente que precisa ser eliminado. É a temida Juliana Burgos. Sartre diz que a tautologia “é um duplo assassinato: mata-se o racional porque ele nos resiste, mata-se a linguagem porque ela nos trai”. Além disso, a tautologia (muito presente no discurso gauchista) protege-se covardemente atrás do “argumento de autoridade” ou, como diz o senso comum, o ultimato vil do “carteiraço”: “é assim porque é assim”; “porque é, e ponto final”, “eu sei porque sou fulano de Tal”. Ou, o que é pior: “eu sei porque sou seu Pai”. Barthes diz que a tautologia é uma recusa à linguagem, e toda recusa à linguagem é uma morte: “a tautologia fundamenta um mundo morto, um mundo imóvel”. Os assassinos de Juliana Burgos nunca dialogam com ela, nem a chamam pelo nome; uma “coisa” não merece razão e sensibilidade, merece o silêncio, a morte e o repasto do carancho rapineiro.

O processo mítico começa a desenvolver-se – assegura Raoul Girardet – “a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se pode considerar como um fenômeno de não-identificação”. O mito trata, então, de fornecer uma postiça identidade imagética às sensibilidades humanas. Como as ilusões estão todas mortas e enterradas, o mito as substitui por imagens de efeito placebo face às inquietações da modernidade avançada.

Lacan diz que “o faltante é estruturante”. Pois, o fenômeno do tradicionalismo narcisista, em que pese a sua simbologia simplória e sem saliências, encerra profundas repercussões na alma popular. O mito por ser despolitizante; opera uma ponte entre o passado e o futuro, sem tocar no presente, porque aí habita a política. O futuro será iluminado e glorioso como o passado na versão estancieira, e seleciona imagens identitárias, espelhos dourados ao homem-multidão. Não somos como os animais, que se alimentam do imediato; a alma humana se alimenta – sobretudo – do faltante, do sonho, da projeção dos contornos do futuro anunciados pelos filósofos, profetas, demiurgos e utopistas. A matéria dos sonhos é feita de retalhos mesclados de utopia, memória, esquecimento, superstição, consciência, inconsciência, religião, encantamento, frustração, satisfação, magia, ciência, lucidez e loucura. O “desencantamento do mundo” (Weber) nunca se completa, novos encantamentos modelam-se nos rescaldos da história, novos mitos surgem para roubar-nos a humanidade, a imaginação e a autonomia. Estudos em neurologia informam que os dois hemisférios do cérebro humano guardam, cada qual, a sua própria sintaxe de pensamento e expressão lingüística; de um lado, o pensamento e a fala simbólica, pré-lógica, mágica (de que se nutre o mito); de outro, se sobressai o pensamento e a linguagem conceitual e lógica (de que se nutre a ciência). Isso propicia o retorno do velho – mas sempre atual – tema binário da alienação e emancipação. Seja que categoria ou linha epistemológica estivermos tratando – lenda, tradição inventada, comunidade de imaginação, mito, má consciência, razão instrumental, ideologia, produção de verdades, etc. –, tudo se sintetiza dialeticamente no tema da alienação/reificação do homem sem qualidades. O mito é uma das tantas moradas da alienação e da heteronomia.

Quem tem medo de Floriano Cambará?

A história do Rio Grande foi contada por um sem-número de historiadores, cientistas sociais, etnógrafos, antropólogos, etc., muitos autênticos, alguns impostores. Mas, é na literatura vertida em arte, pela imaginação poética de Érico Veríssimo (1905-1975)., que ela encontra o seu relevo mais saliente e expressivo. A historiografia é feita de memória e esquecimento; a memória dos vencedores e o esquecimento dos vencidos. Érico não esqueceu de ninguém, nos mais de dois séculos do mosaico humano rio-grandense que ele narrou.

Floriano Cambará é um personagem do grande escritor brasileiro, que, num exercício de metalinguagem, faz de Floriano o autor do romance “O tempo e o vento”, que abarca o período de 1745 à década de 1950. É um segundo eu do escritor, um álter ego, que ele dá vida nas mais de duas mil páginas da homérica narrativa ficcional sobre o Rio Grande do Sul – um Estado dividido em dois, social e economicamente; a metade Norte, onde o módulo rural é minifundiário, tem padrões socioeconômicos relativamente elevados; a metade Sul, onde a matriz produtiva é o latifúndio, o desenvolvimento humano é degradado, não houve industrialização e as poucas cidades são antigas, bonitas e decadentes.

No dia 17 de dezembro de 2005, Érico, se estivesse vivo, completaria 100 anos. Está, pois, aberta a temporada de debates sobre a obra desse escritor notável que ajudou a interpretar parte da complexidade, riqueza cultural, polissemia e polifonia do Rio Grande em que nasceu, sem nunca agasalhar-se nos pelegos do tradicionalismo piolho-de-estância. Sacrificam-se sozinhos, como perdiz no arame, os que suspeitam que “O tempo e o vento” seja mais uma tediosa obra regionalista de filiação passadista. O romance é um vasto e febricitante painel, em alto e baixo relêvo, das humanidades e desumanidades que o solo meridional experimentou na sua curta e densa história. “O tempo e o vento” não é uma narrativa plana e lisa, é sim uma narrativa com História (simbolizada pelo Tempo, pelas mulheres fortes, homens nem tanto, famílias, lutas pelo poder e pela vida) e com Natureza (simbolizada pelo Vento, pelas coxilhas, pelo pampa e pela terra). Terra essa que começa, pouco a pouco, a sair da natureza para entrar na história, através da apropriação privada, a estância, o latifúndio, os arames, o gado chimarrão, o charque, as vilas, as revoluções, a cidade de Santa Fé e o mítico Sobrado – o cenário privilegiado da intrincada trama de Érico.

Os trovões da razão crítica

Floriano Cambará é um crítico afiado do tradicionalismo gaucheiro, bem como outros personagens do grande romance. É ilustrativo o diálogo áspero que travam Terêncio, o latifundiário, de um lado, e Floriano, o escritor, de outro.

“É estranho – observa Terêncio – que logo um escritor aí esteja a desprezar, a atacar os símbolos, as metáforas, os mitos. Como seria possível gerarem-se e manterem-se civilizações sem o uso de símbolos? Como poderia o homem transmitir a cultura aos seus descendentes, através dos séculos, sem os símbolos?”

“Estou absolutamente de acordo com o senhor – replica Floriano. – Como poderia haver arte literária sem símbolos? Como poderia existir arte poética sem palavras, símbolos ou metáforas? Mas quero que me entendam... A linguagem figurada pode ser perfeitamente inocente, além de bela e necessária. Mas o perigo começa quando o povo toma ao pé da letra, como verdades absolutas, os símbolos e metáforas políticas e sociais engendrados de acordo com o interesse imediato de quem os emprega.”

Lá fora, para sugerir tensão à narrativa, uma noite chuvosa e com trovoadas estremece molhando Santa Fé. Parece que os elementos celestes querem intervir na peleia verbal.
“Terêncio parece estonteado.

- Mas é assustador! – exclama. – Os senhores destroem tudo, não acreditam em nada e em ninguém! Se nós os gaúchos jogamos fora os nossos mitos, que é que sobra?

Floriano olha para o estancieiro e diz tranqüilamente:

- Sobra o Rio Grande, doutor. O Rio Grande sem máscara. O Rio Grande sem belas mentiras. O Rio Grande autêntico. Acho que à nossa coragem física de guerreiros devemos acrescentar a coragem moral de enfrentar a realidade.

- Mas o que é que o senhor chama de realidade?

- O que somos, o que temos. E não vejo por que tudo isso deva ser necessariamente menos nobre, menos belo ou menos bom que essas fantasias saudosistas do gauchismo com que procuramos nos iludir e impressionar os outros”, completou Floriano Cambará.

Roland Barthes se estivesse ali no sobrado de Santa Fé, naquela noite barulhenta e molhada, certamente, comentaria sobre o debate do mito gauchista: “A sua clareza é eufórica!”


(*) Por que gauchismo-pardal? Ora, o pardal é um pássaro exclusivista, quando se instala em uma querência acaba expulsando todos os demais passarinhos da região. Assim é a cultura gaucheira, depois que se impôs como a principal (e única) cultura sulina, inibiu as demais manifestações do riquíssimo mosaico étnico-cultural do Rio Grande do Sul.  

Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo. Publicado originalmente aqui.

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