O Sistema Venezuelano ou ‘Uma tormenta tropical sobre Salzburgo’
José Antonio Abreu, o criador do El Sistema | Foto: Harvard University
Milton Ribeiro no SUL 21
El Sistema (“O Sistema”) é um modelo de ensino musical que foi criado na Venezuela por José Antonio Abreu. Consiste em um projeto de educação musical público gratuito e altamente capilarizado, voltado a crianças e jovens de todas as camadas sociais.
El Sistema é gerido pela Fundación del Estado para el Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles e Infantiles de Venezuela (FESNOJIV), órgão estatal venezuelano responsável pela manutenção de mais de 125 orquestras (sendo 30 sinfônicas) e coros juvenis, e pela educação de mais de 400.000 estudantes, em 180 núcleos distribuídos pelo território venezuelano.
Segundo a definição da própria FESNOJIV, “El Sistema visa organizar sistematicamente a educação musical e promover a prática coletiva da música através de orquestras sinfônicas e coros, como meio de organização e desenvolvimento das comunidades”. Evidentemente, a importância do método não se limita a seus excelentes resultados artísticos. A maior parte dos jovens músicos de El Sistema provém das camadas mais carentes da população que, na música, encontra uma via de desenvolvimento intelectual e de ascensão social. El Sistema tem como objetivo principal a proteção social dos jovens mais pobres e também a sua reabilitação, nos casos de envolvimento com práticas criminosas.
A maior parte dos jovens do El Sistema provém das camadas mais carentes da população | Foto: FESNOJIV
José Antonio Abreu, economista e músico, fundou El Sistema em 1975, com o nome de Acción Social para la Música, e tornou-se seu diretor. Desde então, conseguiu desenvolver o projeto com o apoio de instituições governamentais que, ao longo de quase 40 anos, foram ora progressistas, ora conservadoras. O governo de Hugo Chávez foi o mais generoso com El Sistema, chegando a bancar quase inteiramente seu orçamento.
O projeto é ligado ao Ministério da Família, do Esporte e da Saúde, não ao Ministério da Cultura.
Alguns d seus estudantes tornaram-se estrelas internacionais da música erudita, a exemplo dos maestros Gustavo Dudamel, Dietrich Paredes, Christian Vasquez e Diego Matheuz, do contrabaixista da Filarmônica de Berlim Edicson Ruiz, do violista Joen Vazquez, do flautista Pedro Eustache, do violinista e maestro Edward Pulgar e da maestrina Natalia Luis-Bassa.
Em 2004, foi feito um documentário sobre El Sistema, dirigido por Alberto Arvelo, intitulado Tocar y Luchar. O filme obteve vários prêmios, como o de melhor documentário no Cine Las Americas International Film Festival e no Albuquerque Latino Film Festival. Em 2008, foi produzido um outro filme, El Sistema, dirigido por Paul Smaczny e Maria Stodtmeier.
A seguir, traduzimos uma embasbacada matéria de Jesús Ruiz Mantilla para o El País, de Madrid. Trata-se de uma reportagem a respeito de uma excursão que uma das orquestras do El Sistema — a Orquestra Sinfônica Nacional Infantil da Venezuela – fez ao Festival de Salzburgo, dias trás.
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Tormenta Tropical em Salzburgo
Marina Mahler tem medo de voar. Por isso, até ontem, a neta do grande compositor austríaco Gustav Mahler não pudera confirmar a veracidade das histórias que lhe chegavam da Venezuela. Lá, contaram-lhe, uns meninos de 8 a 14 anos eram capazes de interpretar a Primeira Sinfonia de seu avô. E o faziam com um vigor, um entusiasmo e um senso de estilo que muitos profissionais desejariam para si.
Porém, ontem pela manhã, no Festival de Salzburgo, ela mesma pode assistir o milagre com os olhos marejados. “A música transforma, é verdade. E essas crianças alcançaram e têm em comum com meu avô as emoções necessárias para interpretá-lo”, afirmou Marina.
Ela sabe do que fala. Quando Ruben Rodriguez, de 13 anos, primeiro contrabaixo da Orquestra Sinfônica Nacional Infantil da Venezuela atacou o terceiro movimento da Titan, esta dança doce e assustadora que Mahler compôs com a memória traumática, trazida de sua infância, de um enterro de uma criança, os outros 207 outros músicos da orquestra o acompanharam com inusitada experiência.
Dudamel com a Orquestra Simón Bolívar | Foto: FESNOJIV
Talvez eles saibam como ninguém o significado de uma facada que mata um membro de sua família ou um colega nos bairros em que vivem, na periferia de Caracas, Maracaibo, Barquisimeto, Victoria, Coro, Cumaná, Valência… Locais de onde saíram todos estes presentes e futuros músicos. Os que ontem se apresentaram com Simon Rattle, neste templo da música ocidental e na presença de José Antonio Abreu, são, em sua maioria, de extração social muito pobre.
O que ocorreu nesta edição do Festival de Salzburgo pareceu a todos um fenômeno, diz o chefe do evento, Alexander Pereira, com a concordância de Rattle. “Este é o mais importante evento educacional que vi, não apenas nos últimos anos, mas em toda a minha vida”, comentou o diretor da Filarmônica de Berlim.
E o público concordou, comparecendo em massa às 16 aparições que músicos venezuelanos fizeram este ano em Salzburgo: a primeira com a Orquestra Simon Bolívar, depois, com o Coro de Mãos Brancas — composto por surdos-mudos e portadores de necessidades especiais – e hoje com a atuação da Orquestra Infantil.
O que ocorreu foi, nem mais nem menos, uma avalanche de talento tropical sobre a mais pura tradição europeia — e ainda por cima na cidade de Mozart. Algumas décadas atrás, ninguém poderia imaginar que um fato assim fosse possível. Foi a confirmação de um fenômeno que atrai a atenção mundial: o chamado “O Sistema”.
O maestro titular da Filarmônica de Berlim, Simon Rattle | Foto: Reprodução
A história do Sistema desde os anos setenta até hoje é a história de um desafio constante, de um desafio lançado contra uma série de convenções e convicções. É um conto com final feliz que envolve ascensão social e fé irrevogável nas pessoas. “Eu não sei se o Sistema pode ser implementado em qualquer país”, diz Rattle. “Eu acho que é mais fácil em locais com fortes raízes musicais. Ele pode funcionar em locais como África do Sul, Venezuela ou Finlândia… Mas, pensando bem, talvez seu êxito seja devido aos esforços de um homem. A África do Sul contou com Mandela; a Venezuela, com Abreu “, assegura o maestro de Liverpool.
É este o campeonato onde joga Abreu. O campeonato dos grandes líderes humanitários, acima de governos e dos buracos negros da história. A partir de agora, acredita Abreu, nenhum país deixará de duvidar da eficácia pedagógica do que foi implantado por ele.
Os resultados sociais são espetaculares. A música dá sentido à vida das crianças, cria uma forte identidade e um orgulho especial, essencial para enfrentar as duras realidades que os cercam. Se isso não fosse o suficiente, a estes resultados sociais se unem os artísticos. Quando uma criança prefere passar horas e horas praticando em um núcleo em vez de sair para a rua, onde o aguarda uma realidade de crimes, armas de fogo e exclusão social, o Sistema se justifica. Como se não bastasse, produz artistas (muitos) de forma natural.
Assim foi sido demonstrado na cidade austríaca. Simon Rattle chama “O Sistema” de “O Vírus”, uma doença contagiosa que toma os meninos e os empurra na direção de suas próprias capacidades individuais e coletivas.
A joia de Abreu é Gustavo Dudamel, joia adotada na Europa pelo próprio Rattle e sobre o qual é colocado o favoritismo para substituir o inglês na Filarmônica de Berlim em 2018. Sobre isso, Rattle é cauteloso: “A Orquestra Filarmônica de Berlim é absolutamente democrática, eles escolhem os regentes de forma soberana”. Mas não é isenta de interesses e ataques como os que ele mesmo recebeu no início de sua gestão por partidários de Daniel Barenboim. Às vezes, os membros do conclave berlinense assemelham-se ao Vaticano. “Sim, mas com a vantagem de que eles são capazes de escolher um papa muito mais jovem”, brinca Rattle.
A super estrela Gustavo Dudamel comandando a Orquestra Filarmônica de Los Angeles
Não apenas Dudamel ganhou o mundo. Sem terem completado 30 anos, Diego Mattheuz ou Christian Vasquez já estão fora da órbita de Abreu. E, nesta vitrine de Salzburg, Abreu teve outra surpresa: o maestro Jesus Parra, de 18 anos.
Ontem, Parra estreou a convite de Rattle. Três anos atrás, em Caracas, era um garoto tímido e doce seguia os ensaios do grande Rattle com partituras na mão. Estava ansioso por aprender. Parra regeu com a Orquestra Infantil a Suíte do balé Estância, do compositor argentino Alberto Ginastera, uma celebração da cultura gaúcha com pontos de contato com o nacionalismo do húngaro Bartók.
Parra encarou a partitura com vigor e maturidade, dominando cada um de seus aspectos virtuosos, domando os ares pampeanos, fundindo Argentina e Venezuela e contagiando um público atônito. Foi empolgante. Para se ter uma ideia do entusiasmo, foram 10 minutos de aplausos de uma plateia germânica, que não deixou de fazê-lo até que o último dos músicos deixou o palco.
Para avaliar o sucesso dos venezuelanos em Salzburgo, talvez valha a pena repetir que Marina Mahler tem medo de voar, mas assegurou a este repórter que em pensa superá-lo a fim de entrar num avião para a Venezuela, a fim de conhecer pessoalmente os locais de onde emana a música de ontem que, disse ela, “levaria meu avô às lágrimas”.
Jesus Parra em ação | Foto: FESNOJIV
Traduzido livremente por Milton Ribeiro
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Veja, ouça e chore: pode aplaudir, não tenha medo, são crianças!
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