sábado, 7 de setembro de 2013

o mundo do cidadão que virou consumidor, o discurso que virou latido!


Quando o consumidor derrota o cidadão




Diário Gauche

Quando somente a violência faz sentido


Vivemos hoje num mundo em que nem mesmo o senso comum faz sentido. Essa assertiva é de Hannah Arendt, ainda da década de 1950, mas faz-se atual - cada vez mais - nos dias do terceiro milênio. O colapso do senso comum de nossos dias indica que a filosofia e a política acabaram tendo o mesmo destino: a crescente perda de relevância em favor da economia, da dinheirização da vida cotidiana e do consumo como instância principal das relações sociais, deslocando em definitivo a cidadania, a solidariedade, a própria política, enfim.


Na década de 1970, Florestan Fernandes (Sociedade de classes e subdesenvolvimento) já nos alertava sobre a disjuntiva entre desenvolvimento econômico e estabilidade política nos Estados nacionais. Essa disjuntiva nem sempre é evidente, ao contrário, está quase sempre mascarada ou à sombra do fluxo principal da vida social no capitalismo pós-concorrencial.


As mobilizações de massa ocorridas no Brasil, especialmente no último mês de junho, servem, pois, para tirar o véu escuro da luta de classes que surdamente insiste em mostrar a sua existência, mesmo que por fenômenos nem sempre legíveis e claros.


O lulismo ousou mexer com a então estagnada estrutura de classes sociais do País. Há segmentos e frações de classe que estavam aí desde o Brasil-Colônia, o Brasil escravocrata. Ilustrativo disso é a recentíssima - deste ano de 2013 - legislação de direitos às empregadas domésticas, uma ponta do século 18 que insistia ainda em vigir no século 21. Ainda assim, não foram poucos que protestaram contra esse abuso, muitas vezes alegando - cinicamente - que estavam protegendo os/as próprias beneficiários dos novos direitos.


Eis, pois, um enclave mental francamente escravagista impregnado na cabeça de ditos modernos e descolados. Isso nos mostra que não podemos esquecer que o capitalismo, para além dos mercados, é antes de tudo, um produtor de fetiches, ideologias, mitos e representações da verdade. A ganga bruta deste minério ideológico é o senso comum, essa verdade pedestre que vagueia pelas ruas e coloniza as pessoas com certezas absolutizantes e definitivas, mas que raramente duram trinta dias. Pois, mesmo o senso comum já está desgastado e sem sentido, como afirma Arendt.


Se o espírito do homem comum já não pode mais confiar nem no senso comum, em quê pode confiar? Se a cidadania há muito foi interditada pelo desgaste continuado da política, em quem confiar? Ora, o homem enxotado do acolhimento cidadão, tem encontrado abrigo - ainda que falso e provisório - no seio cálido do consumo para todas as classes de renda. O consumismo é a sequência lógica da disputa entre o setor público versus setor privado, incentivado pela propaganda da ideologia neoliberal nos últimos 30 anos.


É aí que queremos chegar, neste brevíssimo artigo. As grandes mobilizações urbanas no Brasil de 2013 está mais informada pelo consumo do que pela cidadania. Os requerimentos das massas urbanas (tão fragmentadas quanto a soma das distintas tribos que a compõe) têm a aparência e um fraco aroma das categorias políticas, mas se comportam como desejo de consumo de um rol de necessidades por inovação autorreferente e até narcísica. Aí está uma vitória da propaganda neoliberal em nosso meio, onde se verifica um hibridismo entre as mobilizações típicas de históricas conjunturas anticapitalistas, mas com ingredientes próprios do seu contrário: a ideologia neoliberal materializada em formatos da ordem hegemônica do último capitalismo.


Aqui, é de dar razão ao sociólogo Wolfgang Streeck quando ele afirma que as manifestações políticas de massa hoje estão reduzindo a política ao entretenimento. Em junho, ouvi uma mãe perguntar ao filho adolescente qual inscrição havia no cartaz que ele portava na passeata do qual participara, ao que o filho respondeu, com ar ingênuo, mas eufórico: "Não sei o que estava escrito, mãe!"


Entre um videogame e outro, manifestação de rua como pura diversão, ou nova esfera de sociabilidade efêmera e sem compromissos de qualquer ordem. Veja que não há discurso, não há carro-de-som, não há panfleto (o grande meio de comunicação do discurso político, protorrevolucionário, desde o século 19), não há palavra. Aristóteles definia o homem como um ser politico, dotado de fala, portador de um discurso simbólico.


Essa definição vale para o cidadão, mas não vale para o consumidor - esse novo homem unidimensional que emerge da promessa neoliberal sem passado e sem futuro, pulsando num tempo mítico, eterno presente autorreferenciado, nulo de humanidade e sentido - como os animais.


Assim e agora, só a violência se impõe e faz sentido, trazendo nexo à existência.



Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo, texto publicado originalmente na edição de setembro/2013 do Jornalismo B (em papel).

Nenhum comentário: