“Não torturem os cachorrinhos, só torturem os negrinhos”. Para ser lido nas escolas.
20 de fevereiro de 2014
Autor: Fernando Brito
O mestre Mauro Santayanna, que talvez não detenha a capacidade de uma Rachel Sheherazade ou o brilho intelectual de um Reinaldo Azevedo para ser convidado a comentar numa rede de televisão ou escrever na Veja, nos brinda hoje com um texto que deveria ser lido em todas as escolas brasileiras e servir de tema de debate aos jovens.
É destas coisas que fazem alguém, como fiz há quase 40 anos, escolher o jornalismo como profissão e a humanidade como a mais sagrada das religiões.
Santayanna atinge o torturador em seu mais falso orgulho: a sua coragem, que é apenas covardia.
Acusa a Justiça, como instituição, por sua leniência com o crime que ela deixa à vitima, se ainda não tiver tido medo suficiente de morrer, o risco de, além de denunciar, provar. E, em geral, para ouvidos moucos, porque, muitas vezes, é “o marginalzinho” a que se referiu nossa Barbie.
E aponta o erro nosso, da sociedade, de promover ou aceitar a barbárie com o suposto fim de evitar o crime e a violência, que não podem ser evitados, como deveria ser obvio, pelo crime e pela violência.
E que talvez nos obrigue, 80 anos depois, ao mesmo gesto de Sobral Pinto, diante da fúria de Filinto Muller com Prestes, a invocar, para os seres humanos, o direito previsto na Lei de proteção aos Animais.
Sobre a tortura
Mauro Santayanna
O que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para puni-lo com dor, desespero e medo?
A convenção das Nações Unidas, de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação”.
São muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por sua mulher e seus filhos.
O combatente atávico que existe em cada um de nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha.
O torturador se distingue pela ausência de riscos, de coragem. O torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a ele. O torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza, é movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não precisa de uma ideia, de uma razão.
“A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?”
explica, a um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não passa de criminoso vulgar.
Uma sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e estuprador.
A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam evoluir.
Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país¬ era conhecer, por dentro, suas prisões. Nesse aspecto, a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação às condições e superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com a tortura e o torturador.
O brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha, mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes, já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
O agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição autoritária, que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos, muitos sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões. O mesmo vale para o outro lado da moeda.
Da mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de marginais, que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar saber onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez?
Um bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém que comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não existisse em nosso dicionário.
Nos portais e redes sociais ela nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito, escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que cortar na borracha” e outras do gênero.
A presidenta Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de direitos humanos nesses locais.
Trata-se de importante iniciativa, considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta, essa abominável questão.
Mas a verdadeira batalha não se dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos em todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população brasileira.
Não podemos nos considerar civilizados enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução ilegal e a tortura como método de punição e investigação. Não podemos nos considerar civilizados enquanto juízes estabelecerem jurisprudência atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo para combater a iniciativa.
Só quando ensinarmos nossos filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um manifestante, em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem, mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo, em animais -irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em nosso país..
O mestre Mauro Santayanna, que talvez não detenha a capacidade de uma Rachel Sheherazade ou o brilho intelectual de um Reinaldo Azevedo para ser convidado a comentar numa rede de televisão ou escrever na Veja, nos brinda hoje com um texto que deveria ser lido em todas as escolas brasileiras e servir de tema de debate aos jovens.
É destas coisas que fazem alguém, como fiz há quase 40 anos, escolher o jornalismo como profissão e a humanidade como a mais sagrada das religiões.
Santayanna atinge o torturador em seu mais falso orgulho: a sua coragem, que é apenas covardia.
Acusa a Justiça, como instituição, por sua leniência com o crime que ela deixa à vitima, se ainda não tiver tido medo suficiente de morrer, o risco de, além de denunciar, provar. E, em geral, para ouvidos moucos, porque, muitas vezes, é “o marginalzinho” a que se referiu nossa Barbie.
E aponta o erro nosso, da sociedade, de promover ou aceitar a barbárie com o suposto fim de evitar o crime e a violência, que não podem ser evitados, como deveria ser obvio, pelo crime e pela violência.
E que talvez nos obrigue, 80 anos depois, ao mesmo gesto de Sobral Pinto, diante da fúria de Filinto Muller com Prestes, a invocar, para os seres humanos, o direito previsto na Lei de proteção aos Animais.
Sobre a tortura
Mauro Santayanna
O que é a tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro ser humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para puni-lo com dor, desespero e medo?
A convenção das Nações Unidas, de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação”.
São muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por sua mulher e seus filhos.
O combatente atávico que existe em cada um de nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas circunstâncias, de suas ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser ferido em batalha.
O torturador se distingue pela ausência de riscos, de coragem. O torturado sempre está desarmado, ou amarrado e indefeso, frente a ele. O torturador brinca com o medo do outro, porque, dentro de si mesmo, não consegue enfrentar e encarar o próprio medo. Ele é covarde por natureza, é movido pelo mal e o sadismo, e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não precisa de uma ideia, de uma razão.
“A finalidade do terror é o terror. O objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está começando a me entender?”
explica, a um prisioneiro, um personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores são, antes de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão torturar em nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não passa de criminoso vulgar.
Uma sociedade que abomina assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não pode aceitar conviver, em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o torturador quase sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e estuprador.
A diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a barbárie e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam evoluir.
Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país¬ era conhecer, por dentro, suas prisões. Nesse aspecto, a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação às condições e superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como nossa sociedade convive com a tortura e o torturador.
O brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha, mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se regozijam quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e muitas vezes, já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e tomar uma surra de policiais ou seguranças. Param, a caminho do trabalho, para deleitar-se.
O agente do Estado, no Brasil, formado em uma longa tradição autoritária, que vem desde os capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais de nossa história, acha que tem direito de vida ou morte sobre o suspeito. Isso está fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de mortes por “auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos, muitos sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões. O mesmo vale para o outro lado da moeda.
Da mesma forma que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a mãe ou a filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde está escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a violência extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de marginais, que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar saber onde está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez?
Um bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder o pudor de usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém que comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela não existisse em nosso dicionário.
Nos portais e redes sociais ela nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a um suspeito, escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que cortar na borracha” e outras do gênero.
A presidenta Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de direitos humanos nesses locais.
Trata-se de importante iniciativa, considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta, essa abominável questão.
Mas a verdadeira batalha não se dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos em todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população brasileira.
Não podemos nos considerar civilizados enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução ilegal e a tortura como método de punição e investigação. Não podemos nos considerar civilizados enquanto juízes estabelecerem jurisprudência atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo para combater a iniciativa.
Só quando ensinarmos nossos filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um manifestante, em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem um policial desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem, mulher, criança, indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo, em animais -irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade de seu torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em nosso país..
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