TV promove "apartheid" no futebol
Há algum tempo vem se tornando recorrente o uso da expressão “espanholização” quando se fala do futebol brasileiro. Isso porque, a exemplo do país ibérico que tem dois clubes – Barcelona e Real Madrid – ganhando substancialmente mais do que os outros em termos de direitos de televisão e outras receitas, nas bandas de cá outra dupla também pode repetir a mesma receita.
Para as temporadas de 2016 a 2018, calcula-se que as duas equipes com maior torcida no Brasil, Flamengo e Corinthians, vão receber cada uma R$ 170 milhões por temporada. É muito mais do que os times que vêm a seguir, São Paulo (R$ 110 milhões), Vasco e Palmeiras (R$ 100 milhões) e Santos (R$ 80 milhões). No entanto, o problema não para aí. A diferença das doze principais equipes do país em relação às demais é também abissal, o que acaba punindo clubes que estão fora do eixo SP-RJ e, em segundo plano, de MG-RS. Mesmo com campanhas boas pontualmente, times de expressão regional que estão fora desse circuito não conseguem dar sequência e se firmar entre as equipes mais competitivas.
O que parece ser algo “natural”, na verdade é fruto de interesses individuais de dirigentes que contam muitas vezes com o apoio de torcedores, crentes de que seus times estão levando vantagem em um tipo de jogo que, no fim das contas, todos perdem. O livro Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização, resultado dos estudos do jornalista e bacharel em Direito Emanuel Leite Jr. a respeito do tema, trata desse fosso que aumenta entre os clubes e aponta possíveis caminhos para alterar um cenário que compromete a isonomia e o próprio princípio básico de competição do esporte.
A obra de Leite Jr é resultado da elaboração de uma monografia para a conclusão do curso de bacharelado em Ciências Jurídicas na Universidade Católica de Pernambuco. Contudo, quando o trabalho foi concluído, o cenário dos contratos de direitos de televisão no futebol brasileiro era outro. Isso porque existia o Clube dos Treze, associação que reunia alguns dos principais clubes do país e que consolidava um grupo restrito onde alguns ganhavam muito e quem estava de fora ficava a ver navios. A essa altura já se consolidava o que o autor chama de “apartheid futebolístico”, que caminharia para o risco da “espanholização” nas negociações para o triênio 2012-2014. Na ocasião, houve a implosão do Clube dos Treze, graças à ação de alguns dirigentes que contaram com a ajuda da maior interessada na cisão àquela altura, a Rede Globo. Por meio de negociações individuais, a desigualdade se aprofundou ainda mais.
Mesmo a Espanha, hoje, já modifica o seu sistema de distribuição. Até 2015, Real Madrid e Barcelona acumulavam cerca de 50% dos recursos advindos da TV, com o Valencia, terceiro colocado no ranking, recebendo três vezes menos que o duo. Para as temporadas 2016/2017, o Real Decreto-ley 5/2015, de abril deste ano, estabelece que essa divisão muda. Em seu livro, Leite Jr explica que 50% dos direitos na primeira divisão serão distribuídos de forma igualitária para todos os clubes, sendo que 25% serão calculados conforme o desempenho nos últimos cinco campeonatos nacionais (destes, 35% pela temporada mais recente, 20% pela penúltima e 15% para cada uma das três anteriores). Os outros 25% serão divididos pela média de vendas de ingressos e pacotes anuais negociados pela televisão. O modelo remete ao da Premier League, o campeonato inglês, e também tem similaridades com a Bundesliga (campeonato alemão) e o Italiano.
Antes que algum torcedor mais exaltado possa falar em “comunismo” ou algo que o valha quando se discute reduzir a desigualdade entre clubes no Brasil, é bom lembrar que o intuito de se modificar o sistema de direitos de TV atende à lógica esportiva, preservando a competitividade e respeitando o mérito técnico. Ou seja, uma equipe que faz um bom campeonato merece ser premiada por isso. Hoje, quando um clube grande cai para a segunda divisão, como aconteceu com o Botafogo-RJ em 2014, por exemplo, ele mantém sua cota de TV, recebendo o mesmo que ganhava na divisão principal.
Direitos de TV, uma questão crucial
Mas se a questão dos direitos de transmissão de TV é tão importante para o futebol brasileiro – afinal, foram responsáveis por receitas de R$ 1,3 bilhão para os clubes em 2014 – por que ela é tão pouco discutida e recebe quase nenhuma atenção da mídia tradicional? “Isso acontece porque, na verdade, os maiores prejudicados estão fora do eixo Rio-SP. Infelizmente, ainda temos essa análise muito centralizada nos clubes dessa região, e como os maiores prejudicados estão fora dela, acabaram sendo negligenciados, sem poder competir em pé de igualdade. Seria o caso de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo, começarem a reivindicar com maior ênfase essa questão”, sustenta Leite Jr..
E se a curto prazo ainda não houve uma “espanholização”, com dois clubes, Corinthians e Flamengo, dominando o cenário nacional e com equipes de menor porte chegando em algumas ocasiões entre os primeiros (embora nunca disputando o título brasileiro), o panorama pode ser outro a médio prazo. “Flamengo e Corinthians não são dirigidos da melhor forma possível, se fossem, estariam bem acima dos outros clubes. Como são os três primeiros anos desse modelo de negociações individuais, ainda é muito cedo, mas em seis anos já vai se criar um fosso. O risco existe, se forem bem geridos, vai haver esse aprofundamento”, acredita o jornalista.
O modelo atual também consegue acobertar más gestões. Além de assegurar a times grandes rebaixados que recebam a mesma cota na segunda divisão, pune aqueles que buscam ser mais eficientes, pois lidar com orçamentos muito menores que os de seus concorrentes sem malabarismos financeiros é algo virtualmente impossível. “O Goiás está com problemas porque estabeleceu um teto salarial para seus atletas e hoje está na zona do rebaixamento, a tendência é que caia. Optou por ser responsável financeiramente, mas tem muitos jogadores que não querem disputar a primeira divisão com o salário oferecido. Se ele tivesse uma cota de televisão maior, poderia ter também um teto maior, e conseguiria competir com outros clubes”, diz Leite Jr..
Atualmente, tramita na Câmara o projeto de Lei 755/15, de autoria de Betinho Gomes (PSDB-PE), que altera o modelo de distribuição de direitos de TV, propondo que 50% do total seja dividido igualmente entre todos os clubes, 25% conforme a classificação no campeonato do ano anterior, e 25% proporcionalmente à média do número de jogos transmitidos pela televisão. No próximo dia 18, Emanuel Leite Jr. vai à Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados falar sobre a proposta, que ainda não teve parecer apresentado pelo deputado Marcelo Aro (PHS-MG), relator da matéria. Discutir um novo modelo é crucial até porque, sem a negociação conjunta, os clubes de uma forma geral podem estar perdendo a oportunidade de tornar mais lucrativas (para todos) as receitas vindas dessa área, ficando ainda mais atrás em relação a outros países.
Além de tornar as competições mais disputadas, as condições mais iguais de distribuição dos recursos da televisão não puniria os clubes com maior torcida, já que bastaria a administração de recursos oriundos de outras receitas relacionadas ao próprio relacionamento com seus fãs, como programas de sócios, vendas de produtos, licenciamentos etc para garantir um montante maior que o dos seus rivais. E, obviamente, boas campanhas também assegurariam uma fatia mais generosa dos direitos de transmissão por conta do mérito técnico. No entanto, dirigentes teriam que se esforçar e se qualificar mais para isso, e não apenas fazer acordos de bastidores com uma emissora que monopoliza as transmissões. Certamente, parte da resistência para a adoção de um novo modelo passa por aí, e não pelo “amor” ao clube. Muito menos ao futebol.
Serviço
“Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”
Emanuel Leite Jr.
Para adquirir o livro, entre em contato com o autor através do e-mail: emanuel.leite.junior@gmail.com.
Há algum tempo vem se tornando recorrente o uso da expressão “espanholização” quando se fala do futebol brasileiro. Isso porque, a exemplo do país ibérico que tem dois clubes – Barcelona e Real Madrid – ganhando substancialmente mais do que os outros em termos de direitos de televisão e outras receitas, nas bandas de cá outra dupla também pode repetir a mesma receita.
Para as temporadas de 2016 a 2018, calcula-se que as duas equipes com maior torcida no Brasil, Flamengo e Corinthians, vão receber cada uma R$ 170 milhões por temporada. É muito mais do que os times que vêm a seguir, São Paulo (R$ 110 milhões), Vasco e Palmeiras (R$ 100 milhões) e Santos (R$ 80 milhões). No entanto, o problema não para aí. A diferença das doze principais equipes do país em relação às demais é também abissal, o que acaba punindo clubes que estão fora do eixo SP-RJ e, em segundo plano, de MG-RS. Mesmo com campanhas boas pontualmente, times de expressão regional que estão fora desse circuito não conseguem dar sequência e se firmar entre as equipes mais competitivas.
O que parece ser algo “natural”, na verdade é fruto de interesses individuais de dirigentes que contam muitas vezes com o apoio de torcedores, crentes de que seus times estão levando vantagem em um tipo de jogo que, no fim das contas, todos perdem. O livro Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização, resultado dos estudos do jornalista e bacharel em Direito Emanuel Leite Jr. a respeito do tema, trata desse fosso que aumenta entre os clubes e aponta possíveis caminhos para alterar um cenário que compromete a isonomia e o próprio princípio básico de competição do esporte.
A obra de Leite Jr é resultado da elaboração de uma monografia para a conclusão do curso de bacharelado em Ciências Jurídicas na Universidade Católica de Pernambuco. Contudo, quando o trabalho foi concluído, o cenário dos contratos de direitos de televisão no futebol brasileiro era outro. Isso porque existia o Clube dos Treze, associação que reunia alguns dos principais clubes do país e que consolidava um grupo restrito onde alguns ganhavam muito e quem estava de fora ficava a ver navios. A essa altura já se consolidava o que o autor chama de “apartheid futebolístico”, que caminharia para o risco da “espanholização” nas negociações para o triênio 2012-2014. Na ocasião, houve a implosão do Clube dos Treze, graças à ação de alguns dirigentes que contaram com a ajuda da maior interessada na cisão àquela altura, a Rede Globo. Por meio de negociações individuais, a desigualdade se aprofundou ainda mais.
Mesmo a Espanha, hoje, já modifica o seu sistema de distribuição. Até 2015, Real Madrid e Barcelona acumulavam cerca de 50% dos recursos advindos da TV, com o Valencia, terceiro colocado no ranking, recebendo três vezes menos que o duo. Para as temporadas 2016/2017, o Real Decreto-ley 5/2015, de abril deste ano, estabelece que essa divisão muda. Em seu livro, Leite Jr explica que 50% dos direitos na primeira divisão serão distribuídos de forma igualitária para todos os clubes, sendo que 25% serão calculados conforme o desempenho nos últimos cinco campeonatos nacionais (destes, 35% pela temporada mais recente, 20% pela penúltima e 15% para cada uma das três anteriores). Os outros 25% serão divididos pela média de vendas de ingressos e pacotes anuais negociados pela televisão. O modelo remete ao da Premier League, o campeonato inglês, e também tem similaridades com a Bundesliga (campeonato alemão) e o Italiano.
Antes que algum torcedor mais exaltado possa falar em “comunismo” ou algo que o valha quando se discute reduzir a desigualdade entre clubes no Brasil, é bom lembrar que o intuito de se modificar o sistema de direitos de TV atende à lógica esportiva, preservando a competitividade e respeitando o mérito técnico. Ou seja, uma equipe que faz um bom campeonato merece ser premiada por isso. Hoje, quando um clube grande cai para a segunda divisão, como aconteceu com o Botafogo-RJ em 2014, por exemplo, ele mantém sua cota de TV, recebendo o mesmo que ganhava na divisão principal.
Direitos de TV, uma questão crucial
Mas se a questão dos direitos de transmissão de TV é tão importante para o futebol brasileiro – afinal, foram responsáveis por receitas de R$ 1,3 bilhão para os clubes em 2014 – por que ela é tão pouco discutida e recebe quase nenhuma atenção da mídia tradicional? “Isso acontece porque, na verdade, os maiores prejudicados estão fora do eixo Rio-SP. Infelizmente, ainda temos essa análise muito centralizada nos clubes dessa região, e como os maiores prejudicados estão fora dela, acabaram sendo negligenciados, sem poder competir em pé de igualdade. Seria o caso de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo, começarem a reivindicar com maior ênfase essa questão”, sustenta Leite Jr..
E se a curto prazo ainda não houve uma “espanholização”, com dois clubes, Corinthians e Flamengo, dominando o cenário nacional e com equipes de menor porte chegando em algumas ocasiões entre os primeiros (embora nunca disputando o título brasileiro), o panorama pode ser outro a médio prazo. “Flamengo e Corinthians não são dirigidos da melhor forma possível, se fossem, estariam bem acima dos outros clubes. Como são os três primeiros anos desse modelo de negociações individuais, ainda é muito cedo, mas em seis anos já vai se criar um fosso. O risco existe, se forem bem geridos, vai haver esse aprofundamento”, acredita o jornalista.
O modelo atual também consegue acobertar más gestões. Além de assegurar a times grandes rebaixados que recebam a mesma cota na segunda divisão, pune aqueles que buscam ser mais eficientes, pois lidar com orçamentos muito menores que os de seus concorrentes sem malabarismos financeiros é algo virtualmente impossível. “O Goiás está com problemas porque estabeleceu um teto salarial para seus atletas e hoje está na zona do rebaixamento, a tendência é que caia. Optou por ser responsável financeiramente, mas tem muitos jogadores que não querem disputar a primeira divisão com o salário oferecido. Se ele tivesse uma cota de televisão maior, poderia ter também um teto maior, e conseguiria competir com outros clubes”, diz Leite Jr..
Atualmente, tramita na Câmara o projeto de Lei 755/15, de autoria de Betinho Gomes (PSDB-PE), que altera o modelo de distribuição de direitos de TV, propondo que 50% do total seja dividido igualmente entre todos os clubes, 25% conforme a classificação no campeonato do ano anterior, e 25% proporcionalmente à média do número de jogos transmitidos pela televisão. No próximo dia 18, Emanuel Leite Jr. vai à Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados falar sobre a proposta, que ainda não teve parecer apresentado pelo deputado Marcelo Aro (PHS-MG), relator da matéria. Discutir um novo modelo é crucial até porque, sem a negociação conjunta, os clubes de uma forma geral podem estar perdendo a oportunidade de tornar mais lucrativas (para todos) as receitas vindas dessa área, ficando ainda mais atrás em relação a outros países.
Além de tornar as competições mais disputadas, as condições mais iguais de distribuição dos recursos da televisão não puniria os clubes com maior torcida, já que bastaria a administração de recursos oriundos de outras receitas relacionadas ao próprio relacionamento com seus fãs, como programas de sócios, vendas de produtos, licenciamentos etc para garantir um montante maior que o dos seus rivais. E, obviamente, boas campanhas também assegurariam uma fatia mais generosa dos direitos de transmissão por conta do mérito técnico. No entanto, dirigentes teriam que se esforçar e se qualificar mais para isso, e não apenas fazer acordos de bastidores com uma emissora que monopoliza as transmissões. Certamente, parte da resistência para a adoção de um novo modelo passa por aí, e não pelo “amor” ao clube. Muito menos ao futebol.
Serviço
“Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”
Emanuel Leite Jr.
Para adquirir o livro, entre em contato com o autor através do e-mail: emanuel.leite.junior@gmail.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário