Saramago nos eternos campos de caça
Ave, Saramago. Que não descanses em paz, mas que continues, na tua e na nossa memória, a luta pela boa literatura, a liberdade e um mundo com menos injustiças que este nosso.
Flávio Aguiar
Publicado originalmente no blog do Velho Mundo, da Rede Brasil Atual
José Saramago (1922 – 2010), que devia seu nome a uma erva cujas folhas têm vaga semelhança com as do espinafre, e a raiz com a de um pequeno nabo, comum em Portugal, rumou para a eternidade.
Onde estará? Tenho um palpite.
Os nativos do pampa, como os tehuelche e outros povos terminados em Che, tinham uma visão cosmogônica muito peculiar. Para eles o universo tinha o formato de uma foice, ou algo parecido. Havia a terra plana, que subia pelo Ande (assim no singular) até as geleiras e daí o céu. A Via-Láctea dos astrônomos continuava os cumes gelados, num novo pampa, só que estelar, e em direção à nossa Constelação do Cruzeiro do Sul. A cruz sideral era, na verdade, uma ema que sangrava, e as estrelas eram a esteira e as gotas do seu sangue. Para esse campo estelar iam os homens, que ficavam a eternidade na caça dessa ema pulsante.
E as mulheres? Essas, finalmente, descansavam, deitadas na terra, sem que ninguém as incomodasse.
Pois acho que Saramago deve ter partido para algum lugar assim, ou parecido. Talvez algum outro campo de caça dos povos africanos. Afinal, se em vida, ele partilhou das lutas pela liberdade desses e de outros povos, por que não iria compartilhar com eles a sua eternidade.
No seu último livro, Caim, esse personagem termina suas andanças cíclicas pelo espaço e tempo terrenos, depois de exterminar todos os tripulantes da Arca de Noé, numa querela interminável com Deus, que promete ser eterna. Sobre o vazio do mundo despovoado, e de uma criação abortada, os dois titãs, o que criava e descriava mundos e o que criava e descriava caminhos e descaminhos, se engalfinham numa luta de palavras que mostra, na verdade, que o mundo, se queremos lutar por sua melhora, deve estar em algum outro lugar. Aqui entre nós, talvez: esse parece ser o estro inspirador da literatura de Saramago e da herança que nos deixa.
Caim, confesso, não é dos meus preferidos. Esses são Memorial do Convento, Jangada de pedra, Ensaio sobre a cegueira, O Evangelho segundo Jesus Cristo. Mas li-o já antevendo nele uma espécie de testamento do escritor, de última palavra de um ateu convicto perseguido por imagens cristãs e religiosas também convictas. De certo modo isso é muito representativo dos mundos espirituais de muitos escritores portugueses que são a “esteira estelar” que acompanha Saramago em sua última e derradeira viagem pela e para a liberdade.
Não sei se Saramago estaria de acordo com essa minha visão, pondo-o em alguma outra eternidade. Mas se por acaso ele lá estiver, tenho a certeza (para homenagear o modo de falar português) de que ele já estará escrevendo histórias para seus companheiros de caça, para acordar as mulheres de seu merecido mas quieto sono, tentando convencê-los a deixar os céus para a Ema Sagrada, para parar de importuná-la, e para descerem de novo à terra e lutarem pelo “reino deste mundo”, que é título de um romance de Carpentier sobre o Haiti. País para quem ele doou a renda de um de seus últimos livros.
Ave, Saramago. Que não descanses em paz, mas que continues, na tua e na nossa memória, a luta pela boa literatura, a liberdade e um mundo com menos injustiças que este nosso.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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