segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

memória, mitos e infâmia

Um povo sem memória...


"Baitasar, tu tens algum mito a inspirar tua vida?"

Olho para o professor procurando entender aonde o amigo quer chegar.

Confesso que gosto de fazer contas de chegada.

Enfio as mãos no bolso, inclino meus ombros para trás até encostar na parede. Meus olhos vão para o teto, encontram as pás do ventilador que se movem lenta e regularmente.

Os banquinhos do buteku da ladeira não têm o conforto das cadeiras do buteku, mas, hoje, chegamos depois do horário habitual e o buteku está tomado de amigos e amigas. E os banquinhos foi o que a Teresinha pode nos arrumar.

Desço das pás do ventilador e respondo que não tenho herois, mas gostaria de ter servido sob a ordenança do comandante Che, lá na Sierra Madre

"Por que?"

Não respondo de imediato, penso que qualidades num homem como Che me levariam a lutar, arriscar minha boa vida.

Por certo, a crença que as ideias dele, aplicadas, trariam a felicidade ao povo

"Felicidade? E o que vem a ser isso?"

Ergo a mão e peço à Teresinha outra rodada (é claro que estou ganhando tempo).

Acredito que todos merecemos ter alguém para abraçar, um teto para morar, roupas, jamais passar pela fome, ter ao alcance da voz quem nos cure das doenças do corpo, tempo para um cinema, música, cantar no banheiro, amigos, chopinho, fritas

"Esqueceu de citar os amigos no facebook."

A Teresinha se aproxima com as duas canecas de chopp e as tirnhas de picanha. Essa moça continua com muita formosura, o avental manchado de branco é um engana trouxa, o sujeito nem olha e nem quer imaginar o contido pelo pedaço de pano. Quem olha e só vê o avental não enxerga as curvas e as retas. Esse engana trouxa não confunde o meu imaginário, vejo que a moça é rica em qualidades

"E aí, Baitasar, tens algum outro mito?"

Penso no avental, na Teresinha, na minha cama desajeitada (não tenho jeito de arrumar, não tenho motivação) na escova de dentes, a tampa do vaso sempre erguida

"Mais alguma coisa, rapazes?"

"Teresinha, falo aqui pelos dois, você serve o chopinho mais gelado e gostoso da ladeira."

Esse Professor é um provocador, está sempre me desafiando, pois ele vai descobrir que com ferro se fere, mas também se pode ser ferido.

Olho nos olhos do homem e falo não de um homem, mas de muitos. Os Farrapos são meus herois

"Infames!"

Pergunto se os Farrapos são os infames

"Não, guri, infame é essa gentiti que conta a história pela metade, mente, altera dados, inventa, esconde os fatos, tudo pra criar um imaginário de convicção ideal... pra eles."

Penso na frase do Juremir, em seu livro, História regional da infâmia (quando o Professor espalhou que levou o livro para ler no litoral, corri e comprei o meu), ´... a guerra da memória contra a infâmia´.

Pergunto ao Professor sobre essa necessidade de mitos em nossas vidas

"Baitasar, conheces o mito das cavernas?"

Respondo que não

"Há muito tempo..."

Peço que espere e peço a Teresinha outra rodada

"As tirnhas de picanha acabaram, mas posso trazer tirinhas de maminha."

"Na tua vontade menina, na tua vontade."

O Professor é carnívoro, mas enfim, que o homem continue a sua história

"Baitasar, existiu um povo, há muito tempo, que vivia em cavernas. Jamais tinham visto a luz do dia, a iluminação do sol. Contavam histórias às crianças sobre monstros e abismos que não deixavam ir além das cavernas que conheciam."

A Teresinha chega com nosso pedido: canecas geladas, como se usassem um véu branco, chopinho geladérrimo e as tirinhas de maminha.

Mergulho uma das tirinhas no molho avinagrado e com pimenta.

Continua, Professor

"Alguns jovens inconformados e curiosos decidiram enfrentar os perigos e descobrir o que havia por lá, por certo um lugar de mistérios. E foram. Venceram feras, nadaram por rios subterrâneos, pularam abismos, cansaram, mas, quando já estavam desistindo, encontraram a saída. E viram, pela primeira vez, a luz do sol, a luz do dia (que eles não sabiam ser o dia). Ficaram maravilhados e decidiram voltar, contar ao povo o que viram."

Lembro o Professor do chopinho.

Ele sorri, toma um gole satisfeito

"E os jovens retornaram. Reuniram todos na volta da fogueira e contaram que havia um mundo maravilhoso, lá fora. Estavam empolgados e alegres com tudo que tinham visto, os animais, as flores, as árvores, os rios, as montanhas, as cores, a luz. Era uma viagem longa, com muitos perigos, mas ao final tudo valeria a pena."

Olho na nossa volta, o buteku está no maior silêncio, todos atentos ao Professor (esse não consegue ficar longe da sala de aula, esteja ela onde estiver).

A Teresinha negra está parada na frente do balcão, vestida de noiva com seu avental manchado de branco, os cabelos ajeitados em tirinhas fininhas, cachinhos, muitos cachinhos, a bandeja embaixo do braço

"Todos na caverna ouviam atentos. No final do relato, os sábios chamaram os jovens e disseram que tudo era mentira. E ali, nas cavernas, a pena por mentir era a morte. E os jovens foram mortos."

O buteku foi uma revolta só.

Ergui o caneco e ofereci um brinde àqueles jovens

"Baitasar, os infames podem mentir, até mesmo matar, mas isso não impede o sol de existir de dia e a lua à noite."

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