terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Vida e Arte

Lélia Abramo: a jornada da Mãe Coragem



Nem todos, entretanto, conheceram profundamente a mulher que em sua estreia profissional no palco, somente aos 47 anos, logo arrebatou um prêmio de reconhecimento e importância à época, o Saci, concedido pelo jornal O Estado de S. Paulo. A peça que a destacou foi Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958. Nela, Lélia vivia Romana, uma mulher do morro, versada em linguagem popular, o que, para a atriz em seu início, significava um desafio quase intransponível. Por certo ela poderia representar uma mulher do povo, mas, com seu sotaque italiano, não, talvez, do povo carioca.


A jornada da Mãe Coragem

por Rosane Pavam, na CartaCapital

Dançar lhe dava tanto prazer que, na infância, ela rodopiava mesmo sem música, para não chatear a mãe. Naquela década de 1910, talvez já projetasse a vida no palco, do qual, muito tempo depois, sairia como dama combativa. Nem parece que Lélia Abramo, atriz de bom texto e irrevogável convicção socialista, tenha nascido há cem anos. Os atores brasileiros, para quem ela batalhou a regulamentação profissional, e o País, a quem desejou um futuro de igualdade, ainda a veem como companheira de jornada.

Como fez em outros  momentos dolorosos de sua vida, e eles foram vários, Lélia decidiu que agiria não em respeito às circunstâncias, mas apesar delas. Conforme conta no excelente livro de memórias Vida e Arte, que a Fundação Perseu Abramo espera reeditar brevemente, em parceria com a Imprensa Oficial, a amiga Riva Nimitz a ajudaria nos ensaios linguísticos até a estreia da peça. Mas nem mesmo o diretor José Renato, algo descrente, poderia prever o sucesso de sua atuação.

O ideal de vida de Lélia era o mesmo de toda a conhecida e respeitada família paulistana Abramo, de origem italiana. O avô materno, Bortolo Scarmagnan, teve grande participação no modo como ela e os irmãos pensadores, casos de Lívio, Claudio, Athos e Fúlvio, encararam o mundo. Anarquista, Bortolo sempre viveu de seus negócios, mas com uma peculiaridade. Quando se via próspero, vendia o empreendimento e recomeçava a mesma vida em outro lugar, para não repetir o ciclo de exploração a que estaria sujeito qualquer negociante nos moldes capitalistas.

O avô envelheceu, a visão diminuiu e ele precisou de Lélia para que lesse, em voz alta, os apaixonantes livros alinhados à sua ideologia. Mas ela era menina demais para entender aquelas linhas. Os textos somente fizeram sentido quando se viu no escritório pela primeira vez. Ali, a exploração do trabalhador era um fato. Lélia entrou para o sindicato. Trotskista, amou um militante do Partido Comunista Brasileiro, mas a agremiação política não permitiu seu casamento.

Esta foi uma primeira  grande dor para Lélia. Doente, ademais expulsa do sindicato por suas convicções e também visada pela repressão de Getúlio Vargas, ela viajou à Itália em 1938 e viveu o drama da guerra até que pudesse voltar ao Brasil, 12 anos depois, um tanto modificada pela experiência “incomunicável”. Na Itália, havia perdido a possibilidade de ser mãe após erro médico, mas também se identificara com aquele povo que tanto parecia ser o seu. Na autobiografia, ela relata a tensão invisível de quem se parte entre dois sentimentos de nacionalidade. Os rumos da política brasileira, metida em sério autoritarismo na década seguinte, tornariam Lélia ocupada, sem tempo, talvez, para se entregar à depressão.

Seu livro Vida e Arte, grande porque de linguagem direta, repleto de fatos descritos com difícil simplicidade, evita ser subjetivo em demasia. Para a sobrinha Alcione, historiadora cuidadosa em manter sua memória, Lélia escreveu um relato imprescindível à história brasileira, que em tudo correspondeu à personalidade de sua autora, morta em 2004, aos 93 anos. “No livro, ela está diante do mundo, não o mundo diante dela”, como define em entrevista a CartaCapital a filha de Athos, irmã de Perseu. Mesmo ao escrever a própria história, Lélia olhou antes para a história de todos.

Sua sobrinha se lembra da atriz como dotada de um “sentido dramático da vida”. Lélia se mostrava extrovertida e expunha o pensamento “com muita força, de forma categórica”. No palco onde representou Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht, e nas pequenas telas do Grande Teatro Tupi, do canal 4, Rio, a atriz soube dar aos personagens a densidade exigida. Mas, como lembra Alcione, era uma intérprete também dotada para os tipos leves. Lélia não aderia exatamente ao tom cômico circense, mas àquele fino, de observação.

Sua ironia era um  traço familiar. “Nós a entendíamos como uma forma de raciocínio e pensamento, uma maneira de acompanhar o mundo ao redor”, acredita a historiadora de 77 anos, que prefere chamar de “debates” as discussões políticas feitas pelos Abramo à mesa de jantar. “Lélia, como todos nós, observava tudo de modo extremamente crítico, até mesmo as tragédias pessoais e os próprios defeitos. Pessoas assim não são alegres, certo? Nem poderiam ser.” Apesar disso, Alcione Abramo ressalta a existência plena, sem recuos,- vivida por Lélia. “Ela sabia se reerguer dos momentos de abatimento profundo.”

O crítico brasileiro Antonio Candido, colega de crença e militância política, definiu a atriz com usual acuidade no prefácio às memórias, em 1996: “O nosso mundo é tão cheio de quebras, capitulações, deserções, omissões e tudo o mais, que conforta ler a narrativa de uma vida como a de Lélia Abramo, que nunca vergou a espinha, nunca sacrificou a consciência à conveniência e desde muito jovem se opôs à injustiça da sociedade. Que sempre rejeitou as vias sinuosas e preferiu perder empregos, arriscar a segurança, sofrer discriminações para poder dizer a verdade e agir de acordo com os seus pontos de vista”.

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