O FIM PRÓXIMO
E INGLÓRIO DO PIG (*)
A pior profissão do mundo é chamar o patrão de colega…
Conversa Afiada
O Conversa Afiada publica três importantes reportagens da “Agência Pública”, de autoria de Camila Rodrigues, Bruno Fonseca, Luiz Bodenmuller e Natalia Viana.
(Recomenda ler também de Cynara Menezes “quando o patrão é colega”.)
A PIOR PROFISSÃO DO MUNDO
10.06.13 Por Camila Rodrigues, Bruno Fonseca, Luiza Bodenmüller e Natalia Viana
Nos últimos dez anos, a frustração e a tendência depressiva aumentaram entre jornalistas brasileiros – assim como a “naturalização do assédio” nas redações.
Todo ano, o site americano CareerCast.com elenca uma lista de 200 profissões, classificando-as da melhor à pior a partir de cinco critérios: ambiente de trabalho, salário, nível de estresse, exigência física e condições de contratação. Pois bem. Em 2013, após alguns anos figurando entre as dez piores, a profissão de repórter de jornal chegou ao fundo do poço, ficando em 200◦ lugar na lista, atrás de lenhador, militar e trabalhador de fazenda de gado.
A pesquisa, que não tem lá muito critério científico, é mais um sinal da percepção de que a indústria do jornalismo impresso está em crise no mundo. Segundo levantamento da Associação Mundial de Jornais e Publishers, que reuniu dados de 90% das publicações no mundo, os jornais encerraram o ano passado com queda de 0,9% na circulação e de 2% na receita publicitária.
Um relatório recente do instituto Tow Center, da Universidade de Columbia, constata que se “anunciantes nunca tiveram interesse em apoiar agências de notícias”, a relação entre as receitas de publicidade e salários de jornalistas sempre esteve em função da capacidade das editoras de extrair lucro. Mas, para os pesquisadores do Tow Center, se isso funcionou bem no século 20, não funciona mais. Nos EUA, a receita publicitária tradicional, base do financiamento do jornalismo desde de 1830 começou a cair em 2006 – exatamente na época em que começaram as chamadas “integrações impresso-online” no mercado de notícias.
Aqui no Brasil, os veículos de grande porte negam que haja crise, mas ao menos no que se refere ao trabalho do jornalista, a decadência é inegável – e verificável. Lançada em 7 de abril, dia do jornalista, a pesquisa “Quem é o jornalista brasileiro?”, realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, analisou características demográficas, políticas e do trabalho dos profissionais de jornalismo, a partir de uma enquete respondida por 2.731 pessoas. Constatou que 45,1 % dos jornalistas trabalham mais de 8 diárias e a maioria da categoria – quase 60% – tem renda de até cinco salários mínimos, o que equivale a R$ 3.110,00 (em valores de 2012, ano de realização da pesquisa).
Conforme reiteram os sindicatos, a rotina dos trabalhadores dos jornais é de pelo menos 10 horas por dia, sem contar os plantões. No caso do Diário Catarinense, por exemplo, os repórteres, diagramadores e redatores começaram a registrar entrada e saída do trabalho apenas em março de 2011, mas os editores e subeditores são contratados em condição de “emprego de confiança” com horário flexível, ou seja, não batem cartão. Em termos práticos, como eles têm de fazer a pauta para o dia seguinte e fechar o jornal, acabam trabalhando entre nove e 11 horas por dia, sem receber remuneração pelas horas extras.
Dos jornalistas atuantes na mídia, 59,8% possuem carteira assinada. Outros dados demonstram como variadas formas de contratação têm sido adotadas. Ao somar o número de freelancers (11,9%) com os jornalistas que possuem contrato de prestação de serviços (8,1%) e os que firmaram contrato de pessoa jurídica, os PJs (6,8%), são 26,8% de todos os trabalhadores de mídia. O percentual de freelancers em atuação na mídia é duas vezes maior que o de freelancers fora da mídia.
Tem mais: segundo a pesquisa da UFSC, a maioria dos profissionais é composta por mulheres de até 30 anos, e é justamente esse grupo que integra a menor faixa salarial da categoria; as mulheres são minoria em todas as faixas superiores Saa cinco salários mínimos. Apenas 8% dos jornalistas têm mais de 50 anos.
PROPRIEDADE CRUZADA, TRABALHO DOBRADO
Seis em cada dez jornalistas que trabalham na mídia, em veículos de comunicação e produtoras de conteúdo, por exemplo, exercem sua profissão em meios impressos, setor mais afetado com as recentes demissões, embora muitas vezes publiquem textos também nas publicações online ou em agências de notícias de propriedade do grupo que edita o jornal.
Trata-se da continuação de uma política adotada pela indústria de notícias na última década. Os grandes conglomerados aproveitam a condição de ter propriedade cruzada de vários veículos de comunicação e vão “convergindo” também os processos de trabalho.
Os donos de jornais – em um processo de “sinergia” – integraram as redações de modo a eliminar a separação entre trabalhadores do online e do impresso, economizando custos com recursos humanos enquanto adquiriam novas tecnologias de organização de dados, captação e edição de vídeos e de transmissão das informações para desdobrar o conteúdo em tablets e celulares, por exemplo. O mesmo corpo de jornalistas, arrochado pelas demissões, tem de produzir conteúdo nos mais diferentes formatos para o impresso e para a internet. Diagramadores e editores de arte estão sendo treinados para produzir infográficos animados e layout para o papel e para a Internet; os repórteres-fotográficos agora têm que fazer cursos de técnicas de filmagem e edição de vídeos. É a chamada “redação convergente”.
“O processo de digitalização facilitou muito. Porque eu vou pagar R$ 2.000,00 em uma viagem se eu posso pagar R$ 100,00 em uma foto?”, observa o repórter-fotográfico Lula Marques, recém-demitido pela Folha, explicando por que a nova organização atinge especialmente os fotógrafos. É uma raridade encontrar algum veículo que contrata formalmente esses profissionais da imagem. O trabalho deles costuma ser substituído pelo conteúdo de agências ou pelo acúmulo de tarefas do repórteres de texto, que passam também a fazer imagens – ainda que, muitas vezes, com qualidade inferior.
A “PEJOTIZAÇÃO”
José – o nome é fictício – trabalhou no Grupo Estado por quatro anos sem registro em carteira e chegou à função de editor-assistente. “Entrei como frila na Agência Estado para cobrir férias e, em 2004, entrei no Estadão. Fiquei quatro anos lá, trabalhando diariamente sem registro em carteira, como frila fixo. Nenhum documento, nenhuma nota, nenhum contrato que provasse que eu trabalhei lá”.
Se o leitor é profissional de outra área, saiba que “frila fixo”, figura muito utilizada nas redações, é um funcionário que trabalha como contratado, como subordinação e horário fixo, mas sem benefícios trabalhistas, como o registro em carteira. José tentou negociar a contratação dele durante todo esse período, no qual houve pelo menos três trocas de chefia. Nunca foi contratado. “Toda vez que trocava de chefe, eu tinha que renegociar”, conta, explicando que a situação acabou por se tornar insustentável. “Eu era bem avaliado pelas chefias e continuava sendo um colaborador, sem nenhum direito trabalhista”. iu de lá para uma empresa de outro ramo da comunicação. Ofendido com a maneira como foi tratado, José procurou o advogado do sindicato, que o orientou a processar o jornal. “Eu tinha horário para entrar e para sair, tinha um computador com meu login e senha. Mas precisava de testemunhas, o que era mais difícil”. O caso ainda segue na Justiça.
Segundo o advogado trabalhista Kiyomori Mori, a forma mais comum de precarização do trabalho de jornalistas é o contrato de indivíduos através de empresas individuais – que eles são obrigados a abrir – como Pessoa Jurídica (PJ), caso de José. Além disso, nos contratos PJ, muitas empresas tentam se proteger de ações trabalhistas colocando cláusulas de multa, explica Mori: “Se o contrato for levado para a Justiça do trabalho, o contratado tem de indenizar a empresa com R$ 300 mil”, exemplifica. “Por isso, quem entra na Justiça, tem de pedir a nulidade do contrato firmado com a empresa antes de tudo”, alerta o advogado.
No final do ano passado, o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo entrou com uma ação contra a editora Abril no Ministério do Trabalho pela “pejotização” dos funcionários. “A empresa não negociou com o sindicato, mas reduziu praticamente os ‘frilas fixos’, contratando 120 deles. A gente apurou, indo de redação em redação, que foram dispensados entre 30 e 40”, diz Paulo Zocchi, do Sindicato de Jornalistas de São Paulo.
Aos 53 anos, com 28 anos de jornalismo, Paulo, que trabalha na mesma editora Abril, faz parte de um “pequeno extrato” de colegas que têm mais de 50 anos. “Você tem uma quantidade gigantesca de jovens na faixa do 20 e tantos e 30 anos, aqui na Abril. O que acontece? Com o tempo a empresa vai simplesmente substituindo. Não é uma demissão em massa, é uma rotatividade mais difícil do sindicato impedir que aconteça”, diz, qualificando a profissão de “ingrata”.
FRUSTRAÇÃO E SAÚDE ABALADA
A precarização do ambiente de trabalho chega a afetar seriamente a saúde dos profissionais de comunicação, como atesta o pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp) José Roberto Heloani, que desde 2002 investiga os problemas de saúde no ambiente de trabalho do jornalista. Ele diz que nos últimos dez anos a situação só piorou. Sua terceira pesquisa sobre o assunto, que está em vias de conclusão, traz um panorama soturno: entre 2002 e 2013, a pesquisa apontou maior tendência depressiva nos jornalistas e uso de medicamentos lícitos e ilícitos para amenizar a angústia. Roberto também identificou um fenômeno chamado “naturalização do assédio”.
Ele cita o “pescoção”, nome que se dá a uma jornada de até 14 horas seguidas nas sextas-feiras, para o fechamento da edição de sábado e de domingo. Para os sindicatos, a jornada é ilegal, já que o máximo permitido por lei a qualquer categoria são dez horas diárias. O “pescoção” não é remunerado e, em alguns casos, o funcionário também tem que trabalhar no sábado. Isso significa também o desrespeito ao intervalo de 11 horas entre uma jornada de trabalho e outra, garantido pela CLT. Na maioria das vezes, a tarefa é encarada com naturalidade pelos jornalistas, simplesmente como parte da profissão.
“A gente tem visto uma grande dificuldade de compreender pescoções e plantões como uma coisa ruim. As pessoas encaram como se fosse natural”, diz o pesquisador. Segundo ele, os profissionais desse setor tem, em média, um final de semana livre por mês. Isso leva ao rompimento de relacionamentos e problemas com a família, além de uma situação muito comprometedora de estresse patológico e exaustão, que é quando a pessoa tem a sensação de que o sofrimento não vai acabar mais. “Grande parte dos profissionais entra nesse sistema com a esperança de que o sofrimento acabe no curto prazo. Quem aguenta, tenta aceitar que o sofrimento faz parte da profissão e o que é preciso aceitá-lo como se fosse natural”. Segundo ele, a ausência de vínculo formal e as poucas possibilidades de esse cenário se reverter aumentam a situação de insegurança e, consequentemente, as chances de perturbações psíquicas. “Não existe possibilidade de, ao mudar de emprego, essa situação melhorar”.
A idealização da profissão seria outro problema peculiar da profissão de jornalista. “O jornalismo é uma profissão que tem um certo glamour, que, no imaginário da população, ainda tem algo de heroico. Então, no primeiro choque com a realidade, normalmente já no estágio, o profissional tem um certo desencantamento que depois, quando ele começa a trabalhar, vira frustração. Isso é um problema sério. Essa frustração é resultado de um conflito entre a fantasia e o mundo real do trabalho. Não é a toa que alguns, depois de se formar, poucos meses ou anos, vão para outra profissão”.
Para aliviar a tensão, muitos dos que ficam consomem cada vez mais álcool e ansiolíticos, como calmantes. “O aumento do consumo de álcool e drogas foram significativos em relação à última pesquisa, realizada em 2005”, diz o pesquisador. “É comum começar com álcool. Quando aumenta a tolerância à bebida, ou seja, o efeito relaxante fica menor, a pessoa começa a beber cada vez mais até um ponto que começa a usar medicamentos para insônia ou algum ansiolítico. Só que, assim como aumenta a tolerância ao álcool, aumenta a tolerância ao ansiolítico. E o profissional também abusa do medicamento. Paralelamente, ele começa a sentir os efeitos colaterais da medicação, como falta de concentração e depressão. Com isso, ele começa a tomar antidepressivo. Resultado: nessa lógica de tomar entorpecentes, muitos trabalhadores começam a partir para psicofármacos, como cocaína, para poder trabalhar. No começo, o uso da droga melhora a memória, raciocínio e o vigor físico para uma rotina de 12 horas de trabalho por dia. Mas, tal como outra medicação, a pessoa começa a criar tolerância e os efeitos ‘bons’ começam a ser mais fracos. É aí que a pessoa se afunda”.
EXISTE UMA CRISE NOS IMPRESSOS? NADA A DECLARAR, RESPONDEM OS JORNAIS
10.06.13 Por Camila Rodrigues, Bruno Fonseca, Luiza Bodenmüller e Natalia Viana
Empresas brasileiras negam que haja crise no setor; segundo sindicato, a portas fechadas, representantes reconhecem que negócios vão mal.
“O argumento das empresas depende do interlocutor”, diz Paulo Zocchi, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. “A gente chega numa negociação de campanha salarial, e os jornais sempre dizem que o negócio está indo mal. Mas para o público externo eles falam que está indo muito bem’”. Presente em diversas das negociações referentes à atual revoada de passaralhos – demissões em massa de jornalistas – Zocchi descreve que até tem quem admita, na sala de negociações, que o discurso é duplo. “Os caras falam: ‘O que você quer que a gente fale pro mercado? Mas cá entre nós, está indo mal’. É dificílimo saber com detalhes a situação real das empresas”, diz Paulo.
Os mesmos jornalistas que trabalham no dia-a-dia por transparência em todos os setores da sociedade ficam no escuro quando se trata da indústria em que trabalham. “Eu acho tudo muito estranho, pois, ao mesmo tempo em que acontecem esses passaralhos, somos informados, por meio de mensagens internas, que o número de venda de jornais aumentou, que o site bateu recorde etc. Ou seja, algo está fora da ordem, não!?”, resume um jornalista do Grupo Folha, recentemente demitido, que prefere não ter seu nome revelado.
De fato, enquanto anunciava o corte de 24 funcionários, a Folha culpou o “fraco desempenho da economia e seu reflexo na publicidade” pelas demissões; mas dois anos atrás o Grupo Folha celebrava ter triplicado seu faturamento na primeira década deste século, chegando a R$ 2,7 bilhões em 2010 – com um lucro, antes de impostos, de R$ 600 milhões no mesmo ano.
“A situação econômica da Folha é boa, a empresa não tem dívidas”, comentou, na sua coluna, a ombudsman Suzana Singer. Na Abril, a reestruturação – e os cortes, que podem atingir centenas de funcionários – vieram apenas dois meses depois da empresa exibir sua saúde financeira, anunciando receita líquida de R$ 2,98 bilhões em 2012, sendo R$ 1,03 bilhão proveniente de publicidade. A empresa também investiu na área Abril Educação, que absorveu marcas como Ática e Scipione, e o sistema Anglo Vestibulares.
Em seu site, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) também se apresenta otimista: “Publicidade em jornais brasileiros deve aumentar 5% em 2013”, anuncia. “Apesar do pequeno crescimento do PIB em 2012, os investimentos em publicidade em jornal no Brasil devem aumentar 5%, conforme as previsões da Warc, um centro de pesquisa voltado ao levantamento das tendências do mercado publicitário mundial”. Usando outra fonte, a pesquisa Inter-Meios, uma iniciativa do jornal Meio & Mensagem com “os principais meios de comunicação do Brasil”, a ANJ mostra por A mais B que os anúncios em jornais têm aumentado ano a ano – foram de R$ 3,36 bilhões em 2011 para R$ 3,38 bilhões em 2012.
Procurada pela Pública, a ANJ disse que não comenta casos específicos de demissões – e, sobre a famigerada crise nos meios, limita-se a indicar as otimistas análises de seu site. O diretor do Estadão disse que não se pronunciaria sobre o assunto; a Folha de S. Paulo e o Valor Econômico também foram procurados mas não responderam até o fechamento da matéria. Apenas o diretor da Editora Trip – uma editora de médio porte – Paulo Lima, conversou abertamente com a reportagem sobre as 19 demissões ocorridas em sua empresa.
MAS AFINAL, O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
A inglesa Susy Young, diretora de estatísticas do centro de pesquisas britânico Warc, é uma das vozes mais confiáveis quando se trata de receita publicitária. Entusiasta do aumento de publicidade – que, em escala mundial, está concentrada na Ásia e na América Latina, contra uma decadência na Europa e nos EUA – ela verifica que não houve queda na publicidade de impressos, mas uma perda de espaço para outros setores. “Em 2012, o que nós previmos foi um crescimento modesto em gastos de anúncios para jornais e revistas. Mas previmos também que os meios impressos iriam perder em termos de fatia, nos gastos publicitários gerais”.
O fato é que, embora digam aos quatro ventos que a crise dos jornais não chegou ao Brasil, os conglomerados estão vendo os anúncios migrarem – de maneira irreversível.
“Existe a crise”, diz – em off – um alto executivo da indústria editorial. “O que não se sabe é dividir entre o que é estrutural e o que é conjuntural”. Embora a circulação dos jornais continue crescendo um pouco – o aumento foi de 2,7% em 2012– ela está sendo “puxada” pelos jornais populares como o Extra, do Rio, e Super Notícias, de Belo Horizonte. Já a circulação de revistas caiu 4,6% em 2012. Quanto à questão “conjuntural”, os jornais reclamam do fraco desempenho da economia – já que, em tempos de crise, os anunciantes recorrem à TV para se livrar dos seus produtos em estoque mais rapidamente. Não que isso seja uma novidade no panorama brasileiro.
“Hoje continua fazendo sentido investir em impressos. Agora, se tiver uma migração de publicidade mais agressiva, é algo que vamos ter que pensar daqui a um tempo”, diz o executivo. Para ele, a internet, “ao mesmo tempo que democratizou o acesso à informação, está tirando parte do financiamento das publicações, das empresas de comunicação”.
O grande problema são os anúncios online – daí a velha bronca da indústria de notícias com o Google, que tem faturado uma grande parte da publicidade na internet. A briga é feia, e levou alguns dos maiores jornais do país a retirarem seu conteúdo da busca do Google News, exigindo o pagamento de “royalties”. Aos poucos, estão voltando.
Outros sites de buscas diretas de carros ou imóveis, por exemplo, também acabaram pulverizando um mercado que antes era concentrado nas mãos dos poucos grupos de comunicação.
INTERNET SUPEROU JORNAIS ENTRE OS ANUNCIANTES
Segundo um relatório do IAB Brasil (Interactive Advertising Bureau), a receita publicitária da Internet superou a dos jornais no primeiro trimestre de 2012, tornando-se a segunda mídia com maior receita publicitária no Brasil, depois da TV. Embora uma boa parte desses anúncios vá parar nos grupos de comunicação tradicionais – como no portal UOL, o maior da América Latina, que pretence ao Grupo Folha –, outra gigantesca fatia vai para os sites de busca.
Os dados da IAB apontam que, do total de R$ 4,57 bilhões arrecadados em 2012, R$ 2,2 bi foram investidos em publicidade display (como banners) e R$ 3,82 bilhões em ferramentas de busca – esse último modelo de anúncio cresceu 39%, sendo o que mais cresce nos últimos dois anos.
“Os anúncios em impressos irão decrescer, mas os digitais vão aumentar”, diz Susy. “Olhando os dados de nossas previsões, vejo que o total de ganhos de anúncios com a internet vai superar os meios impressos (jornais e revistas) em 2014”. Mas ela faz uma ressalva: “É difícil falar em termos de declínio de anúncios de jornais, já que muitos deles também têm uma presença digital” – e, portanto, também estão lucrando com a proganda online, mesmo que seja menos que o Google. .
Em resumo, diz o executivo, “o que está acontecendo no mundo é o mesmo que tá acontecendo no Brasil”.
QUEDA MUNDIAL NO NÚMERO DE JORNALISTAS EMPREGADOS
E o que está acontecendo no mundo é claro: os jornais têm optado por reduzir a mão de obra, aumentar a carga de trabalho e, assim, manter os lucros. Segundo a ASNE, Associação Americana de Editores de Notícia, em 2012 havia 40,6 mil jornalistas empregados em redações nos EUA; o número é o menor desde que o levantamento anual passou a ser feito, em 1973, quando havia 43 mil jornalistas empregados. “É um risco que a indústria corre”, diz o executivo, ao ser perguntado sobre o impacto dessas demissões no produto.
Para alguns jornalistas, porém, como Paulo Zocchi, o problema é mais profundo: trata-se da consolidação de um estilo gerencial que privilegia metas ambiciosas e lucros altos. “Estamos vivendo no momento uma certa pressão econômica sobre as empresas. Elas trabalham com um padrão de rentabilidade muito alto hoje, uma rentabilidade de banco. Traçam metas altas e quando ficam abaixo dessa metas está longe de dar prejuízo, mas fazem cortes. Evidentemente isso significa um aumento da exploração do trabalho. Hoje em dia, em relação há 20, 30 anos, o ritmo está muito mais acelerado”. Quando Zocchi consulta os dados da Inter-Meios – os mais confiáveis sobre a indústria – com outros olhos, o que os dados revelam é que “a receita tem aumentado muito mais que o salário dos jornalistas nos últimos 10, 15 anos”.
Para ele, é comum o discurso da indústria atribuir esse novo ritmo à informatização das redações. “É como se isso fosse resultado do avanço da técnica: tem mais tecnologia, é tudo virtual, então se trabalha mais. Na verdade, a empresa se apropria dessa tecnologia que permite unificar funções jornalísticas, e usa isso totalmente voltado para as necessidades dela, para aumentar a rentabilidade. Isso sacrifica as pessoas”.
A VOZ DO DONO E O DONO DA VOZ
No final de maio, a revista “Trip”, que se destaca por produzir conteúdo jovem, demitiu 19 pessoas, o que, segundo o editor e fundador Paulo Lima, representa menos de 8% do total de funcionários. Foram três jornalistas, quatro da área de publicidade, dois designers, quatro da área de produção de moda e ensaio sensual, e o restante de áreas de apoio, como TI (tecnologia da informação) e almoxarifado. Em entrevista à Pública, ele conta que os cortes foram resultado de uma consultoria realizada pela Falconi Consultores de Resultado, uma das principais consultorias de gestão do país. “Por isso que eu digo que essas demissões tem menos a ver com a crise momentânea e mais com um movimento planejado da empresa”, explica o publisher.
Segundo ele, a Trip cresceu em média 30% ao ano nos últimos 10 anos. “Então, é quase inevitável que você termine um ciclo como esse com algumas questões de ineficiência. Vou dar alguns exemplos: a Trip tem ensaio sensuais femininos, a TPM tem ensaios sensuais masculinos e o site também tem uma sessão de ensaios. A gente tinha em um mesmo núcleo três equipes para fazer ensaios sensuais. É evidente que havia um excesso de pessoas para fazer a mesma atividade”. Essa equipe a que se refere é de produção, já que os fotógrafos já eram terceirizados. Para poupar ainda mais recursos, Lima conta que a empresa centralizou as divisões de revistas e de produtos customizados em um só núcleo. Além disso, ele aposta na terceirização. “A forma de fazer conteúdo está mudando. A tendência, como a gente pode ver recentemente com a Record, é terceirizar a produção e trabalhar com produtores independentes. Acho que é esse o processo que a gente está perseguindo. É adequar a nossa gestão ao nosso tempo”.
O FUTURO, INCERTO
A grande maioria dos analistas que tratam do futuro do jornalismo – em especial, nos EUA –fala de “mudança de paradigma”, com o fim da indústria das notícias. Os pesquisadores C.W. Anderson, Emily BelleClay Shirky, da Universidade de Columbia, assumem esse desfecho no relatório “O Jornalismo Pós-industrial: adaptando-se ao presente”:
“Não existe mais uma indústria de notícias. (…) Antes a indústria era mantida pelas condições que determinam o que é uma indústria: métodos similares dentre um grupo relativamente pequeno e coeso de empresas, e uma inabilidade competitiva da produção de todo o resto daqueles que estavam fora deste grupo. Essas condições não são mais verdadeiras”.
Isso não significa, é claro, que o jornalismo em si esteja à beira do precipício. Como diz Paulo Zocchi, a crise ocorre porque, justamente, “o negócio de comunicação está em franca expansão”. “Nada indica, na minha opinião, que o trabalho do jornalista vai acabar. Estamos, em primeiro lugar, lutando para que as condições de trabalho não piorem mais”.
Existe, ao mesmo tempo diversas iniciativas que procuram realizar jornalismo de outras maneiras – como é o caso desta Agência Pública, uma organização sem fins lucrativos – mas, para a maioria dos jornalistas, resta a incerteza de como será o seu próprio futuro. “Eu acho que as pessoas estão vendo que vão ter que se adaptar, mas nem todo mundo, eu inclusive, ainda não sabe exatamente como se encaixar nesta nova realidade. A piada é ‘vou montar um blog e ficar rico’” – brinca uma jornalista da editora Abril que, ainda num cenário de possibilidades restritas, prefere não se identificar para não arriscar seu ganha-pão.
A REVOADA DOS PASSARALHOS
10.06.13 Por Camila Rodrigues, Bruno Fonseca, Luiza Bodenmüller e Natalia Viana
Demissões em massa nos grandes jornais acontecem de forma sucessiva e tornam os jornalistas mais inseguros, vulneráveis, explorados – e com menor liberdade de expressão
O maior orgulho de Vera Saavedra Durão foi ver a filha virar jornalista. Isso porque ela própria, Vera, dedicou 35 anos à profissão, com a garra de quem cumpre uma missão. “Você quer que as informações sejam publicadas da melhor forma possível, que aquilo ali venha a público. A gente se entrega”, diz Vera. “Se minha filha seguiu o mesmo caminho é sinal de que ela viu valor nisso”.
A jornalista, hoje com 65 anos, abraçou a reportagem com a mesma paixão que lutou contra a ditadura, como militante da Vanguarda Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), onde foi companheira de Dilma Rousseff. Ficou dois anos na prisão; quando saiu, atuou como repórter de Economia nos então principais jornais do país – O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo.
Em 2000, fez parte da equipe que fundou o jornal Valor Econômico, onde ficou por 13 anos. “No início eu cobria muito tudo, o empenho era muito grande para manter o jornal, com furos, afinal ele precisava se firmar. A gente fazia muita coisa”, lembra Vera, que traz dessa época a lembrança de uma úlcera duodenal sangrante, que surgiu quando fazia uma cobertura particularmente tensa para o Valor. “Perdi dois litros de sangue, e eu nem sabia, até que caí desmaiada. Eu me alienei tanto naquela cobertura, me estressei muito”, conta a jornalista, respeitada por sua competência e dedicação pelos colegas e fontes.
No dia 24 de maio passado, Vera foi demitida sumariamente, junto com mais de 20 colegas do Valor, jornal que pertence ao Grupo Folha e às Organizações Globo. “Fui apanhada de surpresa, não podia imaginar que eu podia entrar numa lista negra, para ser cortada de uma maneira tão brusca”. A surpresa foi ainda maior porque acabara de vir à tona que ela fora alvo de espionagem da empresa Vale S.A., segundo denúncia de um ex-gerente de segurança, caso ainda investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Mas Vera, que estava de férias, nem chegou conversar com a direção do jornal sobre a denúncia. “O jornal não teve contato comigo sobre isso. Mandei email para a chefia para conversar sobre isso, mas acabou a gente não conversando porque eu fui demitida”, conta.
“Depois de 13 anos trabalhando para engrandecer o jornal achei que teria direito a um período sabático e não a uma demissão”, diz ela. “O meu raciocínio sobre os meus direitos era o da minha classe, que é a dos jornalistas, dos que ‘carregam o piano’, e não dos acionistas, donos do jornal, que querem ver o resultado imediato do nosso trabalho”. Vera lembra de uma fonte empresarial que lhe dissera, em 2005, que merecia um bônus já que por causa de uma série de reportagens suas, o Valor passou a ser lido no Japão. “Eu disse que jornalista não tinha bônus, só ônus”.
Enquanto Vera ainda tenta digerir a demissão na sua casa do Rio de Janeiro, a mil quilômetros dali Flávio José Cardoso, de 51 anos, atende clientes de um belo restaurante à beira mar na ponta de Sambaqui, em Florianópolis. Há quatro anos, ele escrevia os editoriais do jornal mais lido de Santa Catarina, o “Diário Catarinense”, com 40 mil exemplares diários. Hoje, é garçom.
A guinada em sua vida começou em 2010, quando mudou o editor-chefe do jornal. Ele deixou de ser editor de Opinião e foi “promovido” a subeditor de Geral, seção que inclui de polícia a comportamento. “Passei a editar também o caderno Mundo, sozinho. Depois de um tempo, me colocaram para escrever matérias especiais todos os dias”. Além das reportagens e da edição, ele passou a fazer a diagramação, montar tabelas, procurar fotos. Se antes trabalhava das 13h às 19h, passou a ficar no mínimo 12 horas dentro do jornal, todos os dias – e estava sempre atrasado. “O trabalho que estava fazendo era para ser resolvido por oito ou dez pessoas. Entrava às 13h e saía a 1h, 2h da manhã, todos os dias. Não parava para comer; comia um salgado, enquanto digitava”. Isso quando o editor não falava, em alto e bom som para todo mundo ouvir, coisas como “Eu já te expliquei isso. Uma pessoa com um neurônio entende”.
Flávio aguentou a situação por um ano. “Isso leva o indivíduo a um nível de estresse que ele começa a se achar incompetente para executar as tarefas que faz há 20 anos”. Durante esse período, teve lesões nos tendões das mãos e na córnea, porque usa lentes de contato e ficava muito tempo exposto ao computador e ao ar condicionado. “Quando voltei de licença por causa da lesão, o editor-chefe teve a cara de pau de dizer que eu inventei a doença!”. Entrou com um processo contra o Diário. Hoje, embora seja garçom, colabora com uma revista especializada em economia. E não largou o jornalismo – ainda.
As histórias de Vera e Flávio não são exceção entre os jornalistas brasileiros; o que é raro é algum deles vir a público denunciar essa situação. Acúmulo de tarefas, assédio moral, hora extra não-remunerada, insegurança sobre o próprio futuro são males que infestam a indústria das notícias no Brasil. Embora sejam fruto de decisões empresariais que já duram alguns anos, nos últimos meses a situação se agravou com diversos grandes cortes de pessoal – os chamados “passaralhos”.
UMA AVE QUE ACABA COM TUDO
Passaralho é um jargão agressivo para as demissões em massa nos meios de comunicação. Remete a pássaros, revoadas de algo que destrói tudo por onde passa. De março a maio de 2013, eles passaram sobre redações grandes como Estadão, Valor Econômico, Folha de S. Paulo e já sobrevoam a editora Abril, a maior do país, além de atingir a maioria dos jornalistas em redações menores, como Brasil Econômico e Caros Amigos. Isso, somente dentre as empresas sediadas na cidade de São Paulo. No estado inteiro houve demissões no jornal A Tribuna, o maior da região da Baixada Santista, e na Rede Anhanguera de Comunicações (RAC), que domina as regiões ao redor de Campinas, Ribeirão Preto e Piracicaba.
Considerando apenas os jornalistas registrados em carteira e somente na cidade de São Paulo, foram registradas 280 demissões homologadas de janeiro a abril desse ano, 37,9% a mais que no mesmo período de 2012, quando foram registradas 203 homologações por conta de demissões. Ou seja, tudo indica que 2013 será pior que o ano passado, quando mais de 1.230 jornalistas foram demitidos de redações no Brasil. Os motivos, em geral, foram “reestruturações”, que nada mais são que novas formas de organizar o trabalho usando menos pessoas e mais tecnologia.
“É um ponto fora da curva”, diz Paulo Totti, que, com quase 60 anos de jornalismo, também foi vítima do corte no Valor. Totti usa a expressão para explicar que, na indústria do jornalismo, os trabalhadores mais experientes são descartados facilmente e substituído por recém-formados – o oposto do que acontece em outras áreas. “Em nenhum outro ramo da economia se vê atitudes semelhantes. Os administradores têm a preocupação de manter a sua mão-de-obra qualificada”, diz Paulo, que sempre cobriu economia, e com excelência. Em 2006 foi vencedor Prêmio Esso, o mais respeitado do jornalismo brasileiro, com uma série sobre a economia chinesa. Meses antes de ser demitido, havia se oferecido para fazer oficinas com cada uma das editorias do Valor, para ajudá-las a melhorar a qualidade dos textos. “Há, claro, uma certa surpresa, já que a demissão não decorre de uma maior ou menor dedicação ao trabalho. Mesmo um jovem fica meio intranquilo quanto ao seu futuro. Pior: se o cara desempenhar bem suas funções, ele pode ter um aumento de salário, e esse aumento causa a sua demissão”.
ONDE OS DONOS DE JORNAIS QUEREM CHEGAR?
Paulo Totti, que no momento considera a única opção que lhe foi dada pelo jornal – virar colaborador freelancer – compartilha um receio que se espalha nas redações com a mesma rapidez que o voo dos passaralhos. “Temo que isso esvazie o conteúdo do jornal. E esse é o sentimento de todo corpo de gente que integra o setor redação em todos os jornais brasileiros”, explica ele. “Não sabemos bem aonde os donos dos jornais querem chegar. A decisão no Valor, por exemplo, partiu da pressão de pessoas aos que integram o conselho administrativo do jornal, representantes dos acionistas. Nenhum deles tem no seu currículo alguma passagem pelo jornalismo”.
Os cortes de pessoal se devem a um investimento milionário em um serviço de informações financeiras em tempo real, o Valor Pro. Esse investimento começou a ser feito há cerca de três anos, quando os funcionários foram avisados que a redação seria unificada. “Fomos avisados de que nos dois anos seguintes ninguém teria aumento salarial. Ao mesmo tempo, todos teriam que escrever para as três plataformas: tempo real, site e impresso”, diz um jornalista que sobreviveu ao último corte no jornal e que prefere não se identificar. Segundo o repórter, o clima da redação está ruim; além do trauma provocado pelas demissões, sobrou excesso de trabalho para todos. “O site, que antes era cuidado por cada editoria, agora é alimentado por pessoas de um ‘mesão’ digital, que não tem muita familiaridade com alguns assuntos. No impresso, a cada dia está uma briga por espaço e o número de páginas está sendo reduzido”.
Também a Folha de S Paulo anunciou uma reestruturação na última semana, com o fim do caderno “Equilíbrio” e o reagrupamento de outros cadernos em três núcleos de produção. O número de jornalistas demitidos foi de 24. A direção comunicou à ombundsman, Suzana Singer, que “as redações do futuro deverão ser cada vez mais enxutas, assim como o produto impresso”. Entre os demitidos estão nomes do porte de Andreza Matais, ganhadora do Prêmio Esso de jornalismo 2011 pela série que demonstrou o enriquecimento do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. “Aos que acreditam que o jornalismo de qualidade faz bem à democracia resta torcer para que a travessia dê certo”, resumiu Suzana Singer, em artigo na Folha.
A Pública falou com um dos jornalistas cortados do Grupo Folha, da área de cultura, que pediu para não ser identificado. “Ao chegar à redação um dos colegas comentou que haveria corte e, cerca de 20 minutos depois, fui chamado para ser avisado de que seria desligado da empresa. A justificativa? Corte de gastos. Tinham de ter uma meta x de gastos, e a minha saída ajudaria a atingir tal meta”.
“Eu tenho pena de quem ficou e de quem está entrando no jornalismo”, diz, com certa serenidade, o repórter fotográfico Lula Marques, premiado jornalista da sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo. No dia 1º de abril, ele acordou comemorando o aniversário de 26 anos de jornal. À tarde, foi comunicado que estava demitido. “Me falaram que eu estava ganhando muito, mais que o editor de fotografia de São Paulo, que meu nome estava na lista há dois anos e que não dava mais para me segurar na empresa”. Desde novembro de 2011 – quando a empresa cortou 10% dos seus jornalistas – os cortes, discretos e sem alardes, são constantes na Folha. Tanto, que Lula diz que já estava preparado. “Saí com um equilíbrio emocional bom, porque já estava me preparando para isso. Nos últimos dois anos, as pessoas que estavam com o salário lá no alto foram todas embora. Sabia que um dia ia chegar minha vez”.
TENSÃO NA ABRIL
Era sexta-feira, dia 7 de junho, quase no final do expediente, e o clima no prédio da editora Abril S.A, zona oeste de São Paulo, estava pesado por conta dos rumores de um grande corte, previsto desde a morte do presidente do grupo, Roberto Civita, em 26 de maio. “Olha, está muito tenso e é uma tensão diferente. Eu já vivi outras demissões coletivas, mas antes era assim: os diretores das redações estavam plenamente por dentro de quantas pessoas deveriam ser cortadas de cada revista, enquanto os ‘peões’ estavam morrendo de medo. Agora não, ninguém sabe de nada direito, nem os diretores”, disse à Pública uma jornalista, que também pediu não ser identificada por medo de represálias.
Pouco depois, seis executivos foram demitidos, junto ao anúncio de que o grupo passaria por uma “reestruturação”, com agrupamento de unidades de negócios, reduzidas de dez para cinco. O objetivo, segundo a empresa, era a “racionalização dos recursos”. Há boatos de que 11 revistas deixarão de circular – entre elas nomes lendários como Playboy, Capricho e Contigo. É a senha para o passaralho. “Deve acontecer na próxima semana”, diz a mesma jornalista. “Eu acho que, se na semana que vem já anunciarem qual revista vai ser cortada, o clima vai melhorar. Não saber o que vai acontecer que é estranho. A gente faz piada o tempo todo, tipo, estou me matando pra fazer esse editorial de moda e se a revista acabar amanhã…”
“Entre os jornalistas, nesse momento o clima é de intranquilidade aguda”, diz Paulo Zocchi, diretor jurídico do sindicato do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e que trabalha na redação da revista Quatro Rodas, da editora Abril. “Tá todo mundo morrendo de medo. Na minha redação, que é de uma faixa etária um pouco mais velha, tá todo mundo falando: ‘vamos ver se segunda-feira vamos estar aqui’”. A jornada dupla de Paulo – na revista e no sindicato – está ainda mais atribulada desde as últimas demissões. Toda vez que corre um boato de demissão, o sindicato é acionado, e pede uma reunião de emergência na empresa, para negociar.
Foi o que aconteceu em abril, na negociação com o Estado de São Paulo – de desfecho inesperado. O Estadão anunciara a redução da quantidade de cadernos diários para apenas 3, a extinção do caderno Link, sobre tecnologia, e do caderno de Negócios. Ao mesmo tempo, passou a privilegiar as plataformas digitais, com o lançamento do novo aplicativo do Estadão, adaptável a qualquer dispositivo móvel. Segundo conta Paulo Zocchi, na quinta-feira, dia 4 de abril, ele recebeu uma ligação avisando sobre boatos de demissão em massa no Estadão. “Hoje, a redação tem 250 jornalistas. O boato era de que 100 seriam demitidos na segunda ou na terça-feira da semana seguinte”. O sindicato solicitou uma reunião de emergência com a direção do Estadão, mas o jornal não respondeu e começou a demitir já no dia seguinte, sexta-feira. No total, foram 31 demitidos.
“Na sexta-feira, 12 de abril, fizemos uma assembleia na empresa, e desceram 90 pessoas. O objetivo era reverter todas as demissões. Até que uma das trabalhadoras demitidas disse que não queria ser reintegrada”, lembra ele, revelando sua surpresa. No fim da assembleia, em que estavam 14 dos 31 demitidos, nenhum deles queria voltar a trabalhar no Estadão. “As pessoas se sentiram descartadas, afetadas emocionalmente de uma forma tal que elas não queriam voltar”.
Um dos demitidos, repórter com cerca de cinco anos de profissão, não disfarça sua revolta. Segundo ele, os rumores de cortes eram constantes no jornal, espalhando um “clima de terrorismo”: “O jornal esperava que os jornalistas continuassem a manter a quantidade e a qualidade de trabalho com menos pessoas, impossível. Jornalistas acumularam funções e a qualidade, como os leitores puderem observar, caiu”. Ao ser demitido, ele foi procurado por um dos diretores, “para deixar claro que eu não estou sendo demitido pela sua falta de competência, que é uma questão de corte de gastos”, lembra. “Querem que você não se revolte e não sai baixo astral, que saia feliz e tranquilo. Te apoiam, mas dizem: ‘vai lá’”.
Como a maioria dos jornalistas demitidos, ele prefere não se identificar publicamente. Quase nenhum dos entrevistados, principalmente os mais novos, quiseram se expor. “Sabe como é, o mercado é muito pequeno e eu posso ter dificuldade para conseguir trabalho”, diz um deles.
DO SUL AO NORTE DO BRASIL
Na ilha de Santa Catarina, o nome do passaralho é mais poético: chamam de “barca”, como aquela, dirigida por Caronte, que levava as almas ao inferno, ou Hades, na mitologia grega. A última barca do DC, o maior jornal do Estado, aconteceu no dia 21 de março e levou cerca de 20 profissionais da redação. Poucas pessoas souberam. A divulgação mais ruidosa do caso foi um e-mail do jornalista Célio Klein anunciando, aliviado, sua demissão após 25 anos de casa. Nela, ele se diz alegre por ter saído do jornal, mas expressa “profundo pesar pela situação”: “É muito grave e difícil não se ver outra saída que não a de abrir mão do trabalho do qual se gosta e ao qual se dedicou a maior parte da vida”. A carta prossegue: “Em uma empresa de comunicação, questionar, alimento do jornalismo, não é permitido. Em uma empresa de comunicação que tem a educação como bandeira, que implica justamente pensar de forma autônoma, pensar não é permitido. Em uma empresa de comunicação que exalta a democracia, vende a diversidade de opiniões, a participação dos leitores como case de ação, de sucesso, divergir não é permitido”.
Semanas depois, em abril, o jornal “A Crítica”, no Amazonas – um veículo da RCC (Rede Calderaro de Comunicação), que tem filiadas à Rede TV!, ao SBT e à Record. – demitiu aproximadamente 15 pessoas, entre repórteres, editores e fotógrafos do jornal impresso e do site. A repórter especial Elaíze Farias, vencedora do prêmio Imprensa Embratel 2012, foi uma das cortadas. “A justificativa oficial é de que o jornal acabou com esse cargo”, diz ela. “Não sei quais foram os critérios”.
Com quase 20 anos de experiência, Elaíze dedicou metade deste período a produções de reportagens sobre questões sociais e ambientais da região. Ela lembra de uma das últimas reportagens que fez, sobre um casal de índios matis que estava sendo acusado de tentar cometer ‘infanticídio’ contra seu filho doente em Manaus – o que foi completamente desmentido por eles. “Para conseguir entrevistar este casal, me desloquei de lancha pelo rio Solimões (uma hora) de Tabatinga até outro município, Benjamin Constant, e dali peguei um táxi-lotação (meia hora), viajando pela estrada até Atalaia do Norte, onde os índios matis estavam. Fiz o retorno de carona, na moto de um indígena, porque não havia mais táxi disponível entre Atalaia e Benjamin, até novamente voltar a Tabatinga. E precisava chegar antes das cinco da tarde, pois as lanchas que fazem a travessia do rio em Benjamin operam até neste horário. Ou seja, foi um gasto extra que precisei utilizar. Depois de uma jornada de oito dias, voltei a Manaus. Bom, é assim que se faz jornalismo na Amazônia”.
Para ela a maior preocupação é ter que deixar de realizar reportagens como essa. “Fiquei muito frustrada por, após a minha saída, estes temas terem ficado parados, na minha própria gaveta de pautas. Elas continuam guardadas, para quando eu tiver algum espaço e logística para viabilizar”.
Sobre o silêncio que cerca as demissões, Elaíze diz: “No geral, a notícia das demissões ficaram restritas ao boca-a-boca e às redes sociais – eu, por exemplo, fiz um comunicado pelo Facebook e por e-mail aos meus amigos, companheiros de luta, organizações sociais e fontes”, comenta. “Hoje se fala muito nas crises dos jornais impressos e na sua dificuldade de se adaptar aos novos tempos e às notícias publicadas nos portais de internet. O enigma é: a mídia vai se conseguir se reinventar, se ressignificar, para continuar sobrevivendo? Cabe a todos nós, os que estão dentro e os que estão fora das redações, passar a refletir”, acredita.
Para o pesquisador José Roberto Heloani, da FGV, a esperança é a de que os jornalistas comecem a ter maior consciência e maior interesse nessas questões. “É isso que chamo de luz no fim do túnel. E isso vai fazer com que as pessoas comecem a perceber que a saída não é individual. A saída é coletiva”. Neste ano, em São Paulo, houve pelo menos quatro casos de organização de jornalistas contra demissões: “O Vale” e “Bom Dia”, de São José dos Campos; do “Jornal da Cidade de Jundiaí”; do “Brasil Econômico”; e a dramática greve da pequena redação de “Caros Amigos”, que se autodenomina “a primeira à esquerda” que terminou com demissões e ações na Justiça (veja box).
O jornalista Audálio Dantas, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na época do assassinato de Vladimir Herzog e foi o primeiro presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, tem uma avaliação mais pessimista. “Por mais que se lute, o panorama dos meios de comunicação concentrado em poucas mãos contribui para que as lutas sejam enfraquecidas”, diz Audálio, que considera a regulação da propriedade dos meios de comunicação essencial no debate sobre o futuro da profissão: “Há a necessidade de se regular, porque nós temos esse fenômeno: o sujeito faz o trabalho para o veículo impresso, a empresa faz uma adaptação do mesmo texto e o trabalho de um profissional é aproveitado em quatro meios”.
Nesse cenário, ele diz, não há mais distinção entre bons profissionais e medianos. “Antes os grandes jornais tinham esses cuidados de preservar os bons jornalistas. Hoje, não se distingue os profissionais e vão todos no mesmo diapasão”, observa Dantas, que identifica um ciclo vicioso para a profissão: para aproveitar o rendimento máximo – em termos quantitativos – as empresas mantêm o jornalista dentro da redação, fazendo matérias por telefone e por e-mail, o que resulta em um número maior de matérias, mas de pior qualidade. “A grande vítima, depois do jornalista, é a apuração. A qualidade da informação, que é o que garante historicamente a credibilidade, está prejudicada”.
Para os mais jovens, porém, a sensação é de que as mudanças são ainda mais profundas, como diz o jovem profissional, recém demitido do Estadão: “A justificativa [de cortes de papel e demissões] é a financeira. Se você acompanha o jornal, deve ter percebido que as editorias enxugaram, algumas sumiram… O jornal inteiro ficou menor. A sensação, dentro e fora da redação é de que o jornal está apenas adiando o seu fim”.
Desrespeito também nas pequenas redações
Tão comum é a precarização do trabalho do jornalista, que ela chega a redações grandes e pequenas, de todos os espectros ideológicos. Em março deste ano, a Revista Caros Amigos – na qual trabalharam, no passado, as duas diretoras da Pública – protagonizou uma dramática greve. Os 11 profissionais grevistas abriram uma página no Facebook, que chegou a ter mais de 1500 apoiadores; mas, ao cabo de 3 dias, todos foram demitidos pelo atual proprietário Wagner Nabuco. Os funcionários protestavam contra a ameaça de uma redução de parte da equipe ou redução dos salários. “O dono comunicou que iria fazer um corte de 50% dos custos da redação, o que significaria a demissão de metade da redação”, diz o ex-editor Hamilton Octavio de Souza. Também queriam direitos trabalhistas, como contratação formal no regime CLT. Em entrevista ao portal Sul 21, Nabuco mostrou-se indignado com as reivindicações. “Não tem carteira assinada porque ninguém entrou aqui com essa promessa. Foram crescendo devagar na empresa, muitos começaram como estagiários. A folha de pagamento da redação nunca foi tão alta, era maior que a do departamento comercial. Nunca me falaram que eu era um patrão ruim. Que instrumento eu utilizei para mantê-los acorrentados e explorados ao máximo? Por acaso coloquei um 38 na cabeça de alguém?”.
Após uma tentativa de negociação, mediada pelo Sindicato dos Jornalistas, os demitidos decidiram entrar com ação judicial contra a empresa. Gabriela Moncau, uma das jornalistas demitidas da Caros Amigos, explica que nove dos onze profissionais desligados da empresa estão se organizando para mover uma ação reivindicando os direitos mínimos trabalhistas, negados no momento da demissão, o que deve ocorrer em breve.
(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
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