domingo, 8 de julho de 2012

Utopia: "como um princípio de esperança"


O Direito Constitucional de Ler

Por Nikelen Witter *
Especial para o Sul21
O escritor argentino Mempo Giardinelli é um utopista. Nenhuma crítica minha no uso deste termo. Vivemos um tempo de superação das utopias que aspiravam à perfeição e que, por conta disso, poderiam levar à frustração e ao autoritarismo. Prefiro pensar nas utopias como propôs Ernst Bloch, como um princípio de esperança. Sendo assim, gosto imensamente de utopistas. Imagino-os como cartógrafos de territórios ainda não mapeados ou conquistados. Os utopistas nos dão um norte, uma busca, traçam os planos de nossa próxima aventura. Como o Quixote, amado por Mempo, os utopistas olham os moinhos de vento e os enfrentam, junto com o temor próprio de assaltar algo muito maior que si mesmo. Os utopistas são ainda mais importantes num mundo mergulhado nas imagens distópicas como o que vivemos. Não nos faltam anunciadores do apocalipse. Faltam-nos, porém, os que olham o futuro com um realismo otimista, não por acreditarem que as coisas simplesmente se resolverão, mas por ousarem imaginar, agir e criar metas.
Mempo Giardinelli: "Os processos ditatoriais e sua ação criminosa sobre a educação de suas populações" | Foto: Divulgação
Voltar a Ler: Propostas para ser uma nação de leitores é uma obra que encarna os sonhos de Mempo Giardinelli, levando-nos a sonhar junto. Mais que isso, há nela um condão desestabilizador. Daquele tipo que nos faz levantar da cadeira com a vontade louca de fazer alguma coisa, qualquer coisa. É fácil a bandeira de Mempo tornar-se a nossa, suas palavras são convincentes, falam à alma, falam a estrutura básica, especialmente, daqueles que já são leitores. No caminho traçado por suas palavras, o escritor não se abstém de incomodar governos, pais, professores, chamar culpas, sejam próprias sejam impingidas pelo mundo em que mergulhamos nesta virada de século.
Leitura pública de Charles Dickens: "Estudantes de graduação e pós-graduação que reclamam do tamanho dos textos que têm para ler"
O olhar de Giardinelli sobre a Argentina chama atenção sobre um problema que atingiu a América Latina como um todo nas últimas quatro décadas do século XX: os processos ditatoriais e sua ação criminosa sobre a educação de suas populações. Onde ela não existia não se desenvolveu; onde já tinha raízes foi podada; onde já era árvore foi assassinada na base do serrote da violência profissional e da intolerância e restrição dos programas educacionais. O fato é que a reconquista democrática ainda não conseguiu retomar este terreno fundamental e, com isso, tudo o que alcançamos foi uma democracia capenga. “O triunfo ideológico das ditaduras foi tão grande que ainda estamos pagando por ele”, diz Mempo. Se os governos ditatoriais trataram a educação como um inimigo a ser combatido; os novos governos democráticos pecam, na visão do autor, por verem a educação como um programa para a criação de trabalhadores para o mercado, não somente o de trabalho, mas, principalmente, o de consumo. Este último, como sabemos, se alimenta justamente do processo irreflexivo ingestão de “ofertas”. Sendo assim, a educação passou a ser pautada em metas quantitativas e a busca dos números positivos tornou-a funcionalista e, logo, facilmente permeável a posturas retrógradas, que contribuem para eliminar-lhe a liberdade e a criatividade. O ponto mais desmerecedor de toda esta estrutura, para Giardinelli, é o fato desta educação não basear-se na leitura, mas, tão somente, em fazer uso dela como uma escada para alguma outra coisa. Se a educação é para o mercado e não para as pessoas, a leitura nela prevista é a leitura feita por dever, para que se alcance algo: uma nota, um cargo, um salário.
A edição brasileira do livro de Giardinelli
A retomada da Argentina como uma sociedade leitora
O livro foi escrito com o objetivo de propor, de forma prática, dentro e fora das instituições, a retomada do caminho da Argentina como sociedade leitora. As propostas descritas, além de implementadas pela ONG criada por Mempo Giardinelli, foram acolhidas pelo estado argentino, passando a compor tanto a Lei Nacional de Educação, quanto o Plano Nacional de Leitura (PNL) daquele país. Sua publicação no Brasil, em 2010, pretendeu, da mesma forma, socializar a experiência dos hermanos e demonstrar o uso destas ideias também para o Brasil.
Nunca fomos uma sociedade leitora. A leitura na história do Brasil, quase sempre, manteve-se em guetos elitistas, inacessível, cara, particularizada.
Contudo, mesmo com as semelhanças da época em que se vive e da experiência ditatorial, o cenário argentino difere em muitas questões do brasileiro, daí o fato de alguns conceitos desenvolvidos por Mempo precisarem de uma reflexão maior e aplicada. Um deles é o conceito de resistência cultural proposto pelo autor e que ele aplica a uma Argentina que já foi leitora e se perdeu (apenas no meio do livro é que ele faz a ressalva da necessidade de se relativizar os dados mais antigos e não idealizar a sociedade leitora de outrora). De qualquer forma, se pensarmos em nossa percepção da Argentina, nós também a idealizamos como uma sociedade bem mais leitora que a nossa. Uma nação que, em algum momento de sua história, quase erradicou o analfabetismo, um feito que, para o Brasil, ainda é uma meta a alcançar. E uma meta tristemente menos próxima do que desejaríamos.
"Ler muito deixa louco, ler é coisa pra rico, ler pra quê?" | Imagem: Isaac Israëls, Girl reading on the sofa (1920)
E aí está nossa principal diferença. Nunca fomos uma sociedade grandemente leitora. A leitura na história do Brasil, quase sempre, manteve-se em guetos elitistas, inacessível, cara, particularizada. Nossa cultura mantém ainda a sensação de que os livros não são para todos. No interior do Rio Grande do Sul ainda se pode ouvir ditos como: ler é coisa de vagabundo, ler muito deixa louco, ler é coisa pra rico, ler pra quê? Isso sem falar nos estudantes de graduação e pós-graduação que reclamam do tamanho dos textos que têm para ler; dos jovens do ensino médio que aprendem por polígrafos cheios de fragmentos e nunca textos completos; por crianças que jamais aprendem a ler em voz alta e acreditam que compreender um texto é responder o questionário do professor copiando trechos ou respostas que “agradem”. Nossa palavra chave, diferente da proposta de Mempo, talvez não seja de resistência, mas de conquista. E o caminho é igualmente árduo, ou quiçá, ainda mais.
Para que se quer uma sociedade leitora?
Ainda assim, as propostas de Voltar a ler podem e devem ser lidas como propostas para iniciar a ler; e muito se pode aprender com a experiência argentina. Neste caso, vale destacar o PNL argentino conseguiu entre 2006 e 2009 aumentar em 24 pontos a capacidade de compreensão leitora dos jovens escolares. Entretanto, antes de tudo, cabe a pergunta: para que se quer uma sociedade leitora? Esse é o tema da primeira parte do livro, cuja paixão e a ênfase podem nos fazer acreditar que nele estão algumas contradições com as ponderações posteriores da obra. O fato é que não se pode dizer tudo de uma única vez e, em especial, o primeiro capítulo tem um tom quase de manifesto, deixando para os outros as avaliações e propostas de ação mais estruturadas. Como manifesto – mais que suas possíveis contradições – é necessário que se atente para a beleza do sonho de um país de leitores.
A leitura deve tornar-se prazer, desejo, momento. Mais que tudo, a leitura deve ser sinônimo de liberdade e não de imposição.
Mempo: "A leitura deve ser desvinculada do dever" | Foto: Divulgação
O primeiro ponto a ser encarado pelos poderes públicos – na visão do autor – é que um tipo de ação é construir a importância da leitura na sociedade. Isso, diz Mempo, a Argentina já domina (o Brasil também, em parte). No entanto, é preciso ultrapassar a construção da importância da leitura para construir a leitura propriamente dita. Para isso, sugere, a leitura deve ser desvinculada do dever, dos números, das progressões. A leitura deve tornar-se prazer, desejo, momento. É coletiva quando partilhada e ouvida. É pessoal e intransferível quando silenciosa e eletiva. Mais que tudo, a leitura deve ser sinônimo de liberdade e não de imposição. A leitura se faz para o sujeito e não para o mercado. Aliás, este é o grande erro da educação que se tem proposto aos nossos filhos e alunos.
O autor chama nossas gerações adultas à responsabilidade dentro e fora das escolas. Não é apenas o modelo educacional que deve ser criticado. A postura dos pais que se escoram na televisão como fonte única de contato das crianças com a imaginação. Os avós que deixam de contar histórias. A conversa que não se estabelece e que, por conta disso, não estimula a construção de narrativas entre gerações. A falta de tempo para a partilha do lido, do percebido, do imaginado. Resistir, diz Mempo. Nosso papel é resistir ao mundo que nos engole e manter vivo o espaço do ler e do narrar.
"A liberdade de produzir ideias próprias e de interpretar o mundo que nos rodeia" | Foto: http://www.blogdatricae.com.br/
Porque somos mais livres quanto mais somos capazes de ler.
Por quê? Porque somos mais livres quanto mais somos capazes de ler. Quanto mais ideias diferentes formos capazes de processar, melhor será nossa capacidade de produzir ideia próprias, originais, e não impostas pelo que é absorvido sem reflexão. Ler, define o autor, é uma ato de inteligência, um trabalho intelectual de interpretação do mundo que nos rodeia. Não é somente da ignorância que a leitura nos retira, mas da ingenuidade, da aceitação muda, da incapacidade de reagir, do pasmo diante dos acontecimentos, da inação castradora, punitiva e frustrante. Daí a importância em se pensar o acesso à leitura como um Direito Constitucional de cada cidadão. Ninguém pode ser despossuído deste que é um direito fundamental numa democracia: ser capaz de pensar por si, tomar decisões baseadas na consciência alimentada pela leitura e pela reflexão sobre ela e o mundo. Alienar um povo da leitura é torná-lo massa de manobra fácil, é jogá-lo no desamparo dos tiranos, é incapacita-lo de construir um mundo mais justo.
Concordo com sua postura de se colocar contra o paradigma do fim dos tempos, professado por tantos intelectuais que anunciam o fim dos livros, da leitura, da inteligência, da História.
Mempo: "Um processo de formação educacional voltado para o desenvolvimento da capacidade de ler" | Jessie Wilcox Smith "Books in Winter"
Aqui é possível que alguém critique a posição do autor e diga que esse processo não é automático. Que a leitura não tem todo esse poder. Meu contra-argumento é só um: se uma sociedade leitora não tem esse poder, muito menos o terá uma sociedade que não lê. A leitura é a possibilidade de fazer algo diferente do que temos. Sem leitura, não temos sequer essa possibilidade. E neste sentido, coloco-me inteiramente ao lado de Mempo Giardinelli. Da mesma forma, concordo com sua postura de se colocar contra o paradigma do fim dos tempos, professado por tantos intelectuais que anunciam o fim dos livros, da leitura, da inteligência, da História; que dizem que nada pode ser feito contra a as forças destruidoras da globalização e do mercado (bem entendido, que estas forças se combinam com coisas boas e benéficas, e que é preciso separar ao invés de aceitar ou rejeitar tudo). Aqui também o termo resistência é empregado. Resistência contra as forças derrotistas e alarmistas, contra os que se recusam a investir, contra os que colocam a culpa nas novas gerações e lhes retiram de antemão qualquer possibilidade de investimento e entendimento. Afinal, penso eu, conquistar os jovens leitores não é impor-lhes que sejam o que fomos, mas compreender o que eles querem ser e somar sem subtrair.
Pedagogia da Leitura
Assim, Giardinelli aposta na leitura como a base de uma educação erigida como razão e fundamento do estado democrático. Para isso, ele propõe uma Pedagogia da Leitura, ou seja, todo um processo de formação educacional voltado para o desenvolvimento da capacidade de ler.
"Ora, como poderão insuflar paixão e desejo por algo que lhes é, igualmente, um tormento?" | Anna Karina em Alphaville, de Jean-Luc Godard
O escritor também se coloca contra a culpabilização excessiva e exclusiva da televisão e das novas tecnologias que envolvem internet, jogos, interatividade e comunicabilidade. Para ele, uma sociedade formada na leitura terá menos interesse pela televisão de baixa qualidade e maior capacidade de seleção da programação. Da mesma forma, saberá utilizar como aliados todos os novos recursos tecnológicos, os quais, na maioria das vezes, têm a leitura como base da comunicação.
Sabemos que no Brasil temos uma boa quantidade de professores que não têm a leitura como um hábito de lazer. Eles também se ocupam dela como um dever, como uma obrigação a cumprir.
No entanto, aí se tem um novo problema, o qual, creio, ainda é parte importante do debate sobre a leitura. Qualquer leitura é válida, ou somente algumas leituras o são? Mempo acredita que é necessário relativizar a pergunta e as respostas, porém, ele acredita que quanto mais se lê mais se tem capacidade de discernir sobre a qualidade das leituras. Pessoalmente, eu acredito na capacidade da leitura de autopromover-se junto ao leitor. O início – HQs, livros simplificados, entretenimento – não determina o fim, pelo contrário, quanto mais rica a leitura, maiores são suas possibilidades. A leitura não fecha portas, abre. Todavia, fornecer os instrumentos de fomento e incremento da capacidade leitora é, sim, uma das tarefas mais importantes a serem assumidas pelo sistema educacional como um todo, função a qual os educadores não podem se furtar. Acontece que, da mesma forma que Mempo percebeu para a Argentina, sabemos que no Brasil temos uma boa quantidade de professores que não têm a leitura como um hábito de lazer. Eles também se ocupam dela como um dever, como uma obrigação a cumprir. Ora, como poderão insuflar paixão e desejo por algo que lhes é, igualmente, um tormento? Daí a necessidade primária de devolver aos professores sua dignidade profissional, pessoal e salarial, dando-lhes espaço e incentivo, bem como auxílio, para retomarem (ou incorporarem) a leitura em seu cotidiano de trabalho e vida.
Imagem de uma Maratona de Leitura na Argentina: unindo tecnologias com critério
A “sobre-educação” argentina
As análises de Giardinelli prosseguem em termos políticos e econômicos. Em uma de suas páginas mais dolorosas sobre a crise econômica Argentina da primeira década do século XXI, o autor cita a recomendação do Fundo Monetário Internacional de que a sobre-educação dos argentinos os fazia ter demandas incompatíveis com os novos tempos econômicos. A opção política e econômica mais viável – e aceita pelas autoridades argentinas – foi a do embrutecimento e do aprofundamento da ignorância. O triunfo da bestialidade deu asas ao aumento da violência, da depredação das escolas e de sua transformação em campos de concentração, com professores convertidos em carcereiros (ora agressores, ora agredidos) e alunos vigiados. A escola converteu-se num depósito, pois “estar aí, era melhor que estar na rua”. Qualquer semelhança com as escolas brasileiras, com certeza, não é mera coincidência. E então, eu me pergunto da validade desta frase. Afinal, se é esta escola que podemos oferecer, será mesmo o melhor? Pois, se a escola que se converte numa rua sem lei, onde impera a lei do mais forte e não da razão, terá sentido fingir que ali se promove educação?
A leitura precisa de projetos visíveis, continuados, que não dependam dos sabores e vontades de governos cambiantes.
É por conta disso, e apostando no poder da leitura e da narrativa como fontes de resistência e reivindicação, que Giardinelli convoca professores e pais e retomarem seus lugares de inspiradores das novas gerações, usando para isso, de uma Pedagogia da Leitura. Uma atuação direta de fomento, de contato, inspirada no próprio ato de ler, narrar e conversar. Este ponto do livro me foi muito interessante, pois me ajudou a formalizar algo que há muito me incomodava. Sempre tive um desconforto com o modelo campanhista que nos chega pela publicidade midiática e que parece ser o mais adotado pelo sistema brasileiro no caso da leitura. Posso estar equivocada, mas não consigo crer neste modelo como base para o fomento da leitura. As ações em prol da leitura não deveriam se basear em campanhas, mas em atos permanentes, numa pedagogia incorporada como atividade cotidiana. A leitura não funciona como um tipo de vacina, não se inocula a vontade de ler e se espera que ela se desenvolva. A leitura precisa de projetos visíveis, continuados, que não dependam dos sabores e vontades de governos cambiantes. Para isso, no entanto, é preciso que, definitivamente, se deixe de tratar – não estou falando do que se escreve ou diz, mas dos atos – a educação como um gasto e se passe a lhe dar o legítimo lugar de investimento no futuro do país.
Mempo: "Leitura e sonho para não definhar" | Foto: Divulgação
Ativismo pela leitura
As propostas de Mempo Giardinelli são factíveis e lúcidas. A segunda parte do livro é clara em detalhá-las. Algumas dependem da vontade dos governos, mas todas, antes de tudo, dependem da exigência dos cidadãos conscientes de que preciso fazer alguma coisa. De que é necessário assumir um ativismo pela leitura, pois ele é a base de todos os outros ativismos que buscam um mundo melhor e mais justo. Leitura e sonho são forças que se auto alimentam. Começamos como uma e desembocamos na outra. Separadas estas forças, estamos fadados a esmorecer e definhar.
O que cabe fazer aos que só pensam e refletem mas não têm soluções nas mãos nem possibilidades concretas de modificar a realidade? Minha resposta é: continuar sonhando e espraiar o sonho. Para isso servem os poetas. Seu destino, seu drama é sonhar o impossível, talvez um mundo melhor. Descrever infernos. Antecipar horrores. Conceituar o etéreo. Apreciar o oculto. Desvelar o insondável. Explorar o desconhecido. Criar essa alteridade que é a arte.”
.oOo.
Nikelen Witter é historiadora, professora e escritora.
Charge de Bill Charmatz

Um comentário:

hfar disse...

A simples leitura dessa matéria me deixou cheio de idéias. Me reavivou a lembrança de coisas que cada um de nós pode fazer...