8 de março, um dia incômodo
Publicado em 8 de março de 2013
Não gosto de 8 de março, não faço segredo. Quando conheci pela primeira vez seu significado, ainda na escola, fiquei profundamente tocada. Causou-me a mesma dor de quando soube a origem trágica do 1º de maio como dia do trabalho, ou melhor, dos Trabalhadores. Com o tempo, porém, a data começou a me irritar. Tudo me parecia profundamente errado nela. Das flores aos sorrisos, da semana da mulher em faixas cor de rosas, aos descontos em eletrodomésticos, sapatos e maquiagem. Fora o “cor de rosa”, eu até aprecio descontos, eletrodomésticos, sapatos e coisas do gênero, mas porque usar este dia, esta semana, este mês para isso? Por que presentear as mulheres num dia marcado pelo horror da condição feminina? Por que risos e compras? É para comemorar nossos salários mais baixos? Nossa menor representatividade política? Nossos rostos deformados, nossos corpos violados, nossas vidas sem dignidade, nossos dias sem descanso, nossas noites de lágrimas escondidas, nossas mortas? Eu olhava 8 de março e me sentia oprimida por tanta alegria, tanta felicidade. Se ao menos se falasse das lutas da década de 1960? Não. Nada disso. Eu só via maridos brincando de dia da inversão: “hoje é dia da mulher, querida, deixe que eu lavo a louça, sente-se, faça o que você nunca pode fazer” ou “obrigado, querida, você é maravilhosa em cuidar de tudo tão bem, eu nunca faria igual.” Como não ser absolutamente feliz com tanto reconhecimento? Uma noite de louça lavada, flores, faixa comemorativa por uma semana no trabalho e um mês inteiro de descontos… Não é o paraíso? Como não ser grata a Deus por ser mulher e inspirar tantas homenagens?
Não lembro a idade em que meus pais começaram a me falar de feminismo e a estimular que eu me sentisse gente, capaz e dona de mim. “Não baixe a cabeça, nenhum homem é melhor que você, sua mente é tão poderosa quanto a de qualquer um mesmo que seu corpo não seja, tenha uma profissão e não dependa de ninguém, fique com alguém por sua escolha e não por necessidade, faça sexo porque é bom e quando você quiser e sempre exija que te respeitem”. Aos 14 já tinha fama de feminista na escola, mas acho que a fama vinha de longe, da época em que um garoto me mandou calar a boca e eu o mandei vir calar. Ele não veio e eu descobri que falar era uma arma poderosa. Contudo, demorei a dar forma aos meus desconfortos, a aprender os reais significados das palavras que usava e das minhas próprias atitudes. Essa aprendizagem foi solitária por muito tempo, meio escondida, meio cerceada por não querer ser chata, não espantar, para não virar “mirritante”. Enquanto isso, 8 de março me esmagava cada vez mais. Há uns dois anos, eu comentei em casa: “queria dormir no dia 3 e acordar lá pelo dia 12, ou pular março inteiro para me ver livre dessa patacoada de dia da mulher”. Ano passado me pediram um texto para este dia e eu respondi que ficava irritada demais para escrever qualquer coisa sobre 8 de março. De mais a mais, como historiadora, o que eu poderia escrever além dos inúmeros e fantásticos textos que começavam a sair em blogagens coletivas e tudo mais. Fiquei quieta e nada escrevi em nenhuma rede social, limitei-me a ler e partilhar.
Contudo, algo mudou. Mudou muito e para melhor – ah, eu ainda morro de otimismo –, mas acho que foi para muito melhor. Começou com a fala infeliz de um policial canadense, que jamais poderia adivinhar que suas palavras seriam faíscas sobre pólvora, barris e barris recheados de pólvora e indignação e que ali um incêndio – há muito em fogo brando – ia se espalhar. A Marcha das Vadias acendeu o debate de todos os lados. Eu vi – e por isso não falo de impressões – pessoas começarem a se questionar e se descobrirem feministas. Nos últimos anos, cada vez mais mulheres e homens começaram a assumir a palavra, a usá-la, a perderem a vergonha de anunciarem em alto e bom som. Talvez, só meus mais próximos e alguns alunos tenham podido avaliar minha felicidade em ir percebendo o aumento destes movimentos e ideias.
Então, o fim do ano passado me foi o mais depressivo e doloroso que já vivi enquanto observadora dos acontecimentos do mundo. Foi como se toda uma onda de violência contra as mulheres viesse a me bater na cara. Foi como se a alegria do movimento murchasse em mim e o peso de todas as dores voltasse. Havia um por que estampado nos rostos de alunxs e amigxs. Já não adiantava chamar outros povos de bárbaros quando era claro que a mesma violência assolava nossas casas e ruas. Ainda somos o país de Doca Street, somos país que o absolveu. Não somos melhores que os que queimam, desfiguram ou fazem estupros coletivos de mulheres. Temos tudo isso, bem aqui, em cores nacionais e, pior, ainda temos os que defendem a culpa das vítimas. E são tantos… tantos.
Há muitos anos, li um texto analisando os crimes de Jack, o estripador – minha memória, infelizmente, perdeu o autor – nele, o historiador defendia a tese de que a violência contra as mulheres tende a aumentar nos períodos em que as lutas por emancipação e dignidade são mais ferrenhas. É uma resposta, uma estratégia não orquestrada de medo e terror, uma ofensiva da insegurança, um cala a boca. Quem estuda história sabe que a estratégia foi usada inúmeras vezes, tantas vezes que, caso se quisesse contar, se poderia dizer que a história é a história da luta para fazer as mulheres calarem a boca (já houve leis que as proibiam de falar em público). Porém, é uma luta inglória, fadada ao fracasso. Somos gente, nossa mente é tão poderosa quanto a de qualquer homem e não vamos calar a boca. (E não me venham com os nomes dos gênios numa história contada por homens e de tempos em que as mulheres eram proibidas de estudar, que me dá cansaço só de ler a ignorância).
Esta semana, porém, algo aconteceu. Algo poderoso o suficiente para jogar meu ranço com 8 de março pro espaço. Algo que me arrancou da tristeza que ainda me acompanhava por conta dos assassínios. Algo que me fez sentar e escrever este texto, meio confissão, meio desabafo. Começou com muitas e muitas mulheres dizendo nas redes sociais que nada havia para comemorar. Continuou com a recusa das flores e a justa indignação com as campanhas de “homenagem” que mais parecem uma piada de mau gosto. Completou com uma aluna linda e sorridente me mostrando orgulhosa os cartazes que seriam colados pela cidade, conscientizando que a violência, além das cifras, tem nome, rosto e dor. Terminou com as postagens desta noite nas redes sociais e a certeza de que não se vai calar a boca. Nunca mais. E que todo o terror e o medo só servirão a nos dar forças. Se o dia é incômodo, vamos incomodar. Muito.
Antes que me esqueça, é melhor dizer: Dia daS MulhereS, por favor. Somos muitas, somos várias, somos um coletivo, E NÃO VAMOS CALAR A BOCA. Aos saudosos (e eu já disse isso em algum outro texto, mas não adianta porque eles continuam a espernear): o tempo não para, mesmo com retrocessos, o mundo não voltara aos ridículos “anos dourados” ou ao século XIX. Mesmo que as trevas nos rondem. E, o melhor de tudo, tem cada vez mais gente do nosso lado. Então, é bom sair da frente!
Publicado em 8 de março de 2013
Não gosto de 8 de março, não faço segredo. Quando conheci pela primeira vez seu significado, ainda na escola, fiquei profundamente tocada. Causou-me a mesma dor de quando soube a origem trágica do 1º de maio como dia do trabalho, ou melhor, dos Trabalhadores. Com o tempo, porém, a data começou a me irritar. Tudo me parecia profundamente errado nela. Das flores aos sorrisos, da semana da mulher em faixas cor de rosas, aos descontos em eletrodomésticos, sapatos e maquiagem. Fora o “cor de rosa”, eu até aprecio descontos, eletrodomésticos, sapatos e coisas do gênero, mas porque usar este dia, esta semana, este mês para isso? Por que presentear as mulheres num dia marcado pelo horror da condição feminina? Por que risos e compras? É para comemorar nossos salários mais baixos? Nossa menor representatividade política? Nossos rostos deformados, nossos corpos violados, nossas vidas sem dignidade, nossos dias sem descanso, nossas noites de lágrimas escondidas, nossas mortas? Eu olhava 8 de março e me sentia oprimida por tanta alegria, tanta felicidade. Se ao menos se falasse das lutas da década de 1960? Não. Nada disso. Eu só via maridos brincando de dia da inversão: “hoje é dia da mulher, querida, deixe que eu lavo a louça, sente-se, faça o que você nunca pode fazer” ou “obrigado, querida, você é maravilhosa em cuidar de tudo tão bem, eu nunca faria igual.” Como não ser absolutamente feliz com tanto reconhecimento? Uma noite de louça lavada, flores, faixa comemorativa por uma semana no trabalho e um mês inteiro de descontos… Não é o paraíso? Como não ser grata a Deus por ser mulher e inspirar tantas homenagens?
Não lembro a idade em que meus pais começaram a me falar de feminismo e a estimular que eu me sentisse gente, capaz e dona de mim. “Não baixe a cabeça, nenhum homem é melhor que você, sua mente é tão poderosa quanto a de qualquer um mesmo que seu corpo não seja, tenha uma profissão e não dependa de ninguém, fique com alguém por sua escolha e não por necessidade, faça sexo porque é bom e quando você quiser e sempre exija que te respeitem”. Aos 14 já tinha fama de feminista na escola, mas acho que a fama vinha de longe, da época em que um garoto me mandou calar a boca e eu o mandei vir calar. Ele não veio e eu descobri que falar era uma arma poderosa. Contudo, demorei a dar forma aos meus desconfortos, a aprender os reais significados das palavras que usava e das minhas próprias atitudes. Essa aprendizagem foi solitária por muito tempo, meio escondida, meio cerceada por não querer ser chata, não espantar, para não virar “mirritante”. Enquanto isso, 8 de março me esmagava cada vez mais. Há uns dois anos, eu comentei em casa: “queria dormir no dia 3 e acordar lá pelo dia 12, ou pular março inteiro para me ver livre dessa patacoada de dia da mulher”. Ano passado me pediram um texto para este dia e eu respondi que ficava irritada demais para escrever qualquer coisa sobre 8 de março. De mais a mais, como historiadora, o que eu poderia escrever além dos inúmeros e fantásticos textos que começavam a sair em blogagens coletivas e tudo mais. Fiquei quieta e nada escrevi em nenhuma rede social, limitei-me a ler e partilhar.
Contudo, algo mudou. Mudou muito e para melhor – ah, eu ainda morro de otimismo –, mas acho que foi para muito melhor. Começou com a fala infeliz de um policial canadense, que jamais poderia adivinhar que suas palavras seriam faíscas sobre pólvora, barris e barris recheados de pólvora e indignação e que ali um incêndio – há muito em fogo brando – ia se espalhar. A Marcha das Vadias acendeu o debate de todos os lados. Eu vi – e por isso não falo de impressões – pessoas começarem a se questionar e se descobrirem feministas. Nos últimos anos, cada vez mais mulheres e homens começaram a assumir a palavra, a usá-la, a perderem a vergonha de anunciarem em alto e bom som. Talvez, só meus mais próximos e alguns alunos tenham podido avaliar minha felicidade em ir percebendo o aumento destes movimentos e ideias.
Então, o fim do ano passado me foi o mais depressivo e doloroso que já vivi enquanto observadora dos acontecimentos do mundo. Foi como se toda uma onda de violência contra as mulheres viesse a me bater na cara. Foi como se a alegria do movimento murchasse em mim e o peso de todas as dores voltasse. Havia um por que estampado nos rostos de alunxs e amigxs. Já não adiantava chamar outros povos de bárbaros quando era claro que a mesma violência assolava nossas casas e ruas. Ainda somos o país de Doca Street, somos país que o absolveu. Não somos melhores que os que queimam, desfiguram ou fazem estupros coletivos de mulheres. Temos tudo isso, bem aqui, em cores nacionais e, pior, ainda temos os que defendem a culpa das vítimas. E são tantos… tantos.
Há muitos anos, li um texto analisando os crimes de Jack, o estripador – minha memória, infelizmente, perdeu o autor – nele, o historiador defendia a tese de que a violência contra as mulheres tende a aumentar nos períodos em que as lutas por emancipação e dignidade são mais ferrenhas. É uma resposta, uma estratégia não orquestrada de medo e terror, uma ofensiva da insegurança, um cala a boca. Quem estuda história sabe que a estratégia foi usada inúmeras vezes, tantas vezes que, caso se quisesse contar, se poderia dizer que a história é a história da luta para fazer as mulheres calarem a boca (já houve leis que as proibiam de falar em público). Porém, é uma luta inglória, fadada ao fracasso. Somos gente, nossa mente é tão poderosa quanto a de qualquer homem e não vamos calar a boca. (E não me venham com os nomes dos gênios numa história contada por homens e de tempos em que as mulheres eram proibidas de estudar, que me dá cansaço só de ler a ignorância).
Esta semana, porém, algo aconteceu. Algo poderoso o suficiente para jogar meu ranço com 8 de março pro espaço. Algo que me arrancou da tristeza que ainda me acompanhava por conta dos assassínios. Algo que me fez sentar e escrever este texto, meio confissão, meio desabafo. Começou com muitas e muitas mulheres dizendo nas redes sociais que nada havia para comemorar. Continuou com a recusa das flores e a justa indignação com as campanhas de “homenagem” que mais parecem uma piada de mau gosto. Completou com uma aluna linda e sorridente me mostrando orgulhosa os cartazes que seriam colados pela cidade, conscientizando que a violência, além das cifras, tem nome, rosto e dor. Terminou com as postagens desta noite nas redes sociais e a certeza de que não se vai calar a boca. Nunca mais. E que todo o terror e o medo só servirão a nos dar forças. Se o dia é incômodo, vamos incomodar. Muito.
Antes que me esqueça, é melhor dizer: Dia daS MulhereS, por favor. Somos muitas, somos várias, somos um coletivo, E NÃO VAMOS CALAR A BOCA. Aos saudosos (e eu já disse isso em algum outro texto, mas não adianta porque eles continuam a espernear): o tempo não para, mesmo com retrocessos, o mundo não voltara aos ridículos “anos dourados” ou ao século XIX. Mesmo que as trevas nos rondem. E, o melhor de tudo, tem cada vez mais gente do nosso lado. Então, é bom sair da frente!
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