Monstros e bodes expiatórios
Blog do Miro
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O passado recomenda muita cautela diante da denúncia contra a médica acusada de provocar a morte de pacientes numa UTI de um hospital que, até então, era referência em Curitiba.
Vivemos um tempo de imprensa barata, com poucos repórteres, poucos recursos e uma necessidade imensa de receitas rápidas. O caminho usual para isso é o sensacionalismo.
Custa pouco e, na medida do possível, vende muito.
Escrevi este parágrafo de advertência para informar que tenho muita dificuldade para acreditar no que tenho lido sobre este caso. Estamos falando de uma imprensa que já produziu um escândalo chamado Escola de Base – e vários outros, menos conhecidos, menos estudados, mas igualmente vergonhosos.
Admito que é terrível conviver com a hipótese – mesmo que seja apenas teórica – de que a denuncia seja verdadeira. E isso talvez seja o mais surpreendente.
Os jornais falam de uma suposta assassina ocupada em executar pacientes num dos grandes hospitais do Paraná e isso nos parece possível. Se algum veículo informasse que seus repórteres tinham avistado um disco voador na praça dos Três Poderes este fato seria tão inesperado, tão chocante, que os demais se sentiriam no dever de conferir a informação várias vezes antes de reproduzir a notícia. Mas a notícia sobre as mortes programadas naquela UTI de Curitiba, com o agravante perverso de que era preciso abrir espaço para pacientes com planos privados de saúde em detrimento de quem só utiliza o SUS, já se encaixou em nossas expectativas.
Podemos achar que é um fato moralmente inaceitável, mas, no fundo, sabemos que faz um certo sentido econômico, quando se considera o que aconteceu com a saúde publica de uns tempos para cá. Podemos achar inaceitáveis, escandalosas, mas sabemos que são possíveis e mesmo previsíveis.
Por quê?
Porque é isso mesmo que temos feito com a saúde do brasileiro. Há uma roleta russa que, todos os dias, em vários pontos do país, escolhe quem vai viver e quem vai morrer. Ela não é definida pelo acaso – como o tambor das balas de um revólver que ninguém sabe onde vai parar –, mas pela renda do paciente. Exames cancelados, máquinas quebradas, médicos que não aparecem no plantão – são formas cotidianas de deixar nossos pacientes entregues à própria sorte.
Há uma década, assistíamos a greves de médicos, enfermeiras e demais funcionários da rede pública. A notícia, no Brasil atual, são greves de médicos da rede privada. Ou seja: mesmo usufruindo de regalias crescentes, os planos de saúde não conseguem remunerar seus profissionais à altura de suas responsabilidades. Isso não ocorre por acaso.
Em 2007, formou-se uma aliança sem escrúpulos nem dores na consciência entre a oposição conservadora e o ideário monetarista de boa parte dos veículos de comunicação. O objetivo era impedir que o Senado mantivesse a CPMF, instrumento que garantia perto de 40 bilhões de reais para o SUS. Um sistema que já apresentava imensas carências e sofria desvios permanentes por parte de outras áreas do governo com fome de recursos – além de apetites nem sempre republicanos – tornou-se uma simples lembrança diante de um sonho de saúde publica de qualidade rascunhado na constituição de 1988. A partir de truques como o impostômetro e outros instrumentos de marketing, muitos brasileiros foram convencidos de que haviam derrotado aquele Leviatã corrupto e gastador chamado Estado.
Volte aos jornais daquele tempo e constate: bilhões de reais foram cortados da saúde pública – e teve gente que soltou fogos e estourou champagne, numa alegria tão intensa que é difícil separar a ideologia conservadora, privatizante, do interesse publicitário num mercado milionário.
O saldo é uma guerra universal de cidadãos que disputam leitos, médicos e medicamentos numa luta desesperada pela vida.
Em seu livro “O Mal Ronda a Terra”, o historiador Tony Judt recorda que foi a construção de um amplo Estado de Bem-Estar social que deu solidez aos regimes democráticos da Europa no pós-guerra, afastando o ressentimento que está na origem do fascismo. Isso porque a classe média percebeu que tinha muito ganhar em troca dos impostos que entrega ao governo.
Não sei se descobrimos um monstro no hospital de Curitiba. Mas, com certeza, apareceu um grande bode expiatório.
O passado recomenda muita cautela diante da denúncia contra a médica acusada de provocar a morte de pacientes numa UTI de um hospital que, até então, era referência em Curitiba.
Vivemos um tempo de imprensa barata, com poucos repórteres, poucos recursos e uma necessidade imensa de receitas rápidas. O caminho usual para isso é o sensacionalismo.
Custa pouco e, na medida do possível, vende muito.
Escrevi este parágrafo de advertência para informar que tenho muita dificuldade para acreditar no que tenho lido sobre este caso. Estamos falando de uma imprensa que já produziu um escândalo chamado Escola de Base – e vários outros, menos conhecidos, menos estudados, mas igualmente vergonhosos.
Admito que é terrível conviver com a hipótese – mesmo que seja apenas teórica – de que a denuncia seja verdadeira. E isso talvez seja o mais surpreendente.
Os jornais falam de uma suposta assassina ocupada em executar pacientes num dos grandes hospitais do Paraná e isso nos parece possível. Se algum veículo informasse que seus repórteres tinham avistado um disco voador na praça dos Três Poderes este fato seria tão inesperado, tão chocante, que os demais se sentiriam no dever de conferir a informação várias vezes antes de reproduzir a notícia. Mas a notícia sobre as mortes programadas naquela UTI de Curitiba, com o agravante perverso de que era preciso abrir espaço para pacientes com planos privados de saúde em detrimento de quem só utiliza o SUS, já se encaixou em nossas expectativas.
Podemos achar que é um fato moralmente inaceitável, mas, no fundo, sabemos que faz um certo sentido econômico, quando se considera o que aconteceu com a saúde publica de uns tempos para cá. Podemos achar inaceitáveis, escandalosas, mas sabemos que são possíveis e mesmo previsíveis.
Por quê?
Porque é isso mesmo que temos feito com a saúde do brasileiro. Há uma roleta russa que, todos os dias, em vários pontos do país, escolhe quem vai viver e quem vai morrer. Ela não é definida pelo acaso – como o tambor das balas de um revólver que ninguém sabe onde vai parar –, mas pela renda do paciente. Exames cancelados, máquinas quebradas, médicos que não aparecem no plantão – são formas cotidianas de deixar nossos pacientes entregues à própria sorte.
Há uma década, assistíamos a greves de médicos, enfermeiras e demais funcionários da rede pública. A notícia, no Brasil atual, são greves de médicos da rede privada. Ou seja: mesmo usufruindo de regalias crescentes, os planos de saúde não conseguem remunerar seus profissionais à altura de suas responsabilidades. Isso não ocorre por acaso.
Em 2007, formou-se uma aliança sem escrúpulos nem dores na consciência entre a oposição conservadora e o ideário monetarista de boa parte dos veículos de comunicação. O objetivo era impedir que o Senado mantivesse a CPMF, instrumento que garantia perto de 40 bilhões de reais para o SUS. Um sistema que já apresentava imensas carências e sofria desvios permanentes por parte de outras áreas do governo com fome de recursos – além de apetites nem sempre republicanos – tornou-se uma simples lembrança diante de um sonho de saúde publica de qualidade rascunhado na constituição de 1988. A partir de truques como o impostômetro e outros instrumentos de marketing, muitos brasileiros foram convencidos de que haviam derrotado aquele Leviatã corrupto e gastador chamado Estado.
Volte aos jornais daquele tempo e constate: bilhões de reais foram cortados da saúde pública – e teve gente que soltou fogos e estourou champagne, numa alegria tão intensa que é difícil separar a ideologia conservadora, privatizante, do interesse publicitário num mercado milionário.
O saldo é uma guerra universal de cidadãos que disputam leitos, médicos e medicamentos numa luta desesperada pela vida.
Em seu livro “O Mal Ronda a Terra”, o historiador Tony Judt recorda que foi a construção de um amplo Estado de Bem-Estar social que deu solidez aos regimes democráticos da Europa no pós-guerra, afastando o ressentimento que está na origem do fascismo. Isso porque a classe média percebeu que tinha muito ganhar em troca dos impostos que entrega ao governo.
Não sei se descobrimos um monstro no hospital de Curitiba. Mas, com certeza, apareceu um grande bode expiatório.
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