MULHERES VIOLADAS
25/AUG/2015
Jornalista brasileira registra o 'horror' de uma caminhada de duas horas
Jornalista faz experimento e sofre humilhação e assédio por duas horas andando em Teresina. Experiência filmada com câmera escondida estimula a reflexão sobre o machismo de todos os dias
por Sávia Barreto,
O Olho / Teresina-PI
Eram 10h36 de uma manhã de sábado. Teresina, quente, tão quente, que não sei se suei apenas de calor ou de terror. Vestida de uma calça jeans e uma blusa preta, andei só e calada, olhando preocupada, muitas vezes, para os lados e sem o sorriso que pouco antes eu distribuía aos meus colegas de redação (vídeo abaixo).
Duas horas e pelo menos 15 assédios depois sinto bolhas nos pés e dor na alma: o machismo de todo dia, assim, filmado e legendado, parece que expõe mais as vísceras de uma sociedade desigual em gêneros, onde a mulher está vulnerável a assobios, olhares e expressões sussurradas por desconhecidos como “gostosa”, “bundinha” e “delícia”.
Eram 10h36 de uma manhã de sábado. Teresina, quente, tão quente, que não sei se suei apenas de calor ou de terror. Vestida de uma calça jeans e uma blusa preta, andei só e calada, olhando preocupada, muitas vezes, para os lados e sem o sorriso que pouco antes eu distribuía aos meus colegas de redação (vídeo abaixo).
Duas horas e pelo menos 15 assédios depois sinto bolhas nos pés e dor na alma: o machismo de todo dia, assim, filmado e legendado, parece que expõe mais as vísceras de uma sociedade desigual em gêneros, onde a mulher está vulnerável a assobios, olhares e expressões sussurradas por desconhecidos como “gostosa”, “bundinha” e “delícia”.
O EXPERIMENTO
Tirando o microfone escondido na bolsa, usei o tipo de roupa que eu e milhares de teresinenses (incluindo as mães, filhas e irmãs dos meus assediadores) usamos todos os dias para ir à rua. Meu produtor caminhava à frente, sempre a alguns passos de distância, permitindo me filmar com uma câmera escondida acoplada em sua mochila.
Vídeo:
Mesmo acompanhada de um produtor e do motorista que compõem a equipe do O Olho, tive a sensação de leve desamparo por estar “sozinha”, sujeita aos assédios dos quais eu fugia sempre que precisava estar em algum local público, passando por homens.
Meu temor não era motivado por me considerar gostosa, linda e estonteante (porque não sou e porque mesmo uma mulher que é, não merece receber nenhum tipo de agressão verbal e sexual), mas porque basta ser mulher, estar andando sozinha nas ruas, que quase prontamente alguns homens sentem-se no direito de avaliar a forma física e até de fazer convites sexuais.
Lá está você pagando o plano de saúde da sua mãe no Centro da cidade, quando alguém que você nunca viu, e que sequer cruzou os olhos, alheio aos seus problemas e vontades, grita: “Vamos lá em casa delícia?”. Não é um convite, é uma invasão.
A “CARCAÇA” QUE VESTIMOS PARA IR À RUA
Antes de sair à rua, é preciso vestir, além da roupa, um outro acessório, quase invisível, mas essencial se você for mulher: uma expressão fechada, de quem não quer conversa. Nós, mulheres, costumamos mantê-la enquanto temos que perambular por espaços públicos, principalmente se estivermos sozinhas e houverem homens desconhecidos por perto.
É tolhendo pequenas liberdades diárias femininas, inclusive a de sorrir e se vestir como bem entender, que o machismo vai trancando as mulheres em calabouços pisicológicos.
“Não olhe para os lados, evite passar perto de homens, se falarem algo sobre seu corpo, não responda”. Esse não é um ensinamento passado verbalmente de mãe para filha, ou entre amigas. É um comportamento quase intrínseco à quem pertence ao sexo feminino no mundo ocidental. Tanto faz se você está numa pequena e quente capital no Nordeste brasileiro, ou na fria Nova York norte-americana.
Inspirada em um experimento realizado em Nova York por uma atriz de uma ONG que registrou mais de 100 comentários de assédio masculinos em um vídeo filmado durante uma caminhada de dez horas pelas ruas de Manhattan, resolvi fazer o mesmo teste em Teresina, andando por ruas do Centro e da zona Sul por cerca de duas horas durante um sábado pela manhã.
AGRESSÃO VERBAL: “B******** GOSTOSA”
É quase meio-dia. Passo por vários homens na porta de um bar e sinto um grande alívio por ter sido apenas olhada, como se passasse por um raio-X de aeroporto, mas sem nenhum comentário verbal.
Mais a frente, ainda degustando uma tranquilidade que eu mal sabia que seria fulgaz, passo por um homem branco de uns 50 anos. Ele fala baixo, mas eu ouço: “b******** gostosa”. Gelo imediatamente, fico com as mãos tensas e tenho vontade de chorar.
Parece que volto no tempo e lembro de ter 20 anos, descer do ônibus no bairro Saci, zona Sul de Teresina, enquanto caminho várias quadras até minha casa. Também era meio-dia e eu vinha da Universidade Federal do Piauí, onde cursava Ciências Sociais. Aquele caminho era comum para mim, e quase todo dia eu o fazia intercalando ônibus e longas caminhadas até minha casa.
Naquele dia, há sete anos, um homem pára, pergunta as horas, eu olho para o relógio e antes de responder ele coloca a mão debaixo da minha saia, fala “b*********” e sai correndo. Fico atônita. Ainda tenho forças para gritar enquanto ele corre para a outra rua: “Infeliz, maldito”, falo bem alto com a revolta, humilhação e ódio engasgados.
Chego em casa me culpando por ter respondido a um estranho na rua. Eu era jovem demais para saber que a culpa não era minha. Só muitos anos depois consigo contar essa história para meu noivo, amigos e amigas.
As mulheres, quando ouvem, solidarizam-se imediatamente e passam a relatar também suas histórias. S.R., uma amiga jornalista, por exemplo, conta que chegou a ameaçar com pedras um homem que a assediou nas ruas a chamando de “gostosa”. Os homens, por outro lado, ouvem a mesma história e acabam rindo. Acham que é apenas uma anedota. Não é. Violência sexual não tem graça.
COMO SE SENTIR UM “NADA”
Logo eu, que me considero uma jovem mulher de 27 anos, empoderada, firme, forte (quase sempre), me senti um “nada”. Ocupo um cargo de chefia em um universo onde 80% dos colegas de profissão em posição de comando são homens. Não choro fácil e não abaixo a cabeça porque alguém não gostou de algo que fiz ou disse. Na rua, porém, eu baixei.
Quando passava por grupos de homens, tentava instintivamente atravessar a rua e ficar o mais longe possível deles, mesmo sabendo que minha missão nessa reportagem era seguir em frente e registrar caso fosse importunada.
Homens bem arrumados, homens desarrumados, mais novos, mais velhos, brancos, negros, mulatos. Não há um perfil para o assediador. Em comum, a sensação de impotência. No assédio, ficou claro para mim, há uma relação de poder em que se tenta colocar as mulheres em uma posição submissa.
Na rua, dificlmente encaro alguém, olho nos olhos, nada que possa ser interpretado erroneamente como um “convite”. Percebo nas mulheres próximas a mim, uma espécie de solidariedade quando tenho que passar por grupos de homens. Uma troca de olhares assustados antecedem meus passos, como se me perguntassem: “Menina, tem certeza que vai por aí?”.
Sim, eu poderia responder, retrucar, e algumas vezes já fiz isso na rua (quando estava perto de outras pessoas a quem poderia recorrer para manter minha segurança). O medo de ser seguida e (mais) agredida é ainda maior, e na maior parte das vezes as mulheres se calam já que muitos homens, ao ouvir um “não”, se revoltam, xingam e partem para a violência.
Quando a experiência chega ao fim, me sinto exausta. Não pelos calos no pé ou pela roupa quase ensopada de suor. O que cansa é todo o desgaste emocional de sentir medo e vulnerabilidade por ser mulher.
Um exemplo disso foi retratado em 2012, quando uma jovem belga de 25 anos decidiu gravar o que ouvia dos homens enquanto caminhava pelas ruas de Bruxelas – e principalmente de sua vizinhança, em um bairro pobre da cidade. O resultado foi o documentário Femme de la Rue (Mulher da Rua, em tradução livre). Um dos homens chega pelas suas costas, dizendo que ela é linda. Outro, simplesmente a cruza na calçada, vira o rosto em sua direção e a chama de “vadia”.
COMENTÁRIOS ABUSIVOS NÃO SÃO CANTADAS
Comentários sexuais abusivos e ameaçadores não são cantadas. Paquerar alguém pressupõe permissão, reciprocidade. A chave está em uma palavra: consentimento. Assédios sexuais em locais públicos são um problema social. Não tem a ver com “fulano de tal” que é grosseiro, ou aquele outro indivíduo que é machista. Não são casos isolados.
Cada “fiu-fiu” e “meu bem” direcionados à mulheres na rua que não são conhecidas de quem profere o “elogio” é, na verdade, apenas mais um sintoma de uma cultura que incentiva e considera a misoginia (a repulsa, desprezo ou ódio contra às mulheres) algo inofensivo.
E mesmo essa sendo minha opinião pessoal, em um texto assinado por mim contando uma experiência pessoal com todos os viés decorrentes dela, não estou só nessa ideia. Pesquisa divulgada em 2013 aponta que 83% das mulheres brasileiras não gostam das cantadas de rua. A pesquisa feita pelo site Olga, aponta que quase oito mil mulheres responderam o questionário elaborado pela jornalista Karin Hueck, e 99,6% relataram já terem sofrido assédio na rua.
“A gente acha que o machista e o assediador é esse homem sem rosto, esse homem desconhecido que abusa das mulheres nas ruas escuras. Não é. Esses assediadores são pais, são filhos, são profissionais competentes que estão mais perto do que a gente imagina. […] Por quê? Porque o assédio é legítimo culturalmente. Ele é entendido como algo que faz parte do homem. Ele é entendido como algo bom, como flerte. Mas não é”, relata a jornalista Juliana de Faria em sua palestra no TED São Paulo.
Ela é criadora de uma página no Facebook chamada “Chega de Fiu Fiu”, que expõe, entre outras situações, atos que as mulheres deixam de fazer por conta do assédio. Um exemplo disso é que sair de casa vestindo o que quiser, independente do destino e do meio de transporte escolhido, ou então olhar quando alguém lhe chama na rua.
“Ah mas eu sou homem e adoro quando uma mulher me ‘elogia’ na rua”, pode argumentar um. A diferença é que crimes sexuais contra mulheres são estratosfericamente maiores do que em relação aos homens. Numericamente, temos motivos para temer.
É possível, sendo homem, ouvir um “elogio” sem medo de ser perseguido, seguido ou até mesmo violado contra a própria vontade – como ocorre com muitas mulheres.
Em outubro de 2013, a estudante Anne Melo, chegou a ser presa por agentes da Tropa de Choque após ser chamada por um dos policiais de “gostosa”, durante o protesto realizado no centro do Rio de Janeiro.
Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o momento em que a jovem foi detida sob acusação de desacato. Segundo a estudante relatou, depois de receber o suposto “elogio” de um PM que estava na garupa de uma moto do Choque, ela respondeu ao policial de forma “agressiva”. Terminou presa por não ter aceitado a “gracinha” proferida por uma figura de autoridade.
“ASSEDIE A SUA MÃE”
Uma campanha (relembre aqui) realizada pela empresa Everlast do Peru, selecionou homens que, constantemente, assediavam mulheres na rua e localizou suas mães. Decidindo por participar da campanha, elas foram produzidas com acessórios como perucas e vestimentos tornando-as mais jovens e quase irreconhecíveis.
Resultado: foram alvos de cantadas dos próprios filhos. Ao descobrirem a real identidade de quem eles estavam cantando, os assediadores pediram desculpas e alegaram arrependimento e constrangimento. A pergunta que não quer calar: homens que assediam mulheres gostariam que suas mães ou filhas fossem assediadas da mesma forma?
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