terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O episódio do artigo deplorável...


O significado do ignóbil artigo de Paulo Sant’Ana



Sul 21 - Vinícius Wu




Há uma relação sutil – mas articulada e profunda – entre o desprezível artigo de autoria de Paulo Sant’Ana, publicado na Zero Hora de 29/12/14, a ainda recente violência cometida contra o Goleiro Aranha, do Santos, o incêndio no CTG de Santana do Livramento, as ofensas ao arbitro Marcio Chagas e outros episódios de racismo e intolerância ocorridos no Rio Grande do Sul nos últimos meses. Não se tratam de episódios isolados, eles se comunicam. São o sub-produto de uma lógica cultural, legitimada por setores da grande mídia, políticos conservadores e representantes de uma parcela decadente da elite intelectual local. Ela não representa o conjunto da sociedade gaúcha, naturalmente, mas tem força suficiente até mesmo para influenciar disputas eleitorais. Compreender esse processo é fundamental para refletirmos sobre o futuro do estado.

A influência positivista na formação política e cultural do Rio Grande do Sul cristalizou na tradição política local uma tendência à constante interpretação e reinterpretação da história e dos diversos aspectos que compõem o mito fundador do povo gaúcho. As forças políticas que disputam a hegemonia no estado, até hoje, confrontam interpretações distintas a respeito de uma origem mítica sob a qual se assenta o imaginário do povo riograndense. Essa é uma característica singular da disputa política no estado.

Historicamente, a construção do imaginário, em qualquer comunidade de cidadãos, tende a se tornar objeto de uma disputa entre as diferentes visões de mundo que se confrontam em um determinado território. Como observa José Murilo de Carvalho, é por meio do imaginário que se pode acessar as esperanças e os medos de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades coletivas, seus adversários e seus objetivos comuns. Os símbolos, os mitos de fundação, os rituais de um povo são peças chaves à compreensão de qualquer sistema de poder.

Relações de dominação e controle podem encontrar na manipulação do imaginário um suporte decisivo ao projetar no inconsciente coletivo a preservação de interesses e cristalizar sensações de insegurança e medo. O Rio Grande do Sul vive intensamente essa disputa pelo imaginário local.

Desde cedo, uma parcela das elites econômicas locais buscou absorver essa dimensão da disputa política, visando assegurar, para si, o monopólio da interpretação da história e da cultura gaúcha. Há diversos autores que debatem essa questão e não convém aqui discorrer demasiadamente sobre esse processo. O que importa, de fato, é a constatação de que há uma evidente tentativa de apropriação da narrativa histórica a respeito da identidade gaúcha, que se articula com certas estruturas de dominação, cuja legitimação repousa sobre um pretenso monopólio do discurso sobre a tradição.

Essa narrativa, para afirmar sua hegemonia, precisa aniquilar os discursos alternativos; ela se inclina à uniformização, ao sufocamento das diferentes possibilidades de interpretação da história do povo gaúcho. Exatamente por isso, os Lanceiros Negros, que poderiam servir a uma profunda reorganização das bases sob as quais a historiografia nacional aborda o tema da luta pela abolição, são sistematicamente negligenciados pelo discurso oficialista conservador. Engana-se quem acredita que esse é um debate meramente acadêmico. Há implicações diretas sobre a disputa política local, sobre o tema da propriedade da terra no estado e sobre a legitmidade de políticas de afirmação do direito dos negros gaúchos. A luta dos quilombolas nos informa o quanto esse tema é atual.

O Rio Grande do Sul, a exemplo do restante do Brasil, é um território de encontro de diferentes etnias, idiomas, culturas, práticas comunitárias e simbologias. A anulação dessa diversidade é uma estratégia deliberada do conservadorismo político, que, ao anular, a diversidade cultural, pavimenta o caminho para anular a também a diversidade da cidadania.

Felizmente, a ação uniformizadora dos grupos econômicos dominantes sempre foi objeto de contestação e de uma resistência política intensa, que foi capaz de afirmar no imaginário riograndense o lugar dos “de baixo”, apesar das evidentes tentativas de anulação. A força da cultura afro-brasileira, a obstinação de sua religiosidade, incrustou, de forma irreversível, a presença negra na mitologia gaúcha.

O associativismo, a cultura da cooperação, em grande medida, herdada do protestantismo sobreviveu no seio das comunidades de imigrantes, colonos e povos aqui instalados para extravasar seu componente transformador em uma estrutura política peculiar, responsável por uma cultura de participação invejável.

O PT gaúcho foi buscar – talvez inconscientemente – nessa tradição associativista, a energia impulsionadora de um dos experimentos democráticos mais arrojados que se tem registro no Brasil do século XX, o Orçamento Participativo. Essa é a riqueza transformadora do povo gaúcho contra a qual se batem os conservadores, que buscam tomar para si o monopólio da narrativa sobre a formação do Rio Grande.

Os episódios recentes – do goleiro Aranha ao incêndio do CTG e, agora, o abjeto artigo de Paulo Sant´Ana – nada mais são do que a sequencia dessa longa disputa pelo imaginário, que ainda opõe dominantes e dominados, oprimidos e opressores, monopólios da informação e vozes que defendem a verdadeira liberdade de expressão.

Sim, minha gente – gostemos ou não – é tudo disputa política. Ao propor assertivas do tipo “não somos racistas” ou “isso é natural num jogo de futebol”, certos mandaletes do conservadorismo mandam o seu recado à turba: – não se metam a rediscutir nossa história! Deixem nossos representantes no parlamento seguir dizendo que índio, negro, gays e todo o resto são “tudo o que não presta”. Afinal, quem não presta não tem direito. Deixem o velho e consagrado (sic) colunista discorrer sobre suas inúteis impressões a respeito do Uruguai. Não vamos discutir o racismo, esse ente abstrato, que ninguém vê.

Sigamos jogando pra debaixo do tapete as irrupções de ódio e deixemos, também, que políticos e certos “formadores de opinião” permaneçam aproveitando-se dele para angariar votos, audiência e prestigio social.

O episódio do artigo deplorável se relaciona com o episódio do goleiro Aranha, que por sinal o mesmo colunista fez questão de relativizar na oportunidade. Era visível que estava em jogo, na ocasião, muito mais do que a luta contra o racismo nos estádios. Estamos diante de uma disputa decisiva pelos direitos fundamentais de amplas parcelas da sociedade. Os arautos do atraso querem negar nossos déficits de cidadania e democracia, afirmando que tudo é natural. Para eles, não precisamos de políticas públicas que revertam desigualdades, não há a necessidade sequer de Estado. Vamos cortar tudo: secretarias, investimentos, políticas sociais etc. Basta valorizar a “história” e a “grandeza” do Rio Grande, sem falsas polêmicas. Afinal, não somos racistas, não é mesmo?

Por fim, não espere jamais ninguém por aí se declarar racista. E haverá mil justificativas para o desprezível artigo. Mas tenha certeza: a negação – do papel do Estado, do racismo, das desigualdades etc. – será o caminho daqueles que pretendem alimentar a desigualdade, o racismo e a intolerância nestas terras por muitos e muitos anos.


.oOo.



Vinícius Wu é historiador pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)..



____________________________


Abaixo, o artigo de plástico


Paulo Sant'Ana: o céu de Punta
O colunista escreve aos domingos em ZH
Atualizada em 29/12/2014 | 05h3329/12/2014 | 05h33


Punta del Este é um paraíso encravado no inferno do Uruguai.

Punta del Este foi erguida pelos argentinos para gozar as delícias da praia, a delicadeza do trânsito e, principalmente, a vantagem enorme de não conviver com os uruguaios. Há gente de todo o mundo em Punta, menos uruguaios. Por isso, os argentinos se refugiaram lá.

***

Mas, aos poucos, os argentinos estão cedendo terreno em Punta del Este para os brasileiros, em breve haverá mais brasileiros em Punta do que argentinos.

É que as sucessivas crises financeiras que assolaram a Argentina pós-Perón foram empobrecendo os portenhos e eles passaram a vender suas casas e apartamentos em Punta del Este.

***

Não vou a Punta del Este por sua beleza natural e arquitetônica, que é indiscutível. Vou por dois motivos: os cassinos e os pêssegos.

São os pêssegos mais deliciosos do mundo, os de Punta, mais doces que as tâmaras do Líbano e mais suculentos que as laranjas de Taquari.

Pena que os pêssegos de Punta não dão nas quatro estações. Mas na única estação que vicejam já me bastam para comer centenas deles em apenas 60 dias.

Não é preciso dizer que tanto o Oceano Atlântico quanto o Rio da Prata, que banham as duas margens da península em Punta, têm águas geladas, nem sei como alguns turistas se atrevem a mergulhar nelas.

Se Punta del Este tivesse as águas das suas praias quentes como as de Jurerê, seria a cidade mais frequentada do mundo.

Mas a água é gelada, nem pinguim conviveria com ela.



Mas as ruas e avenidas de Punta são limpíssimas, arejadas por árvores inúmeras e têm um trânsito pacífico e convidativo como não há igual em nenhuma cidade do planeta.

Eu nunca vi um acidente de trânsito em Punta del Este. Dizem que já houve, mas eu nunca vi. É de admirar isso, afinal é estreita a península, mas acontece que o trânsito só é intenso no verão. No inverno, parece trânsito destinado exclusivamente aos pedestres, tão suavemente se comportam os motoristas em Punta.

***

Finalmente, é incrível, mas não há sequer um negro em Punta del Este. A 150 quilômetros de Punta, em Montevidéu, há milhares de negros.

Mas em Punta nenhum empregado, nenhuma empregada doméstica negra, nem camareiras de hotel.

Foi feita em Punta uma segregação racial pacífica e não violenta.

Há mais negros na Dinamarca e na Noruega do que em Punta del Este.

Ou melhor, não há sequer um só negro ou uma só negra em Punta.

Nenhum comentário: