domingo, 14 de dezembro de 2014

Quando a pobreza não incomoda mais... basta virar a outra face


A cômoda desigualdade naturalizada





Por Clemente Ganz Lúcio, no site Brasil Debate:



“Passa mal a terra, de lestos males presa

Onde se acumula a riqueza e declinam os homens.”

Oliver Goldsmith, The Deserted Village (1770). Citado por Tony Judt, “Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”

Para além do medo e da insegurança que pairam sobre a vida moderna, cresce a sensação de que há algo que segue mal. O que soma diminui e o que é mais nos faz menor! Cresce a desumanização no processo civilizatório. O trabalho urgente de reflexão complexa perde espaço para instantaneidades vaporizadas de um clique.

No pós-guerra (meados dos anos 1940), acelerou-se o processo que, no Ocidente, ocorria desde meados do século 19, de redução das desigualdades. Como escreveu Tony Judt, em Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos:

“Graça ao imposto progressivo, subsídios estatais para os pobres, fornecimento de serviços sociais e garantias contra infortúnios mais severos, as democracias modernas libertavam-se dos extremos da riqueza e pobreza.”

As sociedades foram incorporando à cultura econômica, social e política a intolerância à desigualdade, para a qual desenvolveram, como antídoto à insuficiência privada, os amplos sistemas de seguridade, proteção e promoção social.

Acreditou-se que era possível, progressivamente, avançar nesse caminho de redução das desigualdades, sem recuos, pois a democracia sustentaria o percurso e os resultados alcançados. Ledo engano!

Desde os anos 1970, o movimento de redução da desigualdade se inverteu em diferentes países. Como registra Judt, a título de exemplo, em 1968, o diretor-geral da GM recebia como remuneração e benefícios o equivalente a 66 vezes o salário médio do peão da fábrica. Em 2005, estima-se que essa equivalência saltou para 900 vezes! Que produtividade!

Estudo recente divulgado pela Oxfam revela que atualmente a desigualdade segue crescendo. A comparação da evolução da riqueza nos países que compõem o G20 indica que, no último ano, a riqueza desses países aumentou em 17 bilhões de dólares, 1/3 apropriada por 1% dos mais ricos, o equivalente a 6,2 bilhões de dólares.

Outro exemplo: nos EUA, no início da década de 1980, os 1% mais ricos se apropriavam de 8% da renda; em 2012, essa participação subiu para 19%. A Oxfam estimou que a evasão fiscal nos países em desenvolvimento promovida pelas grandes empresas é da ordem de 100 bilhões de dólares por ano, recursos suficientes para escolarizar todas as crianças do mundo quatro vezes!

A desigualdade é um fenômeno complexo de disparidades de renda e riqueza, de poder, de oportunidade, de condições, observada entre homens e mulheres, entre negros e não negros (ou com outro recorte racial ou populacional), entre países; entre continentes, entre regiões dentro dos países, entre os que vivem no centro e na periferia das cidades, entre o rural e o urbano, contra os deficientes, contra os povos indígenas.

A lista segue e é longa. Como insiste Judty: “A desigualdade é corrosiva. Ela apodrece as sociedades a partir de dentro… O legado da criação da riqueza não regulada é realmente amargo.

Será verdade que processos de redução da desigualdade levam as sociedades a quererem reduzi-la ainda mais? O processo de concentração da riqueza torna-a invisível ou uma “condição divina e natural da vida”. A subjetividade coletiva do mal-estar tem causa!

O desafio é descortinar as ilusões do crescimento, da prosperidade e da geração de bem-estar material.

Primeiro, porque o bem-estar material não é homogêneo (há enormes desigualdades de condições, capacidades e oportunidades); segundo, porque bem-estar material não conduz, necessariamente, à qualidade de vida; terceiro, porque bem-estar material e qualidade de vida estão predominantemente em desacordo com o equilíbrio ambiental; quarto, porque o bem viver é um paradigma que requer outro equilíbrio entre bem-estar material, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental.

Recolocar a centralidade da igualdade de oportunidades, condições e capacidades para todos, ampliar os limites da regulação econômica dos mercados, qualificar o debate público sobre as escolhas coletivas e construir unidade em torno dessas questões são algumas das nossas tarefas!

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