Por falta de recursos, albergue para 100 pessoas em situação de rua pode fechar
SUL 21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Luís Eduardo Gomes
Cleiton não conheceu os pais. Foi criado pelos avós, em Pelotas. Aos 12 anos, perdeu a avó. Quando seu avô conheceu outra mulher, saiu de casa. Sem contato com parentes, o encaminhamento que recebeu foi o das drogas e o das ruas. Naturalmente, também o do crime.
Aos 39 anos, depois de idas e vindas, ele está há seis anos sem passagem pela polícia. Trabalha em uma das obras do Zaffari em Porto alegre. Há mais de um mês, tem carteira assinada como pedreiro, mas não tem onde morar. Ele é uma das mais de 60 pessoas que passaram a noite da última quarta-feira (29) no albergue noturno do Instituto Espírita Dias da Cruz.
Por falta de recursos, porém, esse teto também pode não estar mais disponível em breve. De acordo com o presidente do instituto, Eder Cardoso, os altos custos de manutenção do albergue estão quase inviabilizando que ele permaneça aberto.
Segundo números fornecidos pela instituição, o custo total do albergue é de R$ 56.530,26 por mês. O convênio com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão da prefeitura de Porto Alegre, repassa R$ 28.262,40 mensais, valor que não cobre a folha de pagamento dos 12 funcionários contratados especificamente para o albergue, R$ 33.817,26.
Cleiton não quis pousar para fotos| Foto: Guilherme Santos/Sul21
Cardoso afirma que, frequentemente, a entidade deve se virar para não fechar no vermelho. Como a maioria das roupas doadas para a instituição é feminina – ele estima que 90% – e a maioria dos albergados são homens, ou não são o tipo de peça que os albergados precisam, a casa faz rotineiramente brechós, bazares e feirões com as peças para arrecadar fundos. Mas, apesar de constituir uma fonte de recursos importante, isso não é suficiente para cobrir o déficit mensal com o albergue, obrigando a casa a recorrer a doações, carnês e mensalidades dos associados.
O problema é que o albergue é apenas um dos serviços oferecidos pelo instituto. Também há uma escola gratuita para 120 crianças carentes, de 4 meses a 6 anos, da região. Para ela, a instituição possui convênios com Secretária Municipal de Educação (Smed) e com o Hospital Ernesto Dornelles, mas estas parcerias também não cobrem a integridade dos custos mensais, R$ 71.425,70.
No fim das contas, estes serviços dependem do superávit do centro espírita para que as contas da instituição fecham. Contudo, até junho, o déficit geral acumulado é de R$ 12.677,12. Cardoso explica que, se tiver de optar entre manter a escola ou o albergue abertos, a instituição deverá ficar com a primeira opção.
“Do jeito que está, se não houver um aumento significativos de recursos que a gente recebe da Fasc e da comunidade, não tem como continuar com o albergue. Pode fechar no final do ano”, diz Cardoso.
Exigências inviabilizam o albergue
A primeira noite posterior ao fechamento do albergue seria a primeira em que o Dias da Cruz não atendeu pessoas em situação de rua em seus 84 anos de funcionamento.
Cardoso explica que isso ocorreria porque, depois de firmado o convênio com a Fasc, em 2009, aumentaram as exigências ao Dias da Cruz. Se antes voluntários faziam o acompanhamento dos albergados, passou-se a exigir que profissionais especializados assumissem todas as funções da casa, o que fez multiplicar a folha de pagamento.
A situação financeira, porém, ainda pode piorar muito. O Marco Regulatório das ONGs, legislação criada para regularizar o trabalho do terceiro setor e afastar entidades que agem de má fé, também aumenta as exigências de infraestrutura para albergues. Em outras palavras, dificulta a vidas das instituições, especialmente as filantrópicas.
O Instituto também abriga uma escola para 120 crianças carentes | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Quando o marco entrar em vigor – já deveria ter entrado, mas foi adiado -, o Dias da Cruz, por exemplo, terá que instalar dois elevadores de acesso. Também terá que contratar mais assistentes sociais – atualmente só tem uma para 100 pessoas – e mais funcionários. “Vai triplicar o custo”, afirma Cardoso, que ainda diz acreditar que o poder público deveria arcar com 100% ou ao menos perto disso dos custos do albergue, mas só arca com aproximadamente 43% atualmente.
Segundo a Fasc, há uma pequena diferença no repasse mensal, que seria de R$ 28.785,63. Como o convênio é renovado anualmente e reajustado de acordo com a inflação, o novo contrato, firmado em 22 de julho de 2015, deve aumentar um pouco nos próximos meses, mas não há previsão para elevação significativa do repasse – ainda que também não haja risco de o repasse ser cortado.
Caso a manutenção do albergue noturno se comprove insustentável para o Dias da Cruz, a Fasc deve procurar outra instituição para transmitir o convênio. “Se a decisão do Instituto Dias da Cruz for pelo fechamento do albergue, a Fasc deverá buscar outra parceria para executar a ação de albergue no município. O convênio deverá ser repassado a essa nova entidade, que terá que, além de atender os requisitos apontados acima, seguir o que diz a nova Lei 13.019/2014 (Marco Regulatório)”, disse a assessoria da Fasc em resposta a questionamentos do Sul21.
Albergue tem 62 vagas para homens e 38 para mulheres | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
100 vagas por noite
Todos os dias, às 19h, o albergue Dias da Cruz abre vagas para 100 pessoas – 62 homens e 38 mulheres (a população de rua da cidade é primordialmente masculina). Qualquer um pode dormir ali, desde que não esteja alcoolizado ou sob efeito de narcóticos. Às 6h30, tem que deixar o local, porque os funcionários da casa, por trabalharem no regime de 12 horas por 36 de folga, podem ficar, no máximo, até às 7h do dia seguinte.
No Dias da Cruz, os albergados recebem banho, janta e café da manhã. Para as mulheres, há berçários. Elas também ganham um enxoval completo, feito por voluntários, quando estão no oitavo mês de gravidez. Enquanto esperávamos a abertura dos portões da casa, na última quarta-feira, havia menos de dez mulheres, uma delas grávida, enquanto os homens, provavelmente, eram mais do que suficientes para preencher suas 62 vagas.
Albergadas contam com berços e brinquedos para seus bebês | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Na sala de jantar, os albergados podem ver TV. Também tem acesso a livros, que, se quiserem, podem ler até as 21h, quando as luzes são desligadas. Uma vez por semana, recebem a visita de um médico voluntário. Há um consultório odontológico todo equipado, mas há mais de ano não há dentista voluntário, então fica parado. Por falta de voluntário na parte da noite, os albergados também não conseguem utilizar os computadores do laboratório – máquinas em bom estado doadas pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e pelo Senac. Aqueles que desejam, porém, podem participar de oficinas culturais e de artesanato uma vez por semana.
Quem já passou a noite anterior no albergue, tem acesso garantido na noite seguinte. Os demais, devem esperar por vaga. Se não há, são encaminhados para outros locais da rede de apoio ou têm de passar a noite na rua.
Também há um limite para a permanência. Podem dormir até 15 noites seguidas no local. Ao chegar nesse limite, precisam passar outras 15 noites em local diferente para poderem retornar. Contudo, segundo a administração, a maioria pousa apenas duas ou três noites em sequência.
Fábio Quilomba é um desses que entra e sai a toda hora do Dias da Cruz. Em situação de rua há 9 anos, alterna duas semanas ali e duas no albergue Felipe Diehl, localizado no bairro Navegantes. Em outros dias, opta pela rua. “Quando tô chapado”, diz Quilomba, que é um dos responsáveis pelo jornal Boca de Rua, escrito inteiramente por pessoas em situação de rua.
Histórias distintas, realidades semelhantes
Como está trabalhando, Cleiton conseguiu estender sua estadia no Dias da Cruz por mais 30 dias, benefício concedido a todos na mesma situação – o instituto diz que se preocupa também com a reinserção dos albergados. Ele diz que até poderia tentar conseguir alugar algo com seu salário atual, mas, como está na fila do aluguel social, poderia perder o processo do benefício.
Antes do Dias da Cruz, porém, ele alternava suas noites entre albergues, a rua e moradias temporárias. Leva seus pertences em uma grande mochila. Na quarta, deixou no trabalho, mas temia ser roubado. Não tem contato com parentes, mas conta que, anualmente, recebe a visita de duas irmãs finlandesas, Katri e Laura, estudantes de geografia social, que conheceu quando atuava em um projeto de Hip Hop, Amizade, em Pelotas.
Luiz Augusto teve várias passagens pela polícia, mas agora espera por uma oportunidade | Foto: Guilherme Santos/Sul21
A realidade de Cleiton é semelhante a de muitos que esperavam para entrar no albergue esta semana. Pessoas que não conheceram os pais, que caíram nas drogas, que saíram de suas cidades para buscar emprego, que têm passagens pela polícia, que tentam conseguir trabalho, mas não conseguem. Como eles mesmo disseram, ninguém é santo, mas todos estão à espera de uma oportunidade.
“Todo mundo quer uma oportunidade para não fazer coisa errada”, disse Luiz Augusto, 30 anos, e desde os 16 com passagens pela rua. “Minha infância toda foi na cadeia”. Diferentemente de Cleiton, ele ainda diz se dar muito bem com o pai.
Sua última passagem foi por assalto e tentativa de homicídio. “A vítima reagiu”, afirma. Passou três anos no Presídio Central. Saiu no ano passado. Agora, diz que está muito velho para cair de novo no presídio. “Quem quer voltar para o inferno?”, questiona, acrescentando que está há três meses sem usar drogas e tentando ficar longe das más companhias.
Seu último emprego foi em Gramado, há cerca de seis meses. Estava trabalhando na montagem de um estande, mas se desentendeu com o patrão e foi mandado embora. Sem dinheiro, não tinha como pagar aluguel. Voltou para Porto Alegre para tentar uma oportunidade, mas ainda não conseguiu.
Enquanto aguarda, alterna seus dias entra o albergue e a rua. Na quarta-feira, iria tentar uma vaga no Dias da Cruz. Incerta, já que não tinha dormido ali no dia anterior. Caso não conseguisse, suas opções seriam o Viaduto da Conceição ou a galeria do Rosário. Ao se despedir, nos convidou para voltar e conhecer seu trabalho artístico. Faz casas artesanais com palitos de picolé.
O haitiano Beuna Pierra chegou há seis meses em Porto Alegre, mas ainda não encontrou lugar para morar | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Quem também espera uma oportunidade é Beuna Pierre, 33 anos, haitiano. Sem trabalho em sua terra natal, parou primeiro em Rondônia. Em Porto Alegre desde fevereiro, já está cadastrado no Sine, mas ainda não encontrou nenhum emprego e teve que dormir na rua. Diferentemente de outros estrangeiros que chegaram ao Estado nos últimos anos, Pierre não conhecia ninguém aqui. Sugiro que procure alguma associação de haitianos, pois há vários conterrâneos seus que se organizam para dividir alojamento.
Sem dinheiro
Para aqueles que estão em situação de rua, mas aguardam uma oportunidade para melhorar de vida, a janta e a cama do albergue são uma benção. Contudo, o Dias da Cruz também serve de abrigo para quem se encontra em situações diferentes.
Dirceu Bilefet, 40 anos, tem um bom emprego em uma empresa grande. É soldador na Ross Montagens de Estruturas Metálicas. Começou a semana em uma fábrica da Cherry Motors, em Jacareí (SP). Com o fim da obra, foi transferido para Porto Alegre. Dezenove horas depois, desembarcou na Rodoviária no fim da tarde de quarta. Sem dinheiro no bolso, tentou sacar no caixa eletrônico. Atrapalhou-se. Teve um dos cartões bloqueados e uma “grana não caiu”. Natural de São Grabriel, não conhece ninguém por aqui. Ficou sem ter para onde ir.
Dirceu não está em situação de rua, mas ficou sem dinheiro e precisou recorrer ao albergue | Foto: Guilherme Santos/Sul21
No dia seguinte, provavelmente teria sua situação resolvida e poderia dormir no alojamento indicado pela empresa ou até mesmo pagar por uma diária. Na Rodoviária, lhe indicaram o Dias da Cruz. Como era o albergue ou dormir na Rodoviária, optou pela primeira opção. Mas seu pouso não estava garantido, pois era o último da fila que esperava o acesso para novas entradas. Na quinta, descobrimos que Dirceu tinha conseguido acesso.
E se fechar?
Aline de Almeida Carvalho, assistente social do Dias da Cruz, diz que não gosta nem de imaginar o impacto que o fechamento do albergue teria para a população em situação de rua.
“Eu circulo na rede própria da Fasc e nos conveniados e a estrutura física para atender estas pessoas é muito melhor no Dias da Cruz e no Felipe Diehl (outro albergue que tem convênio com a Fasc)”, afirma, acrescentando que apesar de insuficiente, os albergues existentes conseguem atender a maior parte da pessoas que desejam dormir sob um teto. “O descontinuamento do Dias da Cruz levaria uma população muito maior de pessoas a dormir na rua, mas sem querer dormir na rua”.
Ela também acrescenta que o Dias da Cruz é essencial para o atendimento dessa população por se tratar do único localizado nesta região da Azenha, com possibilidade de atender Centro, Cidade Baixa, Menino Deus, etc.
Atualmente, a rede de albergues de Porto Alegre com 355 vagas ao longo do ano distribuídas entre o Dias da Cruz, o Felipe Diehl e o Albergue Municipal. Durante a Operação Inverno, 100 vagas a mais são criadas.
Caso o instituto precise realmente fechar o albergue, Cardoso diz que poderá apenas oferecer um lanche, uma janta e continuar com as doações. Apesar de ser um cenário real, prefere não ser tão pessimista e segue confiando que o quadro pode mudar. “Não vou simplesmente fechar os portões e dizer que a partir de hoje eu não recebo mais ninguém”.
Dormitório feminino tem berços | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Enquanto o Dias da Cruz abriga pessoas em situação de rua de noite, durante a dia recebe 120 crianças em sua escola | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Instituição conta com um depósito de alimentos compartilhado e bem organizado | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Albergados recebem chinelos ao chegarem ao setor de triagem | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Casa conta com consultório odontológico, mas não há dentista | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Um comentário para “Por falta de recursos, albergue para 100 pessoas em situação de rua pode fechar”
Eder Geraldo Cardoso disse:
31 de julho de 2015 às 11:51
Parabéns pela matéria Luís Eduardo Gomes e muito obrigado por sua sensibilidade.
O que a assessora da FASC deixou de informar é a grande dificuldade senão impossibilidade de outra instituição querer assumir o trabalho que o Dias da Cruz realiza. Por ser um trabalho que não visa lucro (somente lucro social), quem em sã consciência construiria ou locaria um local para abrigar 100 pessoas com um custo alto e uma receita em torno de 43% deste custo? Se fosse tão fácil assim teríamos vários albergues na cidade.
A FASC tem sido nossa parceira e o presidente Marcelo Soares não mede esforços para nos ajudar, mas não depende só dele e de sua equipe. Sabemos que a Prefeitura tem suas limitações orçamentárias e também questões políticas.
Continuaremos lutando para que esta obra social de vital importância para a comunidade não feche, mas para isso precisaremos da ajuda de todos.
Saúde e Paz.
Éder Geraldo Cardoso – Presidente do IEDC
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