Fechou os olhos tentando dormir. Não conseguia. O balanço do navio negreiro a enjoava, o corpo doía, o corte no pé latejava. Adedutu não tinha forças para nada, a não ser chorar. Onde estariam seus pequenos Taió e Caiandê? Talvez nunca mais os visse, nunca mais os abraçasse nem lhe desse o leite que agora escorria dos seus seios inchados e doloridos.
Adedutu sentiu nos lábios ressequidos o sal de suas lágrimas; soluçava. No escuro do porão apertado e fétido do navio negreiro, que se arrastava pelo oceano na noite sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez um esforço para vencer o peso das correntes que as uniam e apertou o braço de Adedutu num gesto de conforto. E de dor compartilhada pelo destino comum dos que haviam sido caçados para ser escravos em terras estrangeiras.
Adormeceu e sonhou com seu mundo e sua gente, dos quais fora arrancada para sempre. Sonhou com os dias em que, no templo, cuidava de seu deus Xangô, de quem era filha e sacerdotisa devotada. O pensamento aflito de que Xangô talvez a tivesse abandonado se desvaneceu no sonho. Teve a impressão de ouvir, através das paredes do navio, palavras de encorajamento vindas de Xangô no soar de um trovão.
O movimento das ondas, agora suave, embalava seus sentimentos, numa calmaria que lhe renovava as esperanças. Procurava recuperar em suas lembranças as coisas boas que ninguém nunca poderia lhe tirar. Seus deuses, que sua gente chamava de orixás, eram grandes e poderosos. Também haviam sofrido e se desesperado, mas nunca desistiram de ser felizes, realizados, eternos.
Adedutu também não desistiria, prometeu a si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha. Tinha orgulho de sua origem nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que venerava com desvelo sincero. Seu nome, Adedutu, significava A-Coroa-É-Paciente, ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria.
No sonho embalado pelo sobe-e-desce das ondas, Adedutu se agarrou aos orixás, que reacendiam suas esperanças. Juntou-se a eles no sonho, que não era mais um simples sonho, e reviveu com fé as aventuras dos deuses na criação do mundo, o mundo de Adedutu e dos outros africanos que, como ela, vinham sendo transportados para o Brasil naquele e incontáveis outros navios negreiros, o mundo de todos nós.
A caminho do cativeiro, Adedutu sonhou com a criação do mundo.
Trecho retirado do livro Contos e Lendas Afro-brasileiros: A criação do mundo / Prandi, Reginaldo; São Paulo; Companhia das Letras, 2007
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