Pega um dos papéis e começa a leitura, vai dizendo nomes e contando coisas que a guria não lembra, desconhece e não entende, está quieta, não sorri, nem se mexe
─ Autos do interrogatório e qualificação do processo por razões políticas do réu Virgílio Silva...
Minutos se alongam em horas.
Depois daquilo que foi lido, o Velho segue a contar as outras ocorrências que tinha notícia por ter vivido nos entreveros daqueles dias, apesar de não as ter acostumado na memória
─ Não sei muito, não era detalhista.
─ E as outras coisas?
Pede paciência a alma penada. Respira fundo sem ruídos ou afetações. Ele também foi uma figura patética daqueles dias. Pequeno e insignificante, mas, hoje, decisivo para mostrar que a vida é cheia de altos e baixos
─ Fala, Velho.
─ Calma, guria... preciso o uso da lembrança.
─ É bem assim, ensaboar cabeça de burro é perder tempo.
A guria não tem mania de paciência, nem vontade de esperar. Não esconde a impaciência que lhe sacode a cabeça para os lados. Sempre foi assim, desde que lembra, coloca os dedos na boca e se põe a roer os cantinhos da unha do dedão, depois todos os dedos da mão esquerda até chegar ao mínimo da mão direita.
─ Antes do papai sumir, um caso de polícia se tornou conhecido porque o corpo apareceu boiando nas águas. Lembro do papai comentar alguma coisa em casa. Foi sobre um tal sargento Raimundo que era tido, como ruidoso líder comunista. Depois do golpe militar...
─ Calma aí, Velho, que golpe é esse?
─ Foi um bando de gente vestida de general e muitos outros vestidos de gente boa que resolveram querer mudar o Presidente sem consultar mais ninguém, tinham do seu lado os chefes dos tanques, dos navios e dos aviões. Não teve pra ninguém, foi um passeio, mas como eu ia dizendo, o tal sujeito passou a ser considerado perturbador da ordem, em função do que foi enviado para a Ilha Presídio de Madalena, destino dos presos políticos. Após dois meses de prisão, é encontrado boiando nas águas, as mãos amarradas às costas com a sua própria camisa. Na investigação ficou provado que morreu por afogamento. Tudo indicava que durante uma assentada de tortura. O famoso caldo. Apesar das escoriações e ferimentos estarem disfarçadas pelos estragos do cadáver, as provas encontradas eram reais. Pois bem, parece que a falta de castigo desse crime fez aumentar a certeza que os apoiadores da ditadura tudo podiam. E a violência da polícia aumentou...
─ Afinal, Velho, foi golpe ou ditadura?
─ No fim dá tudo no mesmo, cacete pra todo lado.
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