sábado, 29 de maio de 2010

O Descolocado

III

Pega um dos papéis e começa a leitura, vai dizendo nomes e contando coisas que a guria não lembra, desconhece e não entende, está quieta, não sorri, nem se mexe

Autos do interrogatório e qualificação do processo por razões políticas do réu Virgílio Silva...

Minutos se alongam em horas.

Depois daquilo que foi lido, o Velho segue a contar as outras ocorrências que tinha notícia por ter vivido nos entreveros daqueles dias, apesar de não as ter acostumado na memória

Não sei muito, não era detalhista.

E as outras coisas?

Pede paciência a alma penada. Respira fundo sem ruídos ou afetações. Ele também foi uma figura patética daqueles dias. Pequeno e insignificante, mas, hoje, decisivo para mostrar que a vida é cheia de altos e baixos

Fala, Velho.

Calma, guria... preciso o uso da lembrança.

É bem assim, ensaboar cabeça de burro é perder tempo.

A guria não tem mania de paciência, nem vontade de esperar. Não esconde a impaciência que lhe sacode a cabeça para os lados. Sempre foi assim, desde que lembra, coloca os dedos na boca e se põe a roer os cantinhos da unha do dedão, depois todos os dedos da mão esquerda até chegar ao mínimo da mão direita.

Antes do papai sumir, um caso de polícia se tornou conhecido porque o corpo apareceu boiando nas águas. Lembro do papai comentar alguma coisa em casa. Foi sobre um tal sargento Raimundo que era tido, como ruidoso líder comunista. Depois do golpe militar...

Calma aí, Velho, que golpe é esse?

Foi um bando de gente vestida de general e muitos outros vestidos de gente boa que resolveram querer mudar o Presidente sem consultar mais ninguém, tinham do seu lado os chefes dos tanques, dos navios e dos aviões. Não teve pra ninguém, foi um passeio, mas como eu ia dizendo, o tal sujeito passou a ser considerado perturbador da ordem, em função do que foi enviado para a Ilha Presídio de Madalena, destino dos presos políticos. Após dois meses de prisão, é encontrado boiando nas águas, as mãos amarradas às costas com a sua própria camisa. Na investigação ficou provado que morreu por afogamento. Tudo indicava que durante uma assentada de tortura. O famoso caldo. Apesar das escoriações e ferimentos estarem disfarçadas pelos estragos do cadáver, as provas encontradas eram reais. Pois bem, parece que a falta de castigo desse crime fez aumentar a certeza que os apoiadores da ditadura tudo podiam. E a violência da polícia aumentou...

Afinal, Velho, foi golpe ou ditadura?

No fim dá tudo no mesmo, cacete pra todo lado.

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