sábado, 13 de novembro de 2010

cordeiros e altar - final

Cordeiros e Altar - final

Mauro Marques

Parece fácil fazer perguntas à mãe ou ao pai sobre a vida, a amada se ainda nos ama, aos filhos sobre as notas na escola, ao chefe sobre o que ele quer que você faça


(Apendicite...) (O senhor ta brincando...) (Não há dúvidas e está uma massa enorme que cresceu e se espalhou atingindo o ureter do seu rim direito.)

Ali, ainda parado no corredor, lembrei do médico velhinho dos cabelos brancos

(Meu filho, nós precisamos investigar esse seu apêndice.)

O senhor estava certo nas suas desconfianças. O que a humanidade doente fará quando esses homens e mulheres deixarem de existir e os computadores ficarem sem energia?

Os cordeiros serão os primeiros submetidos aos sacrifícios do altar da incompetência, indiferença e intolerância.

Chegamos ao consultório. O doutor faz seu primeiro exame físico em meu corpo. Estou deitado em uma destas camas de consultório cinzento. Toca no lado esquerdo do meu abdômen e sinto um pequeno desconforto. Com as pontas dos dedos das mãos, direita e esquerda, afunda meu lado direito

(Dói?) (Não sei doutor, mas...aiiiiii!)

Derramei meu grito de dor nas paredes brancas, manchadas de cinzentas, quando retirou muito rápido a pressão dos dedos, a dor foi total e sem contraste

(Apendicite aguda. O senhor tem mais sorte que juízo.)

Eu sou um doente culposo. Culpado. Devia ter continuado com o médico dos cabelos branquinhos. Calma, repito para mim mesmo, nós precisamos do doutor. Ao cordeiro não basta se negar subir no altar precisa ter a iniciativa de acomodado no altar de pedras, chamar o imolador

(O senhor tem algum cirurgião conhecido ou amigo?)

É isso, pensei, não tem mais volta.
Amigo? Não tenho cirurgiões amigos, tenho amigos e amigas, mas nada tão drástico, tão cortante. Com minha negativa ele retorna para sua mesa, segura o celular e faz uma chamada, acha que vai ligar para os bombeiros

(Doutor, tenho um caso de cirurgia para o senhor.)

Percebi que o doutor daquela sala estava desconfortável, no papel que desempenhou de desatento e ludibriado pelos não sintomas. Os predadores também recuam quando estão na eminência de um confronto desigual.

Passados cinco minutos, a porta do consultório se abre

(O que temos aqui?)

Outro doutor acabou de entrar, não tem como errar, basta observar a postura, o jeito de falar, o jeito de olhar – me dêem o direito de desconfiar e ser cético, cínico

(O senhor Mauro me chegou com diagnóstico de crise renal, mas a tomo mostra uma apendicite aguda na fossa ilíaca direita.)

Fez apenas uma pergunta

(Quando foi sua última refeição?)

O gosto do frango grelhado no meio-dia ainda estava guardado na memória, comemos por absoluta imposição das circunstâncias, comer também estava doloroso, mas saco vazio não para em pé

(Não tem importância, faremos a cirurgia no final da tarde.) (Até lá, o que eu faço?)

Vou ou fico? E as dores, os senhores sugerem algo, algum procedimento cirúrgico até o entardecer? Fora essas dúvidas silenciosas, esse doutor de bisturi em punho me inspirou confiança. Desde que ele entrou na sala de consultas, nós – eu e a dor – éramos o foco do seu interesse e atenção. Haviam decisões a serem adotadas que não poderíamos tomar atendendo o celular. Fazem uma coisa ou outra... cuidam do paciente ou o matam com o celular – deveriam incorporar esse item ético/prático aos juramento dos doutores. Só para os doutores, para a maioria dos médicos não é necessário. Talvez, seja uma bobagem excessiva, mas jamais vi um bombeiro combatendo o fogo de celular em punho

(Senhor Mauro, vou operá-lo por volta das 19 horas, mas agora o senhor vai dar entrada na emergência e... )

De novo? Não acredito.

(... e faremos sua baixa, por lá. Entregue esta solicitação pra menina que lhe atender.)

Obrigado, doutor bisturi. Finalmente, serei separado desta dor insuportável, sem remédios ou meias-verdades, mas a corte litigioso. Espero me dar bem.

Sai mancando em direção a emergência, na verdade, estava me arrastando, mas ainda escuto o doutor da crise nos rins dizer ao doutor do bisturi

(As imagens do senhor Mauro estão à disposição na tomografia.)

O doutor bisturi passa por nós

(Vou dar uma olhada na sua tomografia.)

Vá com Deus doutor, mas não leve o celular, pelo menos desta vez. Olhe com atenção e planeje a estratégia mais eficiente para essa escaramuça. Preciso desta vitória! Essa é uma boa luta!

A luta pela vida sempre é uma boa luta a ser travada. A luta pela saúde, educação e comida para todos é uma boa luta. O problema são as decisões tomadas no alto, lá na torre de vidro, muitas nas melhores das intenções, mas não funcionam quando as formiguinhas operárias não acreditam e não participam das decisões. Seres humanos não são formiguinhas de obediência cega.

Passamos pela primeira porta da emergência com a cara mascarada pela dor, são muitas portas por aqui

(Bom dia, em que posso ajudá-lo?)

Entregamos a solicitação do doutor bisturi e somos chamados quase que imediatamente

(Mauro Marques!)

Sou eu penso em gritar, não consigo, nem tento levantar a mão, seria um desperdício de energia e dor. Mando que a dor vá à frente, ela não obedece, está se sentindo mais forte a medida que o tempo passa, prefere entrar juntinho. Vou capengando e empurrando a maldita. Sei que vamos para o desfecho. Ela também, de repente ficou ansiosa, olho bem de frente e vejo que perdeu a arrogância, é um bom sinal

(O senhor por aqui de novo?)

É o mesmo rapaz que me recebeu ontem

(Voltei, não são pedras, mas apendicite... vou operar.)

Quanta pretensão, do jeito que estou não opero nem os botões do meu celular, em verdade vos digo, se é que tens ouvido para ouvir, vão me operar

(Não brinca!)

Eu brincando?

Ali dentro, uma senhora me reconhece do corredor da tomografia. Pergunta como estou, mas não consigo responder, ela não me escuta, apenas fala mais do que consegue ouvir. Não pode parar. Está preocupada comigo. Ela deveria estudar medicina

(Vamos lhe dar medicação pra dor e colocá-lo em uma maca, enquanto aguarda para subir ao bloco cirúrgico.)

Esse é outro médico plantonista da emergência. E ali passo aquelas horas que nos separam do que tiver que acontecer.

Até que somos avisados que chegara a hora. Não olho para os lados nem me despeço, tenho pressa de me ver livre

(Estou pronto.)

Agora estamos passando pela porta de saída da emergência. Vou deitado na maca, ela vem pendurada, vai levada de arrasto pelo chão, as vezes, não tem como ter dó e piedade, é preciso fazer

(Chegamos.)

É lindo por aqui. Tudo novinho, limpinho e brilhando. Muito higiênico. A moça que nos recebe assina uns papéis, nos dá as boas-vindas. Ela usa uma touca, um lenço sobre o rosto, apenas seus olhos negros podem ser vistos, tudo em azul.

Ela nos faz passar por uma porta. Finalmente, estamos na sala cirúrgica. Estamos encantados. A menina que quase me enlouquecera, se solta da minha mão, sabemos que não temos mais para onde ir. Ela caminha encantada, observa tudo, mas não toca em nada. Está serena. Saio da maca, pelas mãos de outros mascarados azulados, estou no altar

(Boa noite, senhor Mauro, somos os assistentes do doutor, vamos auxiliar na sua cirurgia.)

Sinto vontade de perguntar se desligaram os celulares. Bobagem, por certo, aqui dentro, como nas prisões, os celulares devem ser proibidos. Uma questão de prioridades e segurança.

Tento erguer a cabeça enquanto se afastam, são dois e bem jovens, um moço e uma moça, provavelmente médicos residentes da equipe do doutor bisturi. Espero que tão competentes quanto sejam simpáticos. Vejo que os três se reúnem para conversar, aguardam que estejamos prontos para os cortes. Eu estou... e ela, vai estar! Não temos escolha

(Boa noite, senhor Mauro.) (Boa noite.) (Sou o doutor anestesista, vou prepará-lo para a cirurgia.) (Fique na sua vontade.) (Boa sorte, senhor Mauro.) (Boa sorte... para todos.) (É isso.)

O doutor anestesista abre um braço mecânico escondido sob a cama cirúrgica. Estende o meu braço sobre aquele braço maquinal. Estou preso pelo braço. Deixo que minha esperança sobrevoe aquela sala de recortes.

Lembro de uma frase que vivemos a dizer para afastar os curiosos: a curiosidade mata. No meu caso, descontrolou a minha hibernação espiritual

(Senhor Mauro, vou iniciar...)

Ainda lembro que o vi aproximar uma agulha imensa, maior que todas que já tinham enfiado no meu braço, nestes tantos dias de dor. Merda, essa coisa de sentir dor ainda não acabou. Virei o rosto para o outro lado e me preparei para o pior. Não senti nada. O doutor anestesista começava bem o seu trabalho. A competência espanta a desconfiança.

Procurei por ela mais uma vez, para as despedidas. Estava lá, sentada num canto da sala, com medo. Não tive pena, acenei com os olhos um adeus. Sabia que apenas um dos dois sairia daquele altar. Acreditava e queria que fosse eu. Adeus. Era a noite em que a dor morreria

(O aspirador onde está?) (Aqui.) (Ok... vamos imobilizar esse braço...)

Estava de volta a minha solidão

(Senhor Mauro, vou lhe dar um ar limpinho para respirar...)

Aproximou aquela máscara uma vez, respirei fundo, afastou a máscara. Tornou a aproximar, mas dormi antes de sentir o ar limpinho pela segunda vez.

O cordeiro subira ao altar confiante que velho que se cura, cem anos dura.

Final (por enquanto)

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