Woody Allen vende Paris à meia-noite
Cristóvão Feil no Diário Gauche
As anotações de Ernest Hemingway sobre a vida em Paris nos anos vinte, do século passado, foram reunidas em uma obra que se chamou A Moveable Feast (na edição em português virou “Paris é uma festa”), lançada em 1964, portanto, três anos depois da morte do ganhador do Nobel de Literatura de 1954.
Os editores escolheram como epígrafe uma frase de Papa dita em 1950 ao seu futuro biógrafo Aaron Hotchner: “Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante”.
É de supor, portanto, que Woody Allen tenha adotado essa máxima de Papa Hemingway para escrever e dirigir o filme “Meia-Noite em Paris”. O resultado faz de fato justiça à capital da França. Uma cidade cujo planejamento urbano ocorreu ainda na segunda metade do século 19, proibindo a edificação de prédios muito altos, Paris é – há muitos anos - o destino mais visitado pelos turistas do mundo inteiro.
Woody Allen, certamente muito bem remunerado pelos interesses da municipalidade parisiense, a exemplo do que já fizera em 2008 com Barcelona, no filme “Vicky Cristina Barcelona”, agora trabalha para exaltar a deslumbrante Cidade Luz.
A promoção de grandes cidades virou um business a mais na filmografia de Allen. Fez isso em muitos filmes cujo pano de fundo era Nova York, depois, Barcelona, agora, Paris. Dizem que o próximo objeto urbano de Allen será o Rio de Janeiro. A ver. “Pagando bem, que mal tem”, haverá de pensar o cineasta nova-iorquino.
Há mais de dez anos reforça-se a tendência de promoção de metrópoles urbanas, numa grande operação de “city marketing” como que descolada de seus países. Isso iniciou em Barcelona, talvez pelo fato de haver a velha disputa nacionalista entre espanhóis (suas múltiplas nacionalidades) e catalães. Arquitetos, urbanistas e sociólogos da Catalunha conceituaram em novas bases a divulgação de suas cidades, agora em sintonia com os requerimentos da globalização neoliberal. Tal conceito procura desagregar os aspectos nacionais, políticos e geográficos, no sentido de des-historicizar seu passado, visando objetivos puramente comerciais, turísticos e sobretudo imobiliários. Entre esses autores, estão intelectuais respeitados como Manuel de Forn, Jordi Borja e o sociólogo das redes, Manuel Castells, muito incensado pelos que não o conhecem em sua total extensão. Eles decalcam as técnicas do planejamento empresarial, sistematizadas na Harvard Business School (na qual aprendizes de feiticeiras ao Paço Municipal de Porto Alegre em 2012 vão beber conhecimentos “milagrosos”). Ora, “isso implica na apropriação da cidade por interesses empresariais globalizados, implica no banimento da política, da eliminação do conflito e das condições de exercício da cidadania” (Carlos B. Vainer). Como dizem Borja e Forn: “A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se [...] em uma das funções básicas dos governos locais...”.
As instruções (briefing) recebidas por Allen foram essas: queremos reposicionar Paris na bolsa de expectivas de visitantes e usuários solventes, trate de ratificar a Paris do imaginário intelectual e artístico que todos temos, não deixemos que os banlieusard (suburbanos) predominem com suas narrativas de conflito e insurreição, não permitiremos que os magrebinos vençam a Paris branca e burguesa.
Woody Allen cumpriu à risca as determinações dos seus contratantes. Mais: cercou seu filme de graça, poesia e beleza – musical e visual. Fez um belo filme, agradável, leve, engraçado. O protagonista Gil Pender está ótimo, consegue imitar Woody Allen em detalhes deliciosos, especialmente aquele inevitável cacoete de gaguejar nervoso antes de qualquer sentença. De quebra, Allen ainda consegue debochar da direita republicana, dos “criptofascistas do Tea Party”, dos vinhos do Napa Valley, dos pedantes em geral, e dos “americanos que não saberiam viver em outro País”.
Para Woody Allen, que é um intelectual de respeito, deve ter sido fácil fazer o roteiro do filme. Bastou reler “Paris é uma festa”, do Hemingway. Está tudo lá. Inclusive o endereço de Gertrude Stein: rue des Fleurus, número 27 (quase junto ao Jardim de Luxemburgo), onde todos convergiam para compartilhar diálogos inesquecíveis, comidas, schapps de frutas, arte, quadros na parede em profusão e belas mulheres.
........................
Não é possível deixar de registrar a comilança ruidosa de pipocas na sala de cinema. Noto que se cria uma variante subcivilizada de indivíduos consumidores de espetáculos públicos. Essa gente precisa se alimentar o tempo inteiro, caso contrário pode desfalecer ou padecer algo mais grave. Indiscretos, portam - eufóricos - baldes de sua ração alimentar, mastigam o tempo inteiro e promovem ruídos que conspiram contra o silêncio e a concentração exigidos numa sala (pública) de cinema.
Por enquanto, eles consomem somente pipocas, ainda que em quantidades amazônicas. Mas, e se eles entenderem de consumir algo mais substancial, como linguiças e churrascos ao espeto?
Sendo assim, diante da inevitabilidade do barbarismo de salão, sugiro que os exibidores dividam as salas de cinema: de um lado, os cinéfilos normais, de outro, os incivilizados e eufóricos (no sentido patológico, mesmo) comedores de pipoca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário