quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Europa e os imigrantes

Governo Espanhol e tratamento aos imigrantes: “Confiscaram até os filhos de Khadija”

julho 26th, 2011 by mariafro

Confiscaram até os filhos de Khadija

Por José Palazón, Presidente da ONG Pró direitos da Infância (PRODEIN), no Toma la Palavra, Tradução: Victor Farinelli
23/07/2011


Khadija com seu filho menor (J. P.)

Talvez tenhamos em Melilla mais de 10 mil mulheres que cruzam a fronteira diariamente para trabalhar no serviço doméstico, são trabalhadoras das fronteiras, que dispõem de licença especial para exercer esse trabalho, devendo abandonar a cidade ao anoitecer. Seu estatus, por outro lado, é melhor que das outras 10 mil que também cruzam a fronteira todos os dias, para passar contrabando ou exercer outras atividades sem nenhuma regulação. Negócio puro!! São as escravas do mundo moderno!! O particular da nossa Khadija é que ela reside legalmente na Espanha, que duas de suas filhas têm nacionalidade marroquina enquanto os dois menores possuem nacionalidade espanhola e que há dois meses ela passa os dias e as noites em frente ao prédio da Prefeitura de Melilla, sem se calar, sem se submeter a ninguém, e sem medo.
Khadija sempre foi o que se esperava dela: limpa, pontual, calada, submissa, obediente, agradecida e discreta. Consciente de que qualquer outra coisa seria pior. Viu crescer suas duas meninas, nascidas em Melilla e obrigatoriamente indocumentadas, sem que pudessem ir ao colégio porque não tinham visto, algo “normal” nessa cidade. Sofreu maus tratos dos seus dois maridos durante anos, sem denunciá-los, porque ao menos, de vez em quando, traziam algum de dinheiro para sustento da família. Que outra coisa poderia fazer com quatro filhos e sua mãe doente de Parkinson, a quem também precisa atender?

Meses atrás, seu segundo marido, o espanhol com quem está casada em Marrocos mas não na Espanha, se casou com outra mulher e os abandonou… Luzes e sombras! … Já não haveria mais agressões, porém, como iria manter sua família?… Pouco depois chegou o inevitável: com seu salário de 500 euros, não pode arcar com o aluguel do apartamento onde vivia, e um dia se encontraram na rua, por decisão judicial… Na rua!!… doze anos trabalhando, criando seus filhos, aguentando a esses homens… e agora isto!

Sem saber o que havia feito mal, Khadija reuniu sua família e se dirigiu, com as malas que lhes restavam, ao Conselho de Bem Estar Social, pensando que lhes buscariam um lugar para passar a noite. Khadija não se importava em dormir na rua, mas as crianças têm somente quatro e sete anos….. Ela não sabia que no Conselho eles conheciam o seu currículo…. É a ficha de muitas mulheres que transpiram e se sacrificam para limpar até a merda que deixamos nos casarões, e não fogem da luta, além de arcar com os filhos que nós abandonamos, e sempre limpas, caladas, submissas, obedientes, agradecidas e discretas…. Era exatamente o tipo de currículo no qual se coloca a carapuça de pessoa “pícara”, ou seja: malandra, que não trabalha, que vive de esquemas, que engana para cometer fraudes e tirar proveito sem merecer…. Evidentemente, nossa Khadija, como tantas outras Khadijas, é vítima desse carapuça tão secular e interessadamente estabelecida. Carapuça que parece reger a atuação das administrações que decidem os destinos das Khadijas: majoritariamente honradas, majoritariamente submissas, majoritariamente maltratadas por seus maridos e pela administração. Majoritariamente condenadas à solitária responsabilidade sustentar a sua prole.

O Conselho ”recebeu o seu caso”, iniciaram um “período de estudos” e abriram “um expediente” para “considerar as medidas” que se poderiam tomar “como consequência da sua situação” e seu “perfil”…. Ante da urgência do caso, e como medida cautelar para evitar maiores problemas, recomendaram a ela  “que fosse viver em Marrocos” o que Khadija se negou a aceitar, porque os dois pequenos não haviam terminado o curso, porque em Marrocos eles não teriam para onde ir, e tampouco têm porquê ir. Diversas vezes insistiram na advertência que se costuma fazer a pessoas com o seu “perfil”, segundo o protocolo: teremos que lhe tirar a custódia dos seus filhos.

Isso se traduziu numa semana de abandono absoluto, de rua pura e dura sobrevivendo da caridade, cumprindo com seu trabalho apesar de tudo, levando as crianças no colégio… As crianças! Khadija lhes dizia que estavam de camping e nos primeiros dias elas acreditaram e estavam felizes. Dois meses depois, disse desconsolada que estavam na rua, porque são pobres.


Khadija e sua filha Dunia dormindo na Plaza de España, em Melilla. (José Palazón)

Durante essa semana, Khadija refletiu e decidiu lutar por seus filhos, esquecendo a submissão, a obediência, o agradecimento, o medo que supunha que deveria ter. Levando um pequeno cartaz e algumas folhas para recolher assinaturas a favor de sua causa, começou a visitar os meios de comunicação locais. Em poucos dias, conseguiu que o Conselho de Bem Estar Social enviasse a ela e sua família a uma pensão durante uma semana.

Cumprido o prazo de uma semana, foram devolvido à rua… Outra vez na rua!… Durante os dias seguintes, o Conselho de Bem Estar Social, num ato de infinito cinismo, declarou publicamente que a mulher e sua família estavam sendo devidamente atendidas. Simultaneamente, Khadija era desalojada, junto com seus filhos, da calçada em frente à Prefeitura, onde recolhiam assinaturas, poucas horas antes, havia sofrido também com a investida de policiais, que tentaram prendê-la por abandono de menores, e levar seus filho ao Juizado de Menores. A ação policial foi frustrada pela intervenção de várias associações que estavam presentes no lugar, naquele momento.

Pelo dias posteriores, a voz de Khadija se tornou um grito multitudinário, apoiado por associações e partidos políticos locais. A conselheira do Bem Estar Social, tentando lavar sua imagem, depositou em sua conta corrente a quantia de 1,6 mil euros que corresponderiam a um mês de aluguel, fiança e gastos domésticos suficientes para arcar com uma suposta casa na Rua África, em Melilla. Quando Khadija foi até realizar os trâmites para formalizar o contrato, lhe informaram que a tal moradia já estava alugada para outras pessoas e que há tempos já se havia comunicado o Conselho de Bem Estar Social que aquela casa não era para eles. Dias depois, a conselheira, em nova tentativa de desprestigiar a “mendiga briguenta”, comunicava, através dos meios de comunicação, que Khadija havia rejeitado a casa da Rua África, que lhe haviam deixado a disposição, dando a entender que lhe parecia pouco e queria exigir demais. Terminou dizendo que já não sabia como ajudá-la: tudo mentira!!!

E os 1, 6 mil euros? Essa quantia é somente a ajuda mínima concedida normalmente pela Cidade Autônoma aos desalojados, para que encontrem uma nova moradia. O valor é ridículo se consideramos o valor médio dos aluguéis e a situação atual do mercado de trabalho. Para se ter uma idéia: com uma entrada de 500 é impossível convencer um proprietário disposto a alugar uma casa. A mesma situação que vivem outras famílias despejadas que, no melhor dos casos, puderam recorrer ao auxílio-família, quando não se calam por medo ou por vergonha. A ajuda de 1, 6 mil euros aos desalojados de Melilla é inútil, inaceitável para os afetados, somente um desperdício mais da administração local. E daí? É dinheiro público!! Dinheiro que se emprega para desprestigiar a luta de uma valente mãe, que perdeu o medo e não vai deixar de lutar e trabalhar para dar o melhor que pode aos seus filhos.

Khadija está cumprindo perfeitamente com o seu trabalho. É a conselheira do Bem Estar Social quem mantém no mais absoluto abandono a todos os membros da família, abandonando também, e de forma absoluta, o que deveriam ser suas obrigações: primeiro, disponiblizar os meios para evitar a situação de risco que esta família estava sofrendo há um ano, quando Khadija passou a sustentar os filhos sem a ajuda do marido fugitivo, e depois, fazer de tudo para evitar situações extremas, como as que estão vivendo há dois meses, nas ruas da cidade.

Mas o pior dos episódios dessa trama aconteceu na semana passada. Vários policiais, que não se identificaram como tais, levaram os dois filhos de nacionalidade espanhola, e os colocaram num centro de menores, como conta o vídeo do começo do texto. Não quiseram saber de nada com a menina de nacionalidade marroquina, também menor de idade. Não comunicaram nada a ela, que foi desesperada até o Conselho perguntar onde estava os seus filhos.

Se esta ação do Conselho de Bem Estar Social tivesse acontecido em qualquer outro país da chamada “Europa civilizada” o responsável por ela não teria durado 24 horas no cargo, mas em Melilla, a responsável por isso acaba de ser reeleita como conselheira para os próximos quatro anos. Não por acaso, nessa cidade, é frequente ver os que ostentam a representação política agindo como se sentissem possuir um poder quase divino, o qual exercem de forma intransigente e absoluta, mal disfarçando o desprezo pela lei, a moral e qualquer outra circunstância que não seja a dos seus próprios interesses, a manutenção de um certo grau de apartheid, ou os negócios dos grupos de pressão transfronteiriços.

Fomos visitar a lutadora Khadija após um aviso de que seu estado havia piorado muito após a perda dos filhos. Chegamos por volta das 22h, e logo tivemos que chamar uma ambulância, porque estava num estado quase vegetativo, não conseguia falar e menor movimento lhe produzia dores por todo o corpo. Puseram uma pastilha sob sua língua, injetaram um calmante e diagnosticaram uma forte depressão por intenso estado de ansiedade. O médico disse-nos que contra isso não há pastilha que dê jeito, e que ela terá de sair por si só do fundo poço onde onde se encontra.

Com impunidade infinita!

A PRODEIN lançou recentemente uma campanha de recolhimento de assinaturas no sítio Actuable.es para que Khadija recupere os seus filhos e também que o Conselho de Bem Estar Social ponha à sua disposição os meios necessários para não estar em permanente situação de risco de exclusão social, como determina a legislação espanhola.

Nota do tradutor:

Melilla é uma pequena cidade autônoma espanhola no norte da África, dentro do território marroquino, tendo com o Marrocos sua única fronteira terrestre, e conectando-se, também, com as cidades espanholas de Málaga e Almería através de um serviço de balsas. Sua população de pouco menos de 100 mil habitantes é dividida basicamente entre espanhóis e marroquinos imigrantes.

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