sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A construção da cidadania

Como a educação inclusiva enfrentou o preconceito e as Apaes

No sábado passado, na mesa  da Livraria da Vila em São Paulo, Deborah, filha de Margarida, distribui autógrafos de seu livro de histórias infantis. Recentemente, formou-se em Magistério em Natal.
Na fila, o jovem Samuel, filho de Antônio Carlos, formado em designer de moda. Filho de Ana Cláudia, Pedro, aluno de culinária, não teve agenda para ir ao evento, assim como Bruno, filho de Rosane, também cursando educação física. Mas Vinicius, filho de Eugenia e aluno do Dante Aligheri esteve firme e atento, assim como Mariana, filha de Glória e Rogério.
Em comum, todos são portadores de síndrome de Down. E são filhos da educação inclusiva, uma luta civilizatória que ficou mais forte nos anos 90 quando um grupo de pais percebeu que o melhor caminho para a integração de seus filhos na sociedade seria através da escola regular - não em comunidades segregadas, como as das APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais).
Hoje, essa bandeira está ameaçada por um arco do atraso que perpassa todos os partidos políticos, poderá provocar uma regressão de dez anos nas bandeiras da educação inclusiva e a desmoralização do Senado, como agente de direitos humanos difusos.
Na linha de frente do combate à educação inclusiva estão:
•      duas Ministras do governo Dilma – Gleise Hoffmann, da Casa Civil e Maria do Rosário, da Secretaria dos Direitos Humanos, ambas com pretensões ao governo de seus respectivos estados;
•      senadores situacionistas – como Paulo Paim e Lindbergh Farias (provável candidato ao governo do Rio de Janeiro);
•      líderes oposicionistas – como o senador paranaense Álvaro Dias e o ex-senador e atual vice-governador do Paraná Flávio Arns;
•      o governo tucano do estado do Paraná;
•      e políticos meramente pusilânimes – como o senador e ex-Ministro da Educação Cristovam Buarque.
Gleise, Maria do Rosário, Paulo Paim, LIndbergh Faria, Flávio Arns e Álvaro Dias
Por trás dessa aliança suprapartidária, interesses eleitorais menores em relação à rede das APAEs.
De instituição meritória de décadas atrás, quando comandada pela histórica dona Jô Clemente,  sob a liderança da Federação das APAEs e do ex-senador Flávio Arns a rede de APAEs transformou-se em uma máquina eleitoral  de duas faces.
A face legítima é composta por voluntários, pais empenhados em buscar o melhor para os filhos. A face deletéria é a da organização política controlada pela Federação das APAEs, colocando os interesses de dirigentes acima das pessoas assistidas, manobrando a deficiência como mero instrumento para o acesso às verbas públicas e para promoção política, recorrendo a um festival de desinformação sem paralelo e constituindo-se, hoje em dia, no principal obstáculo à educação inclusiva.
De como a inclusão tornou-se bandeira civilizatória
Antes de entrar na parte mais sensível da história, recomenda-se entender melhor o movimento pela educação inclusiva.
No primeiro código de educação de São Paulo, já se defendia que a educação das pessoas com deficiência deveria ser “preferivelmente” na rede escolar. Esbarrava-se na falta de estrutura.
No Brasil a luta ganhou consistência mais de três décadas atrás quando a educadora paulista Maria Teresa Mantoan, professora de uma escola especial para deficientes, visitou uma escola pública. Foi assistir a um show de dança. Lá, deparou-se com um rapaz sem braços e sem pernas com uma mochila ao seu lado.  Quando a dança começou, um colega pegou a mochila, encaixou nas próprias costas, colocou dentro o menino com deficiência e sairam dançando pela sala.
A cena descortinou um mundo novo para Maria Teresa, que entendeu a diferença essencial entre crianças convivendo com colegas sem deficiência e as demais, segregadas em escolas especiais, convivendo apenas com outras crianças com deficiência e entrando na vida adulta sem o menor preparo para enfrentar ambientes não segregados.
A luta ampliou quando a procuradora de Justiça potiguar Margarida Araújo Seabra de Moura conheceu uma escola avançada em Natal disposta a receber sua filha Deborah para educá-la em uma classe com colegas sem deficiência.
Foi um aprendizado histórico, o primeiro trabalho sistemático no ensino fundamental inclusivo. De lá, Deborah foi para a escola pública, enfrentou bravamente a discriminação e reverteu sozinha o preconceito de colegas.
Estava preparada para enfrentar o mundo, graças à educação inclusiva.
Em julho passado, tornou-se a primeira professora com Down, merecendo uma reportagem no Fantástico (http://glurl.co/cJZ).
Em Santos, o casal  Antônio Carlos Sestaro deu à luz Samuel, também com Down. Os pais quiseram que estudasse nas mesmas escolas dos seus irmãos. Inicialmente as escolas recusaram. O casal recorreu à Justiça para exigir o cumprimento do direito. Dessa luta nasceu a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. E formou um rapaz capaz de enfrentar plateias exigentes, palestrando sobre a eficiência da educação inclusiva.
A luta foi ganhando adeptos entre os pais de crianças com deficiência, como o casal Glória e Rogério Amato, pais de Mariana, a odontóloga Rosane Lowenthall, mãe de Bruno,  e simpatizantes da causa, como a jornalista carioca Cláudia Werneck. E conquistou o apoio de figuras emblemáticas, como dona Jô Clemente, a própria criadora da APAE.
Trecho do filme “Do luto à luta”
Em depoimento histórico, dona Jô contou que, na época de seu filho criança, a APAE era o único caminho existente para acolhe-lo. Mas hoje em dia não vacilaria em colocá-lo em uma escola da rede regular, por saber que lá seu desenvolvimento seria maior.
No mesmo documentário havia o depoimento da mãe de Vinicius, a procuradora da República Eugênia Gonzaga que, finalmente, colocou em prática o disposto na Constituição. A partir de sua luta, o Ministério Público encampou a tese de que a inclusão escolar é direito inalienável da criança - contra o qual nem os pais podem se insurgir. E a recusa em aceitar a criança com deficiência na escola constituía-se em crime.
Com a Constituição em punho, em 2002 começou a batalha da procuradora Eugênia para fazer valer a lei e permitir a outras crianças o acesso à educação inclusiva.
Em reforço à tese, em 2006 a ONU (Organização das Nações Unidas) promulgou a Convenção Sobre Direitos de Pessoas com Deficiência, reconhecendo o direito das pessoas (e a obrigação do Estado) de terem acesso à rede regular de ensino.  E o Brasil foi signatário.
As primeiras batalhas em torno da nova bandeira
No âmbito das políticas públicas de educação, havia três passos a serem percorridos para a consolidação das políticas de educação inclusiva:
1. O convencimento do MEC (Ministério da Educação).
2. A preparação da rede escolar para acolher as crianças com deficiência.
3. Dadas as condições, a uso da lei para obrigar as escolas recalcitrantes a aceitar alunos com deficiência.
As primeiras tentativas de sensibilizar o MEC ocorreram na  gestão Paulo Renato, ainda no governo FHC. A área de atuação do MEC - a Secretaria de Educação Especial (SEE) - passou anos sob direção de Marilene Ribeiro,  amplamente influenciada pela bancada das APAEs e contra toda forma de inclusão.
Antes de deixar o cargo, Paulo Renato convenceu-se da importância da educação inclusiva e demitiu Marilene. Assumindo, o novo Ministro Cristovam Buarque sentiu de imediato o peso do lobby das APAEs – já liderado pelo então senador Flávio Arns.
Buarque nomeou para a Secretaria Cláudia Dutra, esposa do deputado gaúcho Paulo Pimenta (PT). Boa professora, mas sem conhecimentos maiores da matéria, Cláudia juntou as partes, ouviu argumentos de lado a lado e se convenceu da importância da educação inclusiva. Dali em diante, seria peça fundamental para implementar as novas políticas.
Começava a tomar forma uma nova política de inclusão, que se materializou na gestão Fernando Haddad.
Em 2007, após muitas reuniões, discussões, negociações com todos os grupos envolvidos, o MEC lançou sua política de educação inclusiva.
Mesmo com a Constituição, no ano 2.000 havia menos de mil pessoas com deficiência física no ensino médio, por falta de preparo das escolas e de instrumentos que as obrigassem a receber os alunos com deficiência.
Com o movimento dos pais, a adesão do MEC, a criação de uma série de programas de apoio às escolas e de capacitação do quadro de professore - e com a obrigação legal das escolas de acolherem os alunos com deficiência - em poucos anos o novo modelo consolidou-se como uma das grandes obras de cidadania do país.
O Censo MEC/INEP/2012 revelou 102.682 estabelecimentos de educação, públicos e privados, com matrículas de estudantes alvo de educação especial, em um total de 820.433 matrículas, 67% do total. 39.683 instituições de educação básica já tinham se preparado arquitetonicamente para receber alunos com deficiência. Até 2013, 37.801 escolas de 5.021 municípios já recebiam regularmente materiais didáticos e pedagógicos do MEC através da implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, cada qual com uma infinidade de equipamentos de acessibilidade. 1.713 veículos acessíveis já tinham sido disponibilizados até o primeiro semestre de 2013, atendendo 1.513 municípios.
A formação de mão de obra disparou também. Entre 2007 e 2012 foram disponibilizadas 76.800 vagas  em 91 cursos, por 27 instituições públicas de educação superior (IPES), no âmbito do Programa de Formação Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica.  O censo escolar 2012 contou 88.244 professores declarando-se com formação em educação especial.
Não se descuidou da LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). O Censo de 2012 indicou 3.012 escolas públicas de educação básica com professores tradutores/intérpretes de LIBRAS, e 1.787 IPES oferecendo intérprete/tradutor.
Houve reflexos no ensino superior. O número de universitários com alguma forma de deficiência saltou de 6 mil para 27 mil em poucos anos. No último ENEM, houve 70 mil solicitações de atendimento especial, desde a LIBRAS e provas em braile até recursos de mobilidade.

O papel chave que as APAEs se recusaram a seguir

Na estratégia desenhada por Haddad, caberia às APAEs dois papéis centrais. O primeiro, o de auxiliar a rede convencional a se preparar para acolher os alunos com deficiência. O segundo, o de atuar como fiscal, denunciando as escolas que se recusassem a cumprir a lei.
As fontes de recursos das APAEs são convênios com estados e municípios, doações de particulares, convênios com o MEC, através da Secretaria de Educação Especial e do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola), que paga sem passar pelos municípios, convênios com os Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social.
Conseguiram esses recursos através de lobby junto à SEE, que em 1994 incluiu esse privilégio na LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).
Para obter a adesão das APAEs aos novos tempos, Haddad imaginou um modelo que ampliasse ainda mais os recursos, através do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), uma conta onde União, Estados e Municípios registram seus gastos obrigatórios com educação.
Por definição, o FUNDEB só poderia apoiar escolas públicas. Haddad criou a figura da dupla matrícula para a inclusão, abrindo uma exceção para as filantrópicas.
Para cada aluno que matricula, a escola recebe R$ 670 por mês. Se for aluno com deficiência, receberá 1,2 x R$ 670, ou R$ 804,00. Se apresentar um plano de atendimento especial daquele ano, terá direito a 2,4 x R$ 670 ou R$ 1.608,00. Com esse recurso, poderá contratar professores especiais, além das linhas de recursos para aquisição de equipamentos.
Abriu-se a possibilidade para as escolas terceirizarem essa segunda matrícula para instituições filantrópicas – dentre as quais, as APAEs.
Cabe a cada Secretaria municipal ou estadual definir as parcerias. No caso da primeira matrícula, é obrigatória na rede regular de ensino. No caso de segunda matrícula, é "preferencialmente" na rede regular, mas podendo ser terceirizada para a filantrópica mediante a apresentação de um projeto de atendimento ao aluno. Esse acordo foi sacramentado no Congresso Nacional.
Imaginou-se, ali, um modelo redondo.
As APAEs não perderiam nenhuma de suas verbas tradicionais e ainda teriam direito aos recursos referentes à segunda matrícula do Fundeb, no caso de atendimento especial de crianças na rede pública.
Imediatamente a histórica APAE-São Paulo, criada por dona Jô, aderiu ao projeto, fechou sua escola especial e colocou seus especialistas para auxiliarem a rede regular a se preparar para os novos tempos. Ficou isolada.
Julgou-se que o objetivo maior das APAEs fosse a melhoria das condições de seus alunos. Engano! A esta altura, a máquina da Federação das APAEs havia consolidado outros interesses, de dirigentes com propósitos políticos, mais preocupados em ampliar o acesso às verbas públicas do que promover a inclusão de suas crianças.
A segunda matrícula foi um maná que, nos últimos quatro anos, carreou para os cofres das APAEs mais de  R$ 2 bilhões. Foi como dar carne fresca ao leão.
Garantidos os recursos da segunda matrícula, o lobby das APAEs decidiu avançar também sobre a primeira matrícula, desvirtuando totalmente os objetivos da educação inclusiva. A Constituição vetava, assim como a lei votada em 2007 e as próprias conclusões do PNE (Plano Nacional de Educação).
Liderada por Flávio Arns, com a adesão de Gleise Hoffmann, as APAEs se valeram da votação da PNE no Senado para torpedear a educação inclusiva, contando para isso com o apoio de senadores sem nenhum compromisso com direitos humanos e a universalização da educação inclusiva.
Como as APAEs aproveitaram o PNE para derrubar acordos
Através do artigo 214, a Constituição de 1988 instituiu os planos nacionais de educação, com duração decenal.
 O atual PNE é o segundo plano montado. A redação original foi discutida amplamente nas diversas conferências estaduais e, finalmente, aprovada na Conferência Nacional de Educação (CONAE) do ano de 2010, conforme previsto na Constituição (clique aqui para acessar do documento final). 
Conferências nacionais de educação tornaram-se, mundialmente, referências indiscutíveis de avanços sociais. As conferências mundiais de Jontien, Salamanca e Dakar definiram documentos essenciais para a universalização do ensino e passaram a inspirar as conferências nacionais.
A CONAE de 2010 foi a primeira oficialmente convocada pelo MEC. Foi em Brasília, de 28 de março a 1o de abril de 2010. Na fase preparatória, em 2009, houve Conferências Municipais, Estaduais e do Distrito Federal. As propostas foram consolidadas por uma comissão de mais de 30 órgãos públicos e da sociedade civil. No total, as conferências envolveram 700 mil pessoas.
Para uma proposta ser submetida à votação do CONAE, precisa passar, primeiro, pela aprovação de cinco estados.
Todos esses procedimentos foram seguidos na definição da Meta 4 do PNE. Por ela, a comunidade de educação defendia que a educação regular inclusiva deveria se dar obrigatoriamente na rede regular de ensino, acabando com o duplo sistema.
O PNE foi submetido, então, à aprovação do Congresso. Quando chegou no legislativo, o lobby das APAEs explodiu em toda intensidade. Atropelou acordos anteriores, leis anteriores, convenções internacionais, as decisões da CONAE,  aproveitando a votação do PNE para reverter um avanço já consolidado.
Chegou na Câmara com a redação de que pessoas com deficiência seriam atendidas sempre nas escolas comuns, com apoio especializado à parte.
Na Câmara, o lobby das APAEs derrubou o texto.
Todas as convenções estaduais, todos os educadores envolvidos na discussão da CONAE, as 700 mil pessoas que participaram das conferências, a própria Convenção da ONU foram deixadas de lado pelo deputado Ângelo Vanhoni, relator do projeto, pressionado pela Ministra-Chefe da Casa Civil Gleise Hoffmann.
A redação dada por Vanhoni foi a seguinte:
Meta 4: universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos, o atendimento escolar aos(às) alunos(as) com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, preferencialmente na rede regular de ensino, garantindo o atendimento educacional especializado em salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou comunitários, nas formas complementar e suplementar, em escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.
Com essa redação, com a volta do termo "preferencialmente" liquidava-se com a obrigatoriedade das escolas regulares acolherem alunos  com deficiência e abria-se espaço para que as APAEs avançassem sobre as vagas do ensino regular. Sempre haveria o álibi para qualquer secretário de educação municipal se eximir da obrigação de preparar a escola para a inclusão e manter os alunos segregados nas filantrópicas.
Ao chegar no Senado, as distorções foram corrigidas pela Comissão de Assuntos Econômicos, tendo como relator o Senador José Pimentel. Retirou-se o termo “preferencialmente” para o ensino regular e limitou até 2016 os repasses do Fundeb para as APAEs. A medida provocou uma intensificação das pressões pelas redes sociais, onde se recorria a toda espécie de boato, inclusive o de que as APAEs seriam fechadas.
Na Comissão de Constituição e Justiça, deixou-se um texto dúbio.
Agora, o projeto encontra-se na Comissão de Educação do  Senado, presidida pelo Senador Álvaro Dias, paranaense como Flávio Arns e como Gleise Hoffmann. E que já se mostrou disposto a encampar o discurso excludente das APAEs.
Como as APAEs se tornaram uma máquina de lobby
Ao longo dos anos, as APAEs foram sendo apropriadas por grupos políticos criando uma rede de interesses que se superpôs aos próprios interesses das crianças com deficiência. E atuando com os mesmos métodos da política convencional.
Na teoria, cada APAE municipal é independente. Na prática, dependem da certificação da Federação das APAEs para terem acesso às verbas públicas. É por aí que se consolidam as influencias políticas e amplia-se o poder dos caciques.
Foi assim em 2006 na votação da CPMF. Para garantir o apoio da bancada da APAE, o senador Flávio Arns exigiu de Lula um decreto aumentando os privilégios das APAEs. Lula safou-se com um texto dúbio que, depois, foi devidamente corrigido pelo MEC.
Quando o Ministério Público Federal decidiu encampar a bandeira dos direitos das crianças com deficiência à rede básica, a campanha das APAEs tomou ares soturnos.
As palestras da procuradora Eugênia Gonzaga passaram a ser invadidas por dirigentes de APAEs arrastando consigo batalhão de crianças com deficiência, em uma exploração vergonhosa das vulnerabilidades.
Com apoio da Secretaria de Educação Especial, Eugenia e outras autoras prepararam uma cartilha explicando que era crime de abandono intelectual deixar criança com deficiência fora da escola. Aliás, é crime deixar qualquer criança fora da escola.
A procuradora foi  alvo de 3 mil ações de habeas corpus da rede das APAEs, com cópias xerocadas, que atravancaram por um ano a Secretaria do TRF (Tribunal Regional Federal) da 3a Região. Tudo sob a liderança velada de Flávio Arns.
A manipulação das crianças com deficiência tornou-se peça política permanente na atuação das APAEs.
Certa vez, o deputado mineiro Eduardo Barbosa enviou um grupo de pessoas com deficiência para manifestações no MEC. O então Ministro Fernando Haddad abriu o auditório e colocou todos para dentro. Desnorteado com a atitude de Haddad, Barbosa correu até o auditório e, com linguagem de sinais, tentava convencer os deficientes (muitos surdos) a se retirarem.
Esse interesse político menor foi responsável por um dos piores momentos do Senado: a audiência pública convocada para discutir a educação inclusiva no dia 5 de novembro passado.
Na plateia, claques das APAEs vaiando de forma acintosa os que pensavam de forma contrária,  provocando os debatedores. Na mesa dos debatedores, um show inigualável de oportunismo político por parte de muitos senadores,  interessados em obter apoio ou, no mínimo, a simpatia das APAEs.
Pai de uma menina com síndrome de Down - que frequenta escola regular -, o  senador Lindbergh Farias, candidatável ao governo do estado do Rio, defendeu com unhas e dentes as escolas especiais, alegando que a inclusão poderia ser boa para sua filha, mas não  para os autistas. 
Ministro que iniciou o modelo de educação inclusiva, Cristovam Buarque condenou a inclusão como direito indisponível das crianças.
Mesmo alertado que a redação que veio da Câmara é inconstitucional, o senador Rodrigo Rollemberg defendeu o fim da obrigatoriedade do ensino inclusivo na rede regular de ensino
O uso político das APAEs
A politização das APAEs traz à tona um vácuo legal na atuação das filantrópicas ligadas  à deficiência.
Hoje em dia não existe um Marco Regulatório das Organizações Sociais. Elas prestam serviço público, recebem recursos públicos, mas não obedecem às mesmas regras de transparência.
Em muitos municípios, por falta de informações, a prefeitura disponibiliza seus professores especializados para trabalharem nas próprias APAEs, em vez de serem instrumentos de inclusão nas escolas municipais. Como recursos de convênios saem da União, passam por estados e municípios, não há centraização das informações, padronização de procedimentos ou exigências de transparência e contrapartidas.
Na educação superior, por exemplo, o MEC certifica que as PUCs são instituições filantrópicas com direito à isenção de impostos. Mas recebe, como contrapartida, bolsas para o PROUNI. No caso das filantrópicas, não há nenhuma espécie de contrapartida nem de controle social.
A falta de transparência perpassa as atividades mais comezinhas. Por exemplo, nas escolas públicas há uma chamada geral para estudantes. Exige-se do gestor – seja o diretor da escola ou o Secretário Municipal de Educação – total transparência e isonomia para o preenchimento de vagas. As APAEs não estão submetidas a esse controle, o que confere a seus gestores um poder de arbítrio na definição das vagas.
No caso do Prouni (as bolsas para estudantes em universidades privadas) há regras claras de prioridade de acesso para os bolsistas. No caso das APAEs, não existe nenhuma regulamentação.
Como instituições auxiliares de educação, por exemplo, deveriam se submeter ao controle social dos Conselhos Tutelar, do Direito da Criança, de Educação e do Ministério Público. Mas nada disso ocorre, o que faz com que a seriedade de cada APAE dependa exclusivamente da seriedade dos seus dirigentes, não de formas institucionalizadas de controle.
Sem esse controle, muitas APAEs acabam sendo extensões de partidos políticos, obedecendo à mesma lógica de apadrinhamento e/ou aparelhamento do executivo.
Mas não se fica nisso.
Há uma exploração política disseminada, de dirigentes utilizando as APAEs como trampolins para candidaturas políticas, de vereadores a deputados e senadores.
A candidatura política de Flávio Arns, por exemplo, é pavimentada por uma montanha de recursos públicos para uma organização privada.
Investir R$ 420 milhões na rede pública do estado não lhe daria a visibilidade e os votos garantidos pela distribuição de verbas para as APAEs, como as que anunciou em agosto passado. 
O mesmo ocorre em outros estados.
Ex-presidente da Federação das APAEs, o deputado federal Eduardo Barbosa (PSDB-MG) conseguiu transferir R$ 1,2 milhão para bancar 37 eventos e um congresso estadual em plena campanha eleitoral de 2010. Tudo bancado por dinheiro público nas APAEs.
O jogo pesado das APAEs não se limita à eleição de seus candidatos.
Na campanha de 2010, a APAE de Poços de Caldas – trampolim político de seus dirigentes – chocou o eleitorado ao denunciar que  o MEC estaria sonegando recursos às crianças. A "denúncia" foi amplamente utilizada por José Serra no debate com Dilma Rousseff pela Rede Bandeirantes.
Era uma falsa denúncia.
A resposta do MEC – uma nota no site oficial, com todos os recursos do Fundeb, distribuídos às APAEs, passou desapercebida. E a “denúncia” se dava em pleno início da distribuição inédita das verbas da Fundeb às APAEs
A instrumentalização das APAEs não é obra de um só partido.
Nos últimos meses, Arns se valia do site da Secretaria da Educação do Paraná para proselitismo pró-APAEs. Anunciou R$ 420 milhões para a educação inclusiva. Nem se pense que a intenção primordial fosse preparar a rede pública para receber as crianças. O objetivo explícito era dar condições de “isonomia” às APAEs para competir com a rede regular de ensino.
Em Brasília, a Ministra-Chefe da Casa Civil Gleise Hoffmann valeu-se do site da Casa Civil para defender as APAEs, contra a obrigatoriedade da educação inclusiva na rede regular de ensino. Cabe à Casa Civil o filtro jurídico de todos os atos do governo. No site da Casa Civil, o comunicado da Ministra atropelava a Constituição, as leis vigentes e a Convenção da ONU, da qual o Brasil foi signatário.
Por seu turno, no Senado, o relator do PNE na Comissão de Justiça do Senado, senador Álvaro Dias (PSDB), já tinha pronto um email padrão para enviar a todo mundo da APAE que lhe escrevesse, garantindo-lhes apoio à sua causa.
Com tal nível de promiscuidade política, as APAEs acabam se tornando apêndices dos jogos políticos fisiológicos e do compadrio nas nomeações e contratações.
Tome-se o caso do ex-senador Flávio Arns. Tem atuação política, como vice-governador e Secretário da Educação do Paraná. E tem atuação como líder das APAEs.
No ano passado, o escritório de advocacia Arns de Oliveira & Andreazza Advogados, de seu sobrinho Marlus Arns, conquistou toda a advocacia trabalhista da Copel, a companhia de energia do estado (http://glurl.co/cLh). Um mega-contrato sem licitação. No início deste ano, o mesmo escritório foi contratado para atender à Sanepar, a Companhia de Saneamento do estado, por R$ 960 mil (http://glurl.co/cLm), duplicando a atuação do seu Departamento Jurídico. Também sem licitação.
Uma pesquisa rápida nos tribunais mostra que esse mesmo escritório atende, no mínimo, vinte APAEs do estado, prestando serviços jurídicos de toda espécie (clique aqui), entre elas para as APAEs de Califórnia, Cambira, Curitiba, Dois Vizinhos, Eneas Marques, Figueira, Icaraíma, Mandirituba, Nova América da Coluna, Nova Esperança, Nova Olímpia, Paranaguá, São João do Ivaí, São Sebastião do Amoreira, Telêmaco Borba.

A construção da cidadania

Não é o caso de demonizar as APAEs. Mas de definir regras de atuação que impeçam sua politização e esse método absurdo de se valer de pessoas com deficiência para pressões emocionais.
No evento de sábado passado, pessoas com deficiência intelectual, de todas as idades, conviviam com os demais, zanzavam pelos salões da livraria esbanjando simpatia, inserindo-se  em todos os ambientes. Junto com elas, pais que apostaram na educação inclusiva, viram os resultados alcançados por seus filhos e levantaram a bandeira de forma desprendida, para que todas as crianças com deficiência tenham acesso às mesmas possibilidades.
Nesses anos todos, as APAEs se valeram da pouca visibilidade do tema, da falta de atenção da mídia, para difundir  informações falsas, diagnósticos imprecisos para ampliar sua receita à custa do prejuízo de suas crianças.
Há a necessidade de um movimento maior de informação para que os pais saibam exigir os direitos das crianças nas escolas, conheçam todas as linhas de apoio à inclusão fornecidas pelo MEC. E até façam convênios com as APAEs, quando necessário.
E que os senadores deixem de lado o oportunismo político e abracem uma causa que poderá não render muitos votos individualmente, mas ajudará a legitimar o papel da casa na construção de políticas cidadãs.

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