Cordeiros e Altar - 4
Mauro Marques
Levam mais sangue. Tenho os braços aberturados de todas as maneiras, com competência e incompetência, mas continuo sendo bem tratado.
Imagino que tenho a mesma atenção que maias e astecas dedicavam nas suas oferendas aos deuses. Os feiticeiros encantavam os artesãos com a sua sabedoria para entender os desejos dos deuses do espírito.
Sou avisado que a ecografia abdominal vai demorar. O plantonista não está na cidade e precisa ser chamado. Levam minha urina, desta vez fui logo abrindo a bica. Ninguém é obrigado a fazer o impossível, mas dois dedos de xixi, com pedra ou sem pedra, a gente combina aqui entre nós que dá. E deu certo.
Antes das dezenove horas faço o caminho que separa a emergência do hospital ao laboratório de diagnóstico por imagem. Chego antes do doutor do gel e da televisão. Sentamos, eu e minha dor. Em silêncio. Uma atendente atenciosa, mas sem o poder divino da cura, refere que o doutor já chega. Somos dois peões deste tabuleiro.
Logo em seguida entra um jovem doutor, o mais jovem doutor destes dias de angústia, vem acompanhado de uma jovem exuberante. A dor não me cegou de todo. Os sentidos estavam amortecidos, mas vivos. Voltando... a exuberância da jovem acompanhante de doutor sentou à minha frente, ficamos os dois ali, em plantão e plantados, usava saltos também exuberantes, pensei em segredo com a minha dor
(Não me faltava mais nada...)
Não disse, apenas pensei, ela não haveria de entender os humores de um macho ferido e preocupado com os humores do outro macho. Esse doutor com a jovem exuberante foi interrompido por emergências. Só me restava rezar para minha devoção a Santa Rita. Esperava que a ecografia abdominal total se transformasse em uma tomografia abdominal sem contraste, mas a medicina destes jovens não dá lugar a nenhuma devoção, depois que o cordeiro já está sendo levado ao altar dos sacrifícios.
Ofereci minha barriga ao gel e àquele passeio gelado de imagens. O jovem doutor foi rápido e sai com meu diagnóstico feito a punho. É isso que eu sou apenas uma vistoria clínica. Espero que acertada. Fiquei ali, sozinho, limpando o gel. Quando sai da sala das imagens a jovem exuberante e o jovem macho tinham desaparecidos, raptados pelo fogo das virilhas. Eu que me virasse com os meus dois convênios de saúde. Pensei que fora mais bem atendido na emergência do SUS, em minha cidade.
Com essa crença desconfiada, coloquei o papel embaixo do braço e, segurando minha dor pela mão, gemia levemente. Retornei à emergência. Nunca fora atendido tão célere depois de tantas horas de espera, mas desconfio – estou muito desconfiado por esses dias – que foi às emergências do macho com a jovem exuberante a razão da ligeireza do doutor.
Permanecia no segundo andar e precisava voltar ao térreo, para outras emergências. Estava cansado. Nestas horas o elevador ajuda, encurta a lonjura das escadas, mas não acende nenhuma esperança. Já sabia o que haveria de encontrar por lá, é isso aí, estava na chuva todo molhado.
No elevador tornei a ler o diagnóstico feito de punho
(... nefrodiagnese renal direita.)
A sentença fora expedida com precisão.
Retornei a emergência
(Senhor Mauro.) (Sim senhor, doutor.) (Estamos com um problema...)
Mais um menos um, já não importava muito, queria que medicasse a minha dor, mas iniciassem algum tratamento para o que me causava tanta dor. Queria de algum jeito ser retirado do altar pela raiz
(O seu caso é para um urologista.)
Nenhuma novidade
(Venha comigo...)
Bem, isso já era uma novidade, conversar. Trocar idéias, afinal, eu estou no altar, achava justo termos uma conversa. Aproveitei para descer da mesa, quem sabe ele se empolga e me examina, o doutor parecia ser um cara do bem. Lembrei um destes ditados de almanaque
(Tarde dar é o mesmo que negar.) (O que foi, senhor Mauro?) (Nada, nada...) (Senhor Mauro, me acompanhe.)
Sou um resmungão idiota, preciso lembrar de fazer silêncio.
O doutor me levou para uma sala ampla e vazia, apenas uma mesa, duas cadeiras de um lado e outra cadeira de outro. Sentamos frente a frente. Pegou um bloco sobre a mesa e começou a rabiscar
(Vou explicar o que está acontecendo com o amigo.)
Continuei em silêncio. O doutor desenhou dois rins, direito e esquerdo, a bexiga ligada aos rins pelos ureteres da direita e da esquerda
(Cara...)
A conversa estava se tornando pessoal
(... quando a pedra está dentro do rim não tem maiores problemas porque o xixi circula na volta e sai. O problema acontece quando ela sai pelo ureter e bloqueia em uma destas curvas. O xixi não passa e o ureter se distende. Isso dói pra caramba...)
Eu sei quanto pra caramba dói, doutor
(Alô.)
É o celular do doutor. Atendeu com entusiasmo, mas parece que as coisas também não estão dando tão certo pra ele
(... tudo bem, a gente dá outro jeito.)
Desligou o celular e voltou sua atenção para mim
(Droga, essa aí estourou meus planos bem no final do plantão, não é nada, é partir pra outra.)
Não entendi se aquilo foi um desabafo de cordeiro no altar, mas de qualquer maneira fiquei em silêncio
(... voltando..., desculpe, senhor Mauro.)
Cada coisa no seu tempo, doutor, pensei em dizer. Achei melhor continuar calado
(Vou ligar para o urologista do hospital e combinar com ele a sua baixa.) (Vou ficar internado?) (Infelizmente, sim.) (Baixado...) (O senhor topa?) (Claro.) (Caso fosse comigo também aceitaria. O senhor tem outro rim, mas não vai querer perder esse, vai?)
Fiquei aturdido
(Claro que não!) (É isso, temos dois escrotos, mas não saímos oferecendo um por aí.)
Continuava aturdido e em silêncio, imaginava se aquilo tudo não era uma pegadinha idiota qualquer. O doutor levantou e saiu. Acho que foi telefonar para o tal doutor urologista.
Acertei.
Quando me virei de frente para a porta, o doutor estava no telefone, consegui escutar parte da ligação. Foi o mais perto que cheguei da tal tomografia que, por certo, o urologista pediria
(Senhor Mauro, conversei por telefone com o urologista e ele sugeriu que o senhor voltasse amanhã, segunda-feira, direto ao consultório dele.) (Mas eu não ia ficar baixado?) (Hoje, de qualquer maneira, não será feito nenhum procedimento.) (Por quê?) (A sua emergência é a dor que podemos controlar medicando. Amanhã ele vai atrás dessa sua pedra.) (Amanhã?) (Vou lhe dar uma solicitação de urgência amanhã nas consultas.)
O cordeiro aceitou.
(Qual o horário que devo estar aqui?) (Aqui na emergência não sabemos dos horários de consulta. Isso é com o pessoal do agendamento na segunda-feira.)
Recoloquei a dor dentro da barriga e voltei para casa, como um bom cordeiro ensinado a obedecer. É isso que venho fazendo nesses trinta anos, ensinando meus alunos a serem bons cordeiros, em silêncio. As folhas e as frutas não caem longe do pé.
Nem tudo foi em vão, na verdade, o doutor mirou no que via e acabou acertando no que não via
(O senhor deve ingerir a menor quantidade possível de água, assim evita o colapso do sistema renal.)
A responsabilidade para evitar o colapso dos meus rins passou a ser minha, mas foi a primeira prescrição daqueles doutores todos, naquele feriadão das crianças, que me ajudou.
Sem comida, sem dor. Sem água, sem dor.
A sede virou efeito colateral, perfeitamente aceitável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário