sexta-feira, 12 de novembro de 2010

cordeiros e altar - 5

Cordeiros e Altar - 5

Mauro Marques

O dia em que morri.


A segunda-feira começa tensa e obviamente com dor. Carregando a dor inseparável da barriga que cresce e continua parada, chegamos ao hospital, vazio no domingo, mas agora está coalhado de gente doente.

Vocês precisam entender que essa dor não sou eu, por isso, o tratamento na 3ª pessoa. Subimos lentamente as escadas, lado a lado, não pretendia marchar pra lá e cá acompanhado de nenhuma dor. Ela, por certo, haveria de ficar retida em algum canto, esvaziada do meu corpo. Os dois resistiram até agora. De alguma maneira, sabíamos ser um cortejo fúnebre, restava saber de quem.

Afugentei os pensamentos e sorri. Chegamos aos consultórios, mas fomos informados que o urologista somente à tarde. Sem remédio para minha barriga ou para a agenda do doutor, voltamos. É difícil carregar ou ser carregado pelo inimigo. Os dois precisavam ficar atentos, cordeiros de um mesmo senhor apático ao nosso destino. Mais tempo de espera, mais sede – nenhuma gota - menos disposição de luta.

Fingimos um para o outro neste tempo todo. Conversando com o silêncio que povoa os desconhecidos e os amigos. Nascemos irreconciliáveis. Só um pode sobreviver e descer do altar agradecido com a graça do perdão. Mas o que eu fiz, mesmo sabendo que nada estava fazendo? Deixei de lado e para trás a minha indignação com o sofrimento, depositei-o escondido na indiferença e arrogância astuta. Apenas para sobreviver.

Outra vez chegou a hora de partir. Acariciei minha barriga crescendo imóvel e derramei pelos olhos o meu amor pela vida. Detesto despedidas. Medo. Chegamos. Medo.

Assim, que me apresentei, fui chamado.

Entrei carregado de exames de urina, sangue e a ecografia abdominal total. Na boca apenas um pedido: a tomografia abdominal sem contraste. Parece um palavrão, mas não é. Um nome é apenas o que precisa ser: uma placa de reconhecimento, uma tarjeta que todo soldado leva pendurado no pescoço, sua identificação. Esse soldado cordeiro morreu pela pátria sem nenhuma razão, que descanse em paz. As vidas astutas, indiferentes e solitárias, seguem em frente.

Viva a pátria amada dos cordeiros satisfeitos. Sentei

(E aí, senhor Mauro, o que lhe incomoda?)

Pensei em responder que andava atrás apenas de um nome, mas lembrei do médico velhinho e seu conselho de não dizer ao doutor o que ele precisa fazer. Apenas entreguei-lhe os exames das duas emergências e de lambuja uma ecografia que havia feito no mês anterior, exames de rotina. Ele os pegou, quase fiquei de joelhos agradecido. Comecei meu relato, mas engolindo sem mastigar aquele nome, vocês sabem o nome, repitam comigo, talvez ele escute vocês, vamos coragem, digam: tomografia. Isso, muito bem, agora só o apelido: tomo. Neste caso, nem precisamos de sobrenome familiar, que o apelido já nos mostra a procedência do mancebo, a sua realeza

(Senhor Mauro, um instante que quero olhar seus exames.)

Eu deixo doutor, permito inclusive que o doutor me obrigue a submissão de uma tomografia. Eu vou me arrastando, mas lhe obedeço

(O senhor tem aqui uma ecografia do mês passado.) (Fiz exames de rotina.)

Toca o celular do doutor. Ele está me escapando. Parece que não se consegue uma consulta com os doutores sem que o toque do celular interrompa

(Sim senhora, posso atendê-la.)

Pode? E eu e minha dor, podemos esperar? Daqui não vai sair ninguém antes de algumas respostas. Impressionante, ele olha os exames, resmunga alguma coisa para mim e aconselha à distância pelo telefone que está ali, entrando por um ouvido e saindo pela outra orelha

(Sim senhora, pode, pode... hum.)

Uma das mãos segurava o celular no ouvido esquerdo e a mão direita passeia pelos meus exames

(Olha aqui, senhor Mauro, a origem do nosso problema... O que foi senhora?)

Incrível, estamos em uma teleconferência

(Repita, sei, sei, está bem assim... hum... Olhe aqui senhor Mauro, uma pequena calcificação no rim, essa menina resolveu sair e está nos dando problemas... tudo bem, minha senhora, se precisar pode ligar.) (Mas doutor...)

Desligou e o deixou à mesa

(Vamos fazer uma tomografia abdominal total sem contraste, vou colocar como urgente na solicitação. Agora vamos descobrir o que fazer com essa pedrinha.)

Esse falou o palavrão completo e escreveu para não deixar dúvidas. Até eu deixei de lado minha outra dúvida: como uma calcificação no rim esquerdo foi parar no rim direito, mas enfim, têm coisas que não se pergunta aos doutores

(Vá lá fazer a tomo.)

Pronto, estávamos íntimos, nossa conversa não tinha palavrão, mas os apelidos.

Puxei pelo braço minha dor e a enfiei de volta ao seu lugar, minha barriga. Estava ameaçador

(Agora você não me escapa, não tem mais onde se esconder.)

Chegamos à marcação dos exames, retirei minha ficha de espera, como um bom menino. É isso mesmo, a burocracia mata. E vocês já sabem como é o cordeiro, ele é paciente e ordeiro, por isso, espera sua vez, mééé... mééé

(Ficha 171!) (Aqui, moça.) (Qual o seu convênio?)

Esqueci de esclarecer aos amigos e amigas que pago dois convênios para ser bem atendido

(Moça, dá pra marcar o mais cedo possível, o doutor pediu que lhe levasse os resultados o mais rápido possível.) (Pode ser 14h30?) (Antes não pode?) (Não.) (Então marca, por favor.) (Os resultados ficarão prontos dia 15, às 16 horas.) (Moça, hoje é 11, apenas.) (O senhor precisa falar com o médico, talvez, ele apronte pra hoje.) (Onde eu aguardo?) (Ali no corredor, vão chamar o senhor pelo nome.)

O nosso desespero e a transfiguração da barriga no meu rosto é o retrato de um homem sentado no banco do corredor, em cima da própria dor. Acho que esse quadro surreal sensibilizou a rotina de chamar por ordem de chegada e entramos para o preparo de exame, a tal tomografia. Fiz. O tempo não foi maior que cinco ou dez minutos, acho eu.

Ali, naquela sala gelada, com aquele imenso equipamento fotográfico, consegui um pequeno sorriso

(Passei por todos esses dias de dor perseguindo essa máquina, por todos esses dias.)

Não adianta as chaves do caminho não estão à disposição dos cordeiros. A moça fazedora do exame teve dó

(Senhor Mauro, levo para o senhor, assim que ficar pronto o resultado, mas sem imagem.)

Enquanto falava comigo e prometia providências, eu seguia pendurado em seu braço. Chegamos ao mesmo corredor

(Aguarde aqui.)

Sentei. A cara não devia ser das melhores, acho mesmo que era uma das minhas piores. Outro cordeiro, sem consciência da nossa condição de sacrifícios desnecessários, veio me consolar

(O que o senhor tem?) (Pedra nos rins.)

Nesta altura, já tinha nos dois. O doutor encontrou uma que não doía no rim esquerdo, não sabia que na verdade, ela estava no rim direito. Mas não tem como ver direito ou esquerdo atendendo ao telefone, né doutor

(O senhor não pode ficar assim aqui.)

Pronto, sou um estorvo ou mau exemplo, gemendo de dor pelos corredores. O homem tornou a falar

(O que o senhor está esperando?) (O resultado da tomografia.)

Não esperou mais e entrou pela porta de saída da tomografia. Pensei em advertir para tomar cuidado. Entrou e já saiu com uma vestida com um uniforme de chefe de alguma coisa

(Ele não pode ficar aqui, nesse estado.) (Mas o doutor ainda está fazendo a análise do exame.) (Ele não pode ficar aqui... assim. Dê um jeito.)

Virou as costas e saiu. A moça ficou nos olhando, eu e a minha dor. Esse homem não era um cordeiro, mas o guardador das ovelhas

(O senhor pode vir comigo?) (Não.)

Foi a primeira vez que vi um jeito de me negar a subir ao altar. Não sabia se ela queria apenas me esconder ou se ela havia entendido corretamente as ordens do seu guardador

(Ele não pode continuar sofrendo.)

Para mim, essas foram suas ordens, mas e ela, ouviu e percebeu a minha dor? Não podia me arriscar

(O senhor pegue na minha mão.)

Tive ganas de responder que já segurava na mão de Deus

(Não.) (Quem é seu médico?) (O doutor.) (Espere aqui.)

Têm pessoas que demoram entender a vida simples. Eu já dissera que não sairia dali, onde ela pensava ou imaginava que eu e a minha dor iríamos nos esconder? Por favor, me ajude. Não me lembro do tempo que passou. Os cordeiros não sabem do tempo, apenas devem sempre estar prontos para servir. A moça agora encarregada de me resolver entrou com o doutor no corredor da tomografia computadorizada. Rezo para que esse exame não adoeça, ele precisa continuar ajudando, apesar de não fazer nada de graça. Tento imaginar o mundo sem o tal exame de computador

(Senhor Mauro, venha comigo!)

É o meu doutor que acabou de sair da sala santa

(Me dê a sua mão, vamos até o meu consultório.) (O que houve doutor?)

Por aqui, já estou caminhando capenga ao lado do homem do avental branco, esperando por uma resposta definitiva ou o mais perto do que me causa tanta dor

(Vou começar pelo o que o senhor não tem...) (O que eu não tenho?)

Essa pergunta é de uma estupidez estupenda, mas foi a mais óbvia para aquele momento de segredos e confissões

(O senhor não tem pedra nos rins...)

Parei de capengar e ali, parado no meio do corredor daquele hospital, que eu escolhera para me curar, com as pessoas caminhando num vai-e-vem indiferente, fiz a pergunta definitiva

(O que eu tenho doutor?)

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