Das coisas que aprendi sobre o Código Florestal (uma reflexão de quem trabalha com a lei ambiental)
João Roberto Meira (*)
O Código Florestal é um instrumento de trabalho para mim, uma lei que cito quase que cotidianamente em meus pareceres, diretrizes, análises, anexos, e tenho feito isso há pelo menos uns quinze anos, portanto compartilho a seguir um ponto de vista particular de quem o aplica em uma área urbana que possui muitos bens naturais a proteger, e onde a manutenção da atividade rural é parte do desafio e das estratégias de desenvolvimento da cidade.
Enquanto fui estudante de biologia aprendi que as áreas de preservação permanente (APP’s) seriam o refúgio último da biodiversidade na paisagem urbana e rural do Brasil. Aprendi que se esta lei fosse integralmente cumprida, teríamos corredores ecológicos que permitiriam o fluxo de fauna e flora, que as nascentes de água, seus cursos e os solos do País seriam conservados, permitindo à vida e às gerações futuras as condições mínimas de sobrevivência.
Aprendi também que só isto não seria suficiente para conter a extinção de espécies, a erosão genética e a perda de biodiversidade acelerada que assistimos em nossos tempos, seria necessário criar e implantar unidades de conservação públicas e privadas e manter áreas de reserva legal nas propriedades, as quais muitas vezes existiam somente no papel. Aprendi também que esta era uma lei muito desrespeitada nas cidades e nos campos, e que havia muita coisa a ser feita para proteger os bens comuns e recuperar os danos ambientais provocados por ciclos econômicos irresponsáveis, que seria necessário frear o desenvolvimentismo criminoso em curso e possibilitar à sociedade a criação de mecanismos para que a natureza pudesse fazer a sua parte.
Aprendi que algumas árvores nativas possuem copas que atingem diâmetros próximos de trinta metros, ou seja, a mesma dimensão de faixa marginal de proteção de curso d’água prevista na Lei. Exigir que se mantenha espaço para que pelo menos uma árvore possa se desenvolver ao lado de um curso d’água é um bom indicativo de que trata-se de uma lei de mínimo mesmo, o que por vezes é insuficiente para a proteção de um curso d’água.
Mas foi trabalhando como biólogo na equipe de estudos do ambiente natural da Secretaria Municipal do Ambiente de Porto Alegre que tive de aplicá-la, e foi onde compreendi melhor outras dimensões da Lei Federal 4.771/65. Aprendi que era um instrumento para proteger a economia do Estado, pois construir ou implantar redes e serviços em APP’s seria antieconômico a curto, médio ou longo prazo. Sua violação implicaria em ter de indenizar prédios em desastres ambientais, enchentes ou desabamentos. Era uma questão de proteção da economia pública, enfim de Economicidade para o Estado.
Era um instrumento de planejamento urbano para salvar a vida humana de catástrofes ambientais, ou aliviá-la da exposição de agentes patogênicos. Era uma questão de sobrevivência de pessoas e também de Saúde Pública. Para a adequada drenagem da cidade seria mais correto e barato manter os cursos d’água meandrando naturalmente com suas margens vegetadas, revertia-se o paradigma da vazão que durante muito tempo encarava cursos d’água como canais que deveriam ser retificados emparedados ou endutados.
Para quem se envolvia com atividades de produção primária, era justamente o controle da erosão do solo, a manutenção dos agentes polinizadores em áreas de agricultura, a proteção dos mananciais de água para o enfrentamento das secas e o desedentamento dos animais. Na síntese destas visões e de outras tantas, compreendi melhor o sentido de ser ela uma Lei de Mínimo, pois à medida em que não se dispunha de estudos suficientes sobre estes ambientes, os quais estão sujeitos a variações climáticas em escalas de tempo que ultrapassam a de uma vida humana, sim, seria necessário agir com um mínimo de precaução em respeito a todos esses valores coletivos que estão em jogo.
Para aplicar, interpretar e discutir esta Lei, suas medidas provisórias, seus decretos, resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) e instruções normativas, tive de aprender noções mínimas sobre direito administrativo e constitucional, colhendo acalorados atritos e convergências junto aos colegas de trabalho e com os mais diversos segmentos e atores de governos e sociedade civil.
Aprendi também, ao que chamo de matéria vencida, que o fato de uma área estar degradada ou ocupada de forma regular ou irregular pelos vizinhos, não é justificativa suficiente para que não se possa aplicar a lei e que não se deva recuperá-la. Aprendi ainda que conciliar legalidade, realidade e idealidade é um desafio imposto ao poder executivo, limitado pela capacidade das leis e a mercê do juízo do judiciário, e que o envolvimento em matéria tão complexa e conflituosa submete seus agentes a insegurança jurídica e a contradições que expõem a crueldade das feridas do tecido social.
Aprendi enfim a respeitar esta lei, mais velha que eu, e que levou pelo menos quatro anos para que uma comissão formada por engenheiros agrônomos, advogados e pesquisadores a formulassem, com as mesmas justificativas que hoje movem parte dos críticos a ela. Aprendi também a respeitar a jovem constituição brasileira e seus princípios, Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Economicidade (LIMPE), além de outros como o da razoabilidade. O razoável, quando se trata de bens ambientais, é conservá-los e recuperá-los quando possível, compreendendo que as demais leis abaixo da constituição não podem desrespeitá-la
Não vou julgar as razões e intenções que nortearam o relator da matéria, e dos Deputados que aprovaram sua reforma e suas emendas, mas em minha opinião estão a ferir a Constituição Brasileira, sem uma análise mais profunda, pelo menos no que tange a Moralidade, Economicidade e à Razoabilidade. Aprendi que a constituição brasileira rompeu com o conceito basilar do direito que é a propriedade como objeto de posse de seu detentor, ao estabelecer que se tem direito à propriedade desde que a mesma cumpra com a sua função social, sendo o meio ambiente um direito difuso, dever de todos em respeito à coletividade e futuras gerações.
Aprendi também como lição da história, que a riqueza monetária ou a possibilidade de obtê-la, cria demandas sociais e forças políticas que resultam no esgotamento dos recursos naturais e na degradação dos bens ambientais, cientistas e estatísticos às vezes contribuem para isso. Aprendi também que a vaidade, desconhecimento e ignorância podem causar crimes tão graves quanto os cometidos pela sede de dinheiro ou de poder. Aprendi que se o problema é humano, a solução tem que ser humana também, temos ciência, poder tecnológico e sabemos que Terra e Humanidade são indissociáveis. O que será que nos falta? Penso que é visão, afeto e solidariedade, ou seja, sentimentos humanos.
De tanto desenhar círculos no entorno de nascentes e aplicar faixas marginais em cursos d’água vi que se formavam imagens que me lembraram alvéolos pulmonares e vasos sanguíneos, tecidos vivos em grande escala lembrando tecidos vivos em pequena escala dentro de nosso peito. As alterações que virão, para o bem e para o mal, afetarão a paisagem na área rural e urbana do Brasil e o resultado destas alterações, também serão sentidas em nossos alvéolos e vasos sanguíneos e nos das gerações futuras também, não sei se todos os que votaram tem clara a dimensão destas relações.
No momento em que escrevo estas linhas sei que o próximo palco de análise e votação será o Senado Federal e que poderá voltar a Câmara dos Deputados, e penso que se eu pudesse enviar uma mensagem ou um pedido aos nossos representantes seria de que tenham muito CUIDADO com as alterações no Código Florestal, mas talvez isso não baste. Então gostaria ainda de compartilhar esta visão particular, e de que pensassem que nestas votações, vocês poderão suprimir alvéolos de seus pulmões, ou ainda estreitar vasos sanguíneos de seu coração, ou de suas mães, esposas, filhos, filhas, netos e que de fato, e em última instância é disso mesmo que estamos tratando.
Portanto não basta CUIDADO, é preciso AFETO, PACIÊNCIA, RESPONSABILIDADE e TEMPO, conjuguem AMOR próprio, aos seus familiares, à pátria e a terra, e por isso não se tornem reféns de corporações, de compromissos já assumidos e de interesses econômicos, lembrem-se, o que está em jogo é a sua saúde, mexeu lá, mexeu aí dentro do teu peito e de quem amas, então mexe com todo o cuidado!
(*) Biólogo, com mestrado em Ecologia Terrestre, servidor público da Prefeitura de Porto Alegre.
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