Uma sentença humana
Nov 18th, 2011 by Marco Aurélio Weissheimer no RS Urgente
“Creia na Justiça, não no Judiciário.” Esta sugestão (ensinamento?) me foi dada por um desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e arrematou uma conversa que mantivemos sobre a minha incredulidade diante de algumas decisões judiciais a que tive acesso.
Tenho – sempre tive – um pé atrás, por exemplo, com o júri popular. Fiz reportagens policiais no Vale do Sinos e sempre que via um afro-descendente no banco dos réus e olhava para o corpo de jurados tomado por filhos e netos de imigrantes europeus, temia pelo futuro do acusado. Esforçava-me, contudo, para que prevalecesse, em mim, a crença de que o ser humano é dotado de compaixão, compreensão, senso de justiça. E, afinal, um júri popular é formado por homens e mulheres comuns, que trabalham, suam, são passíveis de erros e acertos. Como qualquer réu. Negro ou branco. Assim, apesar do pé atrás, ainda vejo o júri popular como uma forma mais democrática de julgamento.
Agora, quando se trata das chamadas “decisões técnicas” do Poder Judiciário, aquelas em que um único juiz ou mesmo uma câmara de magistrados decide se o sujeito vai ficar um ou 30 anos sob o jugo horrendo das cadeias, aí, amigos, aí a minha crença vai pelo ralo. Juro com as duas mãos postas sobre a Bíblia, sobre o Corão, sobre o escambau, que gostaria que fosse diferente. Queria, mesmo, acreditar que a legislação sempre dará ao acusado o direito de que o mérito de seu processo será avaliado com isenção e, consequentemente, com justiça. Mas, confesso: não acredito! E tenho lá sobradas razões para tanto, podem acreditar. Se puderem.
Enfim, avaliei necessário dizer tudo isso para justificar o elogio que passo a fazer:
Dias atrás, um juiz de nome Antônio C.A. Nascimento e Silva, titular da Vara de Registros Públicos e de Ações Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre, proclamou uma sentença que, de tão bela (e justa), quase ressuscitou em mim a crença no Judiciário. Tratou-se de um processo em que um transexual (que já havia, portanto, passado por uma intervenção cirúrgica corretiva dos órgãos genitais e alterara, assim, seu corpo masculino para o feminino), buscava o reconhecimento da Justiça a seu novo nome. Chamava-se Cláudio Januário de Souza (nome fictício) e queria chamar-se Cláudia Januária de Souza (também fictício).
Pois bem, não foram precisos mais do que 30 dias para que o juiz Antonio chegasse à sua conclusão que começa com uma citação de Warlomont:“Humanidade – A virtude que conduz o magistrado a não se abstrair de sua condição de criatura compreensiva de seus semelhantes, renunciando a reclamar deles, em desatenção às conjunturas, aquilo que, em princípio, a lei não teria reclamado. A assimilação com a vida modela as inspirações e orienta as normas.”
E, depois de considerar que a legislação pátria ainda não contempla uma solução nítida para casos como o de Cláudia, é à Warlomont que o juiz Antonio Nascimento recorre: “…porém, enquanto legem non habemus (do latim, não temos a lei), não pode o julgador se eximir de enfrentar e decidir a postulação inicial, inclusive para que… a assimilação com a vida modele as inspirações e oriente as normas…”
A sentença torna-se ainda mais valiosa quando, após mencionar que já tramita na Câmara Federal o projeto de lei 70/95 (do deputado José Coimbra – PTB/SP) que visa normatizar, em definitivo, esta questão, o magistrado aproveita para citar um trecho do parecer favorável dado ao projeto na Comissão de Constituição e Justiça: “…o rigor do padrão moral de outrora, cede espaço, hoje, às novas realidades, aos novos costumes e a hipocrisia de então não mais encontra eco na vida e na ciência hodiernas…”
Eu já estaria absolutamente satisfeito se, a estas alturas, o juiz deferisse o pedido de Cláudia. Mas ele faz questão de que sua sentença buscasse, ainda, o mais profundo do mérito em debate e diz: “Que é o homem? Mais corpo ou mais alma? O ser humano é, sem dúvida, mais alma do que corpo! Logo, o seu sexo deve ser aquele que vem de seu íntimo, que vem de suas entranhas, que vem de sua alma.”
Depois de ler esta sentença, penso ter entendido melhor o recado do meu amigo desembargador: minha descrença no Poder Judiciário não significa que, volta e meia, por lá, não se faça justiça. (Maneco)
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